Adriano Machado/CrusoéKassio Marques na quarta-feira, na varanda de sua casa em Brasília: agenda frenética

São Kassio do Centrão

Do plágio em dissertação revelado por Crusoé ao apadrinhamento de Frederick Wassef, o escolhido de Bolsonaro para o STF derrete a cada dia, mas nada parece abalar a fé de seus devotos -- desde o presidente da República aos senadores que irão sabatiná-lo
09.10.20

Kassio Marques está contando os votos por onde passa. Desde a sua indicação ao Supremo Tribunal Federal por Jair Bolsonaro, celebrada com o próprio presidente em um convescote com cerveja e música caipira na casa do ministro Dias Toffoli, no último sábado, 3, o desembargador piauiense tem percorrido gabinetes e residências de senadores para pavimentar a aprovação de seu nome no Senado e assumir a vaga do decano Celso de Mello. A sabatina que antecede a votação secreta será no dia 21 e tudo leva a crer que Kassio não terá muita dificuldade para angariar o apoio da maioria dos 81 senadores. Entre jantares e teleconferências, o magistrado tem cativado a classe política, muito mais interessada nas decisões que ele pode proferir contra ou a favor dela quando vestir a nova toga do que com o notável saber jurídico e a reputação ilibada do candidato, dois requisitos elementares para quem almeja sentar na cadeira do Supremo. Na pauta das conversas, pululam questões sobre as posições doutrinárias do desembargador apadrinhado pelo Centrão, como sua compreensão sobre a extensão das garantias constitucionais aos réus — ele já mostrou ser da linha garantista e contra a prisão após condenação em segunda instância –, mas carecem explicações para uma série de inconsistências em seu currículo, exatamente na formação acadêmica que molda a doutrina de um juiz. A mais recente delas, e mais contundente também, é o plágio na dissertação de mestrado revelado por Crusoé.

O trabalho que garantiu ao desembargador o título de mestre em direito pela Universidade Autónoma de Lisboa, em 2015, contém trechos integralmente copiados, sem nenhum tipo de citação, de artigos publicados quatro anos antes pelo advogado Saul Tourinho. Com o auxílio da ferramenta “Plagium”, recomendada por instituições de ensino para detectar fraudes em produções acadêmicas, a reportagem identificou que o trabalho de 127 páginas apresentado por Kassio reproduz, de forma integral ou parcial, 30 trechos dos textos de Tourinho, que é integrante da banca de advocacia de Carlos Ayres Brito, ministro aposentado do STF. Há semelhanças em 46,2% da dissertação do desembargador, que chega a repetir os mesmos erros de formatação, digitação e até de concordância e ortografia. Em nota distribuída à imprensa, Kassio afirmou que “a coincidência” das citações apontadas por Crusoé “provavelmente decorra da troca de informações e arquivos” entre ambos em um seminário que eles participaram em 2012, após a publicação dos artigos de Tourinho e antes da dissertação do magistrado. Amigo e conterrâneo de Kassio, o advogado também negou o plágio dizendo que mantém há anos uma “relação acadêmica” com o desembargador e as passagens copiadas são “fruto de esforço mútuo dos autores”. O curioso é que apesar das semelhanças, Kassio e Tourinho afirmam ter “linhas doutrinárias absolutamente divergentes”. Nesta quinta-feira, 8, a orientadora do desembargador no mestrado, Constança Urbano de Sousa, também deputada pelo Partido Socialista português, afirmou que o trabalho será revisado.

