FelipeMoura Brasil

Bolsonaro, Doria e a ruína do debate político

23.10.20

Em 1967, o autor conservador americano Russell Kirk escreveu:

“Hoje em dia o debate político está bastante aborrecido – arruinado pela hipocrisia, pelo slogan, pelo lugar-comum árido. Com as fontes de grande profundidade fragmentadas, a retórica política do século 20 está debilitada. (…) Não era assim na época de Edmund Burke. Na última metade do século 18, a retórica política possuía verdadeiro poder e sutileza. Como na época de Cícero, a escrita e a fala políticas formavam, então, a mais extensa província do reino das Humanidades. O próprio demagogo, como John Wilkes, era esplêndido como orador e como panfletário; hoje é incapaz de expressar-se. E Burke perdura, ainda que outros polemistas políticos da época estejam quase esquecidos.”

Em 2012 (45 anos depois), o escritor peruano Mario Vargas Llosa escreveu:

“A cultura deve exercer influência sobre a vida política, submetendo-a a uma contínua avaliação crítica e inculcando-lhe valores e formas que a impeçam de degradar-se. Na civilização do espetáculo, infelizmente, a influência exercida pela cultura sobre a política, em vez de exigir que esta mantenha certos padrões de excelência e integridade, contribui para deteriorá-la moral e civicamente, estimulando o que possa haver nela de pior, como por exemplo a mera farsa. No compasso da cultura reinante, a política foi substituindo cada vez mais ideias e ideais, debate intelectual e programas, por mera publicidade e aparências. Consequentemente, a popularidade e o sucesso são conquistados não tanto pela inteligência e pela probidade quanto pela demagogia e pelo talento histriônico.”

No Brasil de 2020, o embate entre Jair Bolsonaro e João Doria, potenciais rivais na disputa presidencial de 2022, é tão infantilmente ilustrativo que deveria render uma história em quadrinhos.

Como Bolsonaro desdenhou da pandemia do novo coronavírus, Doria endureceu o discurso de combate à Covid-19 para polarizar com o presidente da República. Como o governador ameaçou em abril “a penalização de prisão para as pessoas que desobedecerem” o isolamento social e antecipou em outubro que “a vacinação será obrigatória” para “os 45 milhões de brasileiros de São Paulo”, o presidente (que até outro dia discursava em manifestação pelo fechamento do Congresso e do STF e ainda gritava “acabou, porra!”) passou a pintar Doria como “nanico projeto de ditador”, como faziam Ciro Gomes e o hoje aliado Ciro Nogueira com Bolsonaro em 2018.

Para um presidente eleito com a bandeira anticorrupção, mas que vem recebendo o apoio de PT, OAB, Centrão, Renan Calheiros e Fernando Collor no desmonte do combate a ela (inclusive na nomeação de Kassio Marques para o STF), o contraponto ao governador garante, além do diversionismo, o discurso e a pose de defensor das “liberdades”. Para um presidente unido à esquerda nacional contra a Lava Jato e Sergio Moro, desfazer o compromisso de compra do que chamou de “vacina chinesa de João Doria” – assumido pelo seu próprio ministro da Saúde, Eduardo Pazuello – garante também alguma retórica “anticomunista”, para alimentar massas de manobra que ainda confundem o populismo bolsopetista com “direita” e “conservadorismo”.

“Não se justifica um bilionário aporte financeiro num medicamento que sequer ultrapassou sua fase de testagem”, tuitou Bolsonaro, como se não tivesse assinado uma medida provisória que destinava quase 2 bilhões de reais à compra da vacina de Oxford, cuja eficácia ainda não foi comprovada, mas da qual o presidente é torcedor seletivo, na ambição de ficar com os créditos eleitorais, disputados com Doria, pela eventual imunização dos brasileiros. Isto sem falar no gasto milionário do Exército com a cloroquina, da qual Bolsonaro, seu maior propagandista, agora tenta se descolar.

“Para nós, pouco importa de onde vem a vacina ou qual é o seu país de origem. O nosso dever constitucional é oferecer resposta de que esses produtos têm ou não têm qualidade, segurança e eficácia”, disse o diretor-presidente da Anvisa, Antonio Barra Torres, cumprindo (apesar de toda a desconfiança que vai pairar sobre a imparcialidade da agência) o papel de adulto na sala do jardim de infância. Antes dessas respostas, debater obrigatoriedade (“realização compulsória de vacinação”, possibilitada pela lei nº 13.979/20, assinada pelo próprio Bolsonaro) é tão aborrecido quanto ler a insinuação de Fábio Faria de que casas seriam invadidas para impor a vacinação. “Na minha casa, não entram!”, escreveu o ministro da Propaganda, turbinando o histrionismo da claque, que, em emissoras financiadas sem transparência pelo governo, estimula a farsa.

Arruinado pela hipocrisia, pelo slogan, pelo lugar-comum árido, o debate político na civilização brasileira do espetáculo se reduziu a mera publicidade e aparências, tornando-se um embate pueril de caricaturas que impossibilita o bom senso.

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