Mateus Bonomi/Crusoé

Cadeia de amigos

Uma curiosa teia de relações entre ex-assessores do Supremo surge por detrás do habeas corpus que soltou um dos chefões do PCC
23.10.20

Por trás do habeas corpus concedido por Marco Aurélio Mello a André do Rap, um dos chefes do Primeiro Comando da Capital, há uma teia de amizades construídas dentro do gabinete do ministro do Supremo Tribunal Federal. Pelo menos três ex-assessores de Marco Aurélio que mergulharam na advocacia criminal logo após deixarem a corte tiveram algum papel na soltura do traficante, agora foragido. Para além da amizade, eles dividem palestras, processos judiciais e a organização de um livro. Também têm elos societários com colegas que ainda estão na corte.

A petição pela soltura de André do Rap chegou à mesa de Marco Aurélio às 11h30 do dia 23 de setembro. O documento não tinha sequer o timbre de um escritório de advocacia. Constava apenas a assinatura da advogada Ana Luísa Gonçalves Rocha, de 24 anos, que chegava, naquele instante, ao seu décimo processo na corte – o primeiro foi protocolado no fim de 2019. Como Crusoé revelou no último dia 11, Ana Luísa é sócia de Eduardo Ubaldo Barbosa, que trabalhou até fevereiro deste ano como assessor de Marco Aurélio. Nesta semana, o jornal Folha de S.Paulo publicou que a própria Ana Luísa foi estagiária do gabinete do ministro.

A simplicidade da peça não é, em si, um problema. Pedidos de liberdade podem ser redigidos até à mão pelos próprios detentos, em um pedaço de papel qualquer. Mas havia um detalhe curioso no caso. Àquela altura, o milionário traficante internacional era defendido pelo criminalista Roberto Delmanto Júnior, dono de uma banca tradicional de São Paulo com especialização na seara criminal. Na sequência, foram aparecendo outros defensores em cascata. Ao todo, foram ajuizados no Supremo nove HCs em favor do chefe do PCC. Um deles, o assinado pela jovem Ana Luísa, foi o que deu resultado.

Até hoje é um mistério a maneira como o líder do PCC chegou à advogada novata, em Brasília. Ao ingressar com o pedido, ela não chegou nem a anexar uma procuração do traficante com a autorização formal para defendê-lo. Também não havia um substabelecimento, documento pelo qual advogados já constituídos autorizam colegas a atuar no processo.

Há dias Crusoé vem buscando esquadrinhar o caminho da petição. Na última edição, mostramos que o arquivo enviado ao STF continha o nome de uma advogada de outro escritório, o mesmo que defende o ministro Gilmar Mendes. Era uma ponta solta da história que, como o leitor verá a seguir, não só mostra a cadeia de amizades envolvida no processo como revela que a escolha do escritório de Ana Luísa e Eduardo Ubaldo não se deu exatamente pela expertise da dupla no assunto.

Eduardo Ubaldo dá aula no minicurso sobre HCs
Nos dados do arquivo digital do HC consta como autora do documento a advogada Caroline Scandelari Raupp. Ela atua na área criminal do escritório de Rodrigo Mudrovitsch, conhecido em Brasília por defender investigados famosos da Lava Jato – ele também é professor do IDP, o instituto de direito de Gilmar Mendes, e advoga para o ministro em algumas causas. Não há sinal de qualquer outra relação nem do escritório de Mudrovitsch nem da própria Caroline Raupp com a defesa de André do Rap, mas a explicação para o surgimento do nome dela no arquivo está em outra advogada da banca.

Trata-se de Mariana Madera, que trabalhou no gabinete de Marco Aurélio de março de 2016 a junho de 2019. Depois que saiu do Supremo, ela passou a integrar o time de advogados de Mudrovitsch. A Crusoé, depois de apurar internamente o ocorrido, o escritório explicou a razão pela qual o nome de Caroline Raupp aparece no documento. Amiga de Eduardo Ubaldo, Mariana Madera repassou para ele um modelo de habeas corpus usado no escritório de Mudrovitsch. Era uma tentativa de ajudá-lo, já que Ubaldo não tinha experiência na área criminal e precisava de um modelo para alinhavar o HC para André do Rap – o que só reforça a suspeita de que ele não entrou para caso por dominar o tema.

Por essa explicação, o nome de Caroline Raupp aparece na versão digital do documento ajuizado no Supremo porque foi ela quem criou o arquivo repassado, supostamente na camaradagem, a Eduardo Ubaldo. É nesse ponto que a história começa a ficar ainda mais interessante, justamente por revelar a cadeia de amizades entre assessores e ex-assessores de Marco Aurélio envolvidos na história.

Mariana Madera, que trabalhou no gabinete, repassou o arquivo-base para o amigo Eduardo Ubaldo, que também foi assessor do ministro e cujo escritório, recém-montado, acabara de ser contratado para tentar soltar André do Rap. Eduardo Ubaldo, por sua vez, pôs sua sócia, Ana Luísa, para assinar a peça sozinha. O nome dele não aparecia. Agora, em razão desta apuração, ele se viu obrigado a admitir que atuou diretamente no caso.

A Crusoé, o próprio Ubaldo disse ter pedido ajuda a Mariana. “Na realidade, o que houve provavelmente é que foi a utilização de um modelo que uma amiga me passou, de habeas corpus, imagino eu que (o HC para André do Rap) tenha sido elaborado em cima desse”, afirmou ele, que se recusou a dar mais respostas sobre como seu escritório entrou no caso do chefe do PCC e sobre os passos seguintes até a obtenção da ordem de soltura, assinada pelo ministro Marco Aurélio, seu ex-chefe.