A revelação do plágio pegou de surpresa o dono da banca onde trabalha o advogado Saul Tourinho. Tanto que Ayres Britto deu duas respostas distintas sobre o caso no decorrer de quarta-feira. Primeiro, disse que Tourinho não sabia da tese de Kassio, a qual jamais tinha lido. “Se houve plágio, o plagiado não sabe”, afirmou. Em seguida, após a nota divulgada pelo advogado, o ex-ministro declarou que “fica difícil caracterizar como plágio”, já que Tourinho afirma que mantinha relações acadêmicas com Kassio – uma leitura que é contestada por especialistas. No Senado, a ala que ainda não se rendeu ao carisma de Kassio, cujos laços de amizade vão da família Bolsonaro a políticos do PT e do Centrão no Nordeste, vai explorar o plágio na sabatina do dia 21. O senador Alessandro Vieira, do Cidadania, destacou que o currículo “envernizado” de Kassio é “realmente um problema” e disse temer que o desembargador reproduza no Supremo as doutrinas defendidas por seus fiadores na corte. Vieira procurou todas as universidades mencionadas no currículo de Kassio para checar a veracidade das informações sobre a formação acadêmica do magistrado, que virou desembargador do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, o TRF-1, em 2011, por um ato assinado por Dilma Rousseff. Crusoé já havia feito esse trabalho, e constatou que as inconsistências vão além do plágio.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéBolsonaro aposta que o nome do desembargador será aprovado com folga
Kassio Marques também turbinou seu currículo com um “pós-doutorado” na Universidade de Messina, na Itália, que tem “o valor de um ciclo de seminários” e que “não equivale a um grau acadêmico”, segundo a própria instituição. Outro pós-doutorado de Kassio teria sido concluído na Universidade de Salamanca, na Espanha. O problema é que, na mesma instituição, o desembargador só defendeu sua tese de doutorado — este, sim, confirmado pelo orientador Lorenzo Vadell — no dia 25 de setembro, em uma banca virtual, em razão da pandemia. O orientador não soube explicar, porém, como o desembargador conseguiu acumular os dois títulos em um espaço de tempo tão curto. “Eu coordeno e orientei o doutorado, mas o pós-doutorado é já outra secção”, disse Vadell a Crusoé. Já a Universidade de La Coruña, também espanhola, afirmou ao jornal O Estado de São Paulo que não existe o curso de pós-graduação em “Contratação Pública”, que consta no currículo de Kassio. O magistrado teria participado apenas de um curso de cinco dias em setembro de 2014. No Brasil, a pós-graduação declarada por Kassio na Faculdade Maranhense também precisa ser mais bem explicada. O dono da instituição, Antônio Carlos Braga da Silva, afirmou que o curso “está cadastrado no sistema, mas não foi emitido nada (nenhum certificado)” porque ainda não houve turma.

Até agora, todas essas inconsistências ainda não geraram um constrangimento a ponto de ameaçar a aprovação de Kassio no Senado, como seria natural em qualquer país civilizado. No seu corpo a corpo com os senadores, o magistrado tem arregimentado apoio. Os parlamentares, em sua maioria, têm aceitado e até reproduzido a jornalistas as poucas explicações dadas pelo desembargador sobre as recentes revelações sobre seu currículo acadêmico, como erro de tradução dos títulos que alega ter conquistado no exterior e diferença das nomenclaturas dos cursos na Europa e no Brasil. Até líderes da oposição, como o Randolfe Rodrigues, da Rede, parecem ter sido convencidos pelos argumentos do magistrado, mesmo após Bolsonaro ter declarado que Kassio está “100% alinhado” com ele. Após um jantar na casa da senadora Kátia Abreu, do Progressistas, na terça-feira, o PDT, também opositor ao governo, declarou apoio da bancada à nomeação do desembargador porque ela “atende os interesses nacionais”. A indicação de Kassio pode marcar ainda o apoio definitivo do MDB ao projeto de reeleição de Davi Alcolumbre, outro patrocinador do nome do magistrado para o Supremo. Lideranças emedebistas como Renan Calheiros e Eduardo Braga, entusiastas da indicação, se aproximaram do presidente do Senado nos últimos dias.

A um aliado próximo, Kassio disse que as suspeitas levantadas sobre seu currículo não passam de “fake news”, um mantra que ele já assimilou do bolsonarismo e também tem repetido para fugir de outra questão incômoda, mas crucial para sua indicação ao Supremo: o papel de Frederick Wassef na escolha de seu nome para a vaga de Celso de Mello. Foi o ex-advogado da família Bolsonaro, que escondeu o ex-assessor Fabrício Queiroz em sua casa de Atibaia e foi recentemente denunciado pela Lava Jato do Rio no esquema da Fecomércio, quem articulou o nome de Kassio Marques junto ao senador Flavio Bolsonaro, antes de levá-lo ao gabinete do presidente como a melhor opção para o Supremo. A informação foi antecipada na semana passada por O Antagonista e, com o passar do tempo, vêm surgindo mais evidências das digitais de Wassef na decisão de Bolsonaro de escolher Kassio. Como Crusoé mostrou na última edição, o desembargador estava em campanha para o Superior Tribunal de Justiça e sua “promoção” ao STF foi chancelada por lideranças do Centrão que se aliaram ao governo, bem como recebeu a benção dos ministros Toffoli e Gilmar, o anfitrião do encontro que selou a surpreendente indicação, na semana passada.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéA casa de Cristina Boner, a ex de Wassef: reuniões com Kassio Marques
Wassef e Kassio têm amigos em comum na Ordem dos Advogados do Brasil, onde o desembargador militou antes de entrar para a magistratura, em 2011, e no Judiciário, especialmente no TRF-1, onde tramitam processos relacionados às empresas de Cristina Boner, ex-mulher de Wassef. Segundo pessoas próximas a Wassef, Kassio é amigo do casal há pelo menos quatro anos e frequenta a mansão de Cristina no Lago Sul, em Brasília. O nome do magistrado, até então pouco conhecido no meio jurídico, também foi referendado pela desembargadora Maria do Carmo Cardoso, colega dele no TRF-1. Amiga de Kassio, Maria do Carmo já havia se aproximado de Flávio, também por intermédio de Wassef. Em maio, a desembargadora chegou a criticar publicamente o decano Celso de Mello ao comentar uma postagem do filho 01 do presidente no Instagram sobre a possibilidade de apreensão do celular de Bolsonaro no inquérito que investiga a suposta interferência na Polícia Federal. Wassef nunca negou ter sido um dos padrinhos de Kassio Marques. Cristina Boner, por sua vez, disse que nunca se encontrou com Kassio e que nem sequer conhece o desembargador – o que alguns amigos dela negam peremptoriamente.

Crusoé apurou que Frederick Wassef, com aval do Planalto, estava bastante engajado na escolha do sucessor de Celso de Mello. Antes de o martelo ser batido em favor de Kassio Marques, ele e Flavio Bolsonaro tiveram conversas sobre o tema. Uma dessas reuniões, segundo uma fonte a par do episódio, foi com um dos ministros do STJ que estavam cotados para a vaga. Procurado, o ministro evitou falar sobre o assunto, mas em nenhum momento negou ter sido procurado por Flávio e Wassef.

A trajetória de Kassio Marques como magistrado revela uma atuação mais alinhada com interesses de empresas privadas do que com a União. Em um caso sob sua relatoria, em 2018, ele chegou a suspender uma multa de 1,6 milhão de reais aplicada à JBS pelo Ibama. A decisão acolheu um recurso da companhia. A suspensão de multas aplicadas por órgãos do governo contra empresas aparece em outras decisões do desembargador envolvendo cifras milionárias. Em dez anos de TRF-1, Kassio foi relator em mais de 10 mil julgamentos e assinou 8,3 mil decisões monocráticas. Em junho deste ano, ele suspendeu uma decisão da Justiça Federal de Goiás que havia bloqueado 24 milhões de reais de universidades goianas sob suspeita de evasão fiscal e de integrarem um grupo que estaria fraudando o Fies, o programa federal de financiamento estudantil.

André Spigariol/CrusoéAndré Spigariol/CrusoéO prédio onde “funciona” a construtora: no local há uma faculdade
O desembargador também anulou uma sentença de uma ação envolvendo uma multa de 3 milhões de reais aplicada à Companhia de Transmissão de Energia Elétrica Paulista pela Aneel, a agência reguladora do setor. Um processo polêmico do passado de Kassio envolve a venda da participação da Petrobras na Gaspetro para a japonesa Mitsui, investigada na Operação Lava Jato. A Justiça Federal da Bahia havia suspendido o negócio. O Ministério Público Federal chegou a dar um duro parecer contra a transação, alertando para o fato de a empresa ser investigada e de o negócio ter sido feito em um curto espaço de tempo. Kassio suspendeu a decisão e permitiu que a transação fosse concluída. Até hoje, porém, o negócio não se efetivou.

Antes de ascender à magistratura, em 2011, Kassio atuou por cerca de 15 anos na advocacia, em processos distribuídos em todas as instâncias do Judiciário. A maioria dos casos envolvia planos de saúde – ele integrou o departamento jurídico da Unimed na década de 1990 – e empresas públicas do Piauí, como a companhia de distribuição de energia e o banco estadual. Em uma ação que chegou ao STJ, Kassio Marques defendia a companhia energética do estado, que multou uma empresa contratada para a construção de redes de distribuição. A empreiteira teria descumprido parte do contrato e brigava na Justiça contra a multa. Com Kassio como advogado, a companhia se livrou de ter que pagar 11 milhões de reais. Foi uma das causas mais vultosas dele na corte. No Supremo, o nome de Kassio aparece em dez processos – entre eles, há vários relacionados a empresas do Piauí e dois em que ele defende a TV Globo.