Mariana, Eduardo Ubaldo e Ana Luísa, a advogada que assinou o HC, mantêm ligações estreitas com assessores que ainda estão no gabinete do ministro. Eles são próximos, por exemplo, de Rafael Ferreira de Sousa, um delegado da Polícia Civil do Distrito Federal cedido pela corporação para atuar na assessoria jurídica do ministro. Rafael, por sinal, foi um dos responsáveis por auxiliar Marco Aurélio na decisão que soltou André do Rap. O nome dele até consta da decisão, como o assessor responsável por apresentar ao ministro um resumo do caso. Outro integrante atual do gabinete que tem relações próximas com os agora advogados é Gustavo Mascarenhas Lacerda Pedrina.

Para além da amizade, a turma mantém outras ligações. Há quatro meses, por exemplo, Mariana, Rafael, Gustavo Pedrina e Eduardo Ubaldo ministraram juntos um minicurso no instituto de Gilmar Mendes sobre a tramitação de HCs no Supremo – o próprio ministro chegou a dar uma palestra durante o evento, como mostrou Crusoé.

Mariana, a ex-assessora de Marco Aurélio que foi responsável por providenciar o texto-base do HC, e Gustavo Pedrina, atualmente no gabinete, ainda são sócios em uma empresa de palestras, a MMV Educacional, cuja sede está registrada em uma casa no Park Way, área residencial nos arredores de Brasília. A firma declara atuar nas áreas de “treinamento em desenvolvimento profissional e pessoal” e “aperfeiçoamento jurídico”. Um assessor de Gilmar Mendes, Vinícius Gomes de Vasconcellos, também integra a sociedade.

Reprodução/InstagramReprodução/InstagramA despedida de Ubaldo do gabinete de Marco Aurélio: gratidão
A teia prossegue. Junto com Rafael e Gustavo, Mariana organizou um livro em 2019. O tema: habeas corpus no STF. A depender da situação, os ex e atuais assessores de Marco Aurélio ora aparecem juntos, ora aparecem divididos em grupos menores, mas tudo somado mostra o quão são ligados entre si.

Há outros casos de processos, inclusive no Supremo, tocados por integrantes da turma. Mariana, Eduardo e Ana Luísa, por exemplo, aparecem juntos defendendo mais um traficante, Cristiano da Silva Moreira, o DigNow, líder do Bonde do Maluco, uma das maiores e mais violentas facções do tráfico de drogas na Bahia.

À semelhança do caso de André do Rap, que envolveu pedidos seguidos à corte, Ana Luísa moveu, em um período de doze horas, dois HCs para DigNow. Eduardo Ubaldo e Mariana Madera entraram formalmente nos processos em seguida. As petições foram ajuizadas em agosto passado. Até o momento, a investida não deu certo. Os ministros Edson Fachin e Celso de Mello, para quem os processos foram distribuídos, rejeitaram os pedidos liminarmente.

Crusoé indagou Eduardo Ubaldo sobre as circunstâncias em que ele e Ana Luísa conseguiram obter a decisão de Marco Aurélio em favor de André do Rap e tentou saber dele em que medida as ligações com assessores ainda na ativa no gabinete do ministro ajudaram na empreitada. Eis a conversa:

O sr. ou a dra. Ana Luísa chegaram a conversar com assessores do ministro Marco Aurélio sobre essa causa ou despacharam com o próprio ministro?

Eduardo Ubaldo – Isso é da atuação do escritório, está dentro do trabalho, não tenho como te responder.

O sr. e a dra. Ana Luísa conversaram com o Rafael Ferreira de Souza, que trabalha no gabinete do ministro? Como foi isso? O sr. pode dar algum esclarecimento a respeito?

Eduardo Ubaldo – Não, eu nem confirmo essa informação.

Procurado por Crusoé, primeiro o ministro disse que não gostaria de falar sobre o assunto. Depois, pediu que eventuais dúvidas fossem sanadas com seu chefe de gabinete, Vinícius de Andrade Prado.

Vinícius Prado, por sua vez, afirmou desconhecer as relações de amizade entre Eduardo Ubaldo e Ana Luísa com atuais assessores do ministro. Ele negou que os assessores possam ter influenciado na decisão de Marco Aurélio de soltar o traficante, mas admitiu a possibilidade de eventualmente algum auxiliar do gabinete lembrar o ministro sobre questões processuais que possam ser relevantes. “O que nós podemos fazer é, eventualmente, em um caso análogo, indicar a ele fundamentos utilizados em um caso semelhante que já foi decidido. Mas é ele quem decide”, disse o chefe de gabinete.

Como ainda restavam dúvidas, Crusoé enviou as seguintes perguntas por escrito para o ministro:

  • O sr. tinha conhecimento dessa cadeia de relações que está na origem do pedido?
  • O sr. pretende pedir explicações aos seus atuais assessores sobre essas relações?
  • O sr. pode ter sido levado de alguma maneira, por algum desses assessores, a tomar a decisão em questão?
  • Qual foi exatamente o papel dos assessores Rafael Ferreira de Souza e Gustavo Mascarenhas Lacerda Pedrina no caso em questão?
  • Os assessores Rafael Ferreira de Souza e Gustavo Mascarenhas Lacerda Pedrina chegaram a despachar sobre o caso com os advogados Eduardo Ubaldo e Ana Luísa Gonçalves ou tiveram algum tipo de contato com eles para tratar do assunto?
Não houve resposta.

Dono de um patrimônio de 17 milhões de reais, André do Rap permanece em local incerto e não sabido desde o último dia 10, um sábado, quando saiu pela porta da frente da penitenciária de Presidente Venceslau, no interior de São Paulo, graças ao habeas corpus assinado por Marco Aurélio Mello.

Atualização - Após a publicação desta reportagem, a advogada Mariana Madera deixou a banca de Rodrigo Mudrovitsch.

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