Como advogado, o escolhido de Bolsonaro protagonizou um polêmico processo que resultou em indenização milionária imposta à Toyota em razão de um automóvel defeituoso avaliado em 85 mil reais. O juiz que atuou na causa foi aposentado compulsoriamente por causa de outra sentença milionária, considerada excessiva. Investigações concluíram que o magistrado que canetou em favor do cliente de Kassio também atuou de forma irregular em ações envolvendo a montadora e que ele era “escolhido” a dedo pelos advogados beneficiados por suas decisões. Curiosamente, o também piauiense Marcus Vinícius Coêlho, ex-presidente da OAB nacional e um dos melhores amigos de Kassio em Brasília, atuou em uma ação semelhante – justamente a que resultou na aposentadoria compulsória do magistrado. Um outro caso similar acabou esbarrando na ex-ministra do STJ Eliana Calmon, que havia sido contratada para defender a Toyota. Indignada com a vasta influência dos advogados locais no TJ do Piauí, Eliana passou a encampar uma campanha contra o nome de Kassio para o STJ, em 2015 – ele era candidato à vaga de Gilson Dipp. Nesta semana, a ex-ministra voltou ao Conselho Nacional de Justiça e pediu a anulação de todas as decisões do juiz aposentado.

Reprodução/CNNReprodução/CNNO abraço afetuoso de Toffoli e Bolsonaro: festa com Kássio
Depois que virou desembargador em 2011, nomeado por Dilma por influência do governador do Piauí, Wellington Dias — o petista é amigo do magistrado e empregou a mulher dele no Senado –, Kassio passou sua parte no escritório de advocacia que funciona em Teresina para a irmã, Karine Nunes Marques. A advogada e a mulher do postulante a ministro do Supremo, Maria do Socorro Marques, são sócias de uma administradora de imóveis que é dona de um flat em Brasília, como mostrou Crusoé semana passada. Elas também figuram na sociedade de uma construtora, a Lamark Construções, aberta em 2012 e registrada formalmente em Brasília, mas desconhecida do Conselho Regional de Engenharia, o Crea. No endereço da empresa não há qualquer sinal de sua existência: ela está oficialmente registrada em um lugar onde funciona uma faculdade, em Águas Claras, cidade vizinha a Brasília. O próprio Kassio chegou a ser sócio da construtora já no período em que era desembargador do TRF. Um dos ex-sócios da firma, amigo de infância do magistrado, é funcionário do Tribunal de Justiça do Distrito Federal. Essa não é a única incursão de Kassio Marques pelo mundo dos negócios. Quando ainda era advogado em Teresina, ele foi dono de uma casa lotérica. A baixa da empresa só foi registrada na Receita Federal em 2011, o ano em que ele se tornou desembargador do TRF-1.

O currículo distribuído por Kassio na primeira vez em que ele se candidatou a uma vaga no STJ, em 2015, trazia uma lista extensa de atividades profissionais já exercidas por ele, entre as quais a de assessor jurídico de sindicatos patronais. Também aparece listado o período em que ele atuou como “assessor parlamentar”. Só que essa etapa da carreira o próprio Kassio parece ter apagado da memória, embora seu currículo trouxesse até mesmo o período em que exerceu essa atividade: de 1998 a 2002. Nesta quinta-feira, indagado por Crusoé, o desembargador não respondeu para qual parlamentar trabalhou. E afirmou, por meio de sua assessoria, que “não reconhece” ter trabalhado como assessor parlamentar.

Nesta semana, diante das revelações sobre o currículo e os vínculos políticos do desembargador, que é defendido por nomes como José Sarney e Renan Calheiros, o presidente Jair Bolsonaro disse que sabe que acertou na escolha pelas críticas feitas pela imprensa. “Quando eu indico qualquer pessoa para qualquer local, eu sei que ela é uma pessoa boa tendo em vista a quantidade de críticas que ela recebe da grande mídia”, disse o presidente, obviamente, sem entrar no mérito de nenhum dos pontos obscuros na nomeação surpresa de Kassio, incluindo a participação de seu ex-advogado na escolha. Até aqui, a estratégia tem se mostrado vitoriosa. À exceção de alguns poucos críticos, apesar de tudo o que já surgiu sobre o desembargador nos últimos dias, os senadores parecem dispostos a aprovar o nome dele. A lógica dessa equação é conhecida: muitos não querem o ônus de se indispor publicamente com um virtual ministro do Supremo. Um ministro que, se tudo der certo, poderá ficar na cadeira por até 27 anos. Para muitos, São Kassio do Centrão poderá ser a salvação.

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