Divulgação"Em infraestrutura, agricultura e economia, por exemplo, há muita exigência. Mas na área ideológica, a cobrança é apenas ideológica"

Risco de isolamento

O embaixador Rubens Ricupero afirma que, com a atual política do Itamaraty, o Brasil periga virar um pária internacional se Joe Biden vencer a eleição americana
09.10.20

De fala pausada e memória afiada, o embaixador Rubens Ricupero é um dos maiores conhecedores da diplomacia e da política brasileira. Ao longo de 55 anos de carreira diplomática, ele trabalhou nas embaixadas de Washington e de Roma. Ao assumir o cargo de ministro da Fazenda no governo de Itamar Franco (1992 a 1994), foi um dos responsáveis pela implantação do Plano Real. Ricupero ainda foi embaixador do Brasil na ONU e atuou como ministro do Meio Ambiente e Amazônia Legal.

Nos últimos anos, ele tem se juntado a outros ex-ministros e diplomatas na publicação de cartas criticando a diplomacia comandada pelo ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo. Este ano, Araújo falou até da existência de um “Grupo Ricupero”, cujo objetivo seria falar mal da política externa. Aos 83 anos, o embaixador preferiu nunca revidar.

Nesta entrevista a Crusoé, Ricupero diz que uma vitória do democrata Joe Biden na eleição de 3 de novembro pode aprofundar o isolamento internacional do Brasil, especialmente na área de meio ambiente e no front econômico. Acordos comerciais e a atração de investimentos, diz ele, estarão em risco. O embaixador tem esperança de que, se Biden for eleito, o governo brasileiro se adaptará, adotando uma postura menos ideológica, mas entende que isso dependerá principalmente do presidente Jair Bolsonaro. “Precisamos saber até que ponto ele sustenta algumas ideias por convicção ou se por um cálculo eleitoral”, diz.

Na última semana, o candidato do Partido Democrata, Joe Biden, ampliou sua vantagem sobre Donald Trump. O que uma vitória do democrata na eleição de 3 de novembro representaria para o Brasil?
Significaria a acentuação do nosso isolamento. O Brasil está hoje em uma situação difícil internacionalmente. A relação com os grandes países europeus se deteriorou muito. Com a China, embora tenha amainado ultimamente, é uma relação tensa. Naquela reunião ministerial que foi divulgada (do dia 22 de abril, ainda com Sergio Moro como ministro), sabemos que ocorreram ofensas pesadas aos chineses por parte do presidente Jair Bolsonaro. Até agora, a única grande âncora tem sido os Estados Unidos. Se a política de lá mudar, nosso isolamento será total. Isso poderá agravar a situação do Brasil em questões concretas como meio ambiente, acordos comerciais e atração de investimentos. Veja o que já está acontecendo no Ministério da Agricultura. Na gestão do Blairo Maggi, de 2016 a 2019, o ministro passou um mês viajando por países asiáticos para abrir mercados. A atual ministra (Tereza Cristina) não faz isso porque não tem mais clima. Na melhor das hipóteses, o país continuará mantendo a situação comercial que tem hoje, sem alcançar nenhum incremento, nenhuma melhoria. Não é uma perspectiva encorajadora.

Em relação ao meio ambiente, Biden não tem um passado em defesa da causa, e sempre evitou confrontos políticos. Sua vitória seria mesmo um problema para o Brasil?
É verdade que Biden é um centrista. Mas a questão é o desenvolvimento do Partido Democrata. O programa de governo de Biden tem um compromisso grande com meio ambiente. Ele já anunciou que investiria 2 trilhões em economia verde, de baixo carbono. O partido todo está ligado a isso. Não é só um documento.

Como essa posição do Partido Democrata poderia afetar o Brasil?
Há alguns meses, os deputados democratas, que são maioria na comissão do orçamento da Câmara, mandaram uma carta ao USTR (United States Trade Representative), que equivale ao Ministério de Comércio Exterior, dizendo que eles vão se opor a qualquer tipo de negociação que vise a melhorar o comércio com o Brasil. Os parlamentares afirmam que o país não respeita o meio ambiente, os direitos dos povos indígenas e os direitos trabalhistas. Sem o apoio dessa comissão de deputados, não se aprova nada de comércio com os Estados Unidos. Outro caso é o de Deb Haaland, uma das duas únicas parlamentares indígenas, que representa o Novo México. Ela assinou um artigo no jornal Washington Post denunciando o tratamento que o Brasil dá aos povos indígenas. Deb apresentou um projeto na Câmara para cancelar a designação do Brasil como um dos aliados fora da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte). Se os democratas passarem a controlar o Senado nas eleições, esse panorama ficará ainda mais nebuloso.

Marlene Bergamo/FolhapressMarlene Bergamo/Folhapress“Como um país estrangeiro pode saber o que é melhor para a Venezuela se eles mesmos não se entendem?”
No primeiro debate com Trump, no dia 29, Biden disse que o Brasil não cuida da floresta e ameaçou retaliar o país caso a situação persista. O que isso significa?
Em 1976, o candidato democrata Jimmy Carter foi eleito presidente. Eu era conselheiro do chefe de setor político da Embaixada do Brasil, em Washington. Durante a campanha, Carter fez críticas ao Brasil em dois campos, no dos direitos humanos e em relação ao acordo nuclear com a Alemanha. Os americanos sabiam das torturas e temiam uma corrida armamentista com a Argentina. Estávamos na ditadura militar e quem governava o Brasil era Ernesto Geisel. Nós, na embaixada, avisamos o governo brasileiro, que ignorou nossos relatos. Havia uma boa relação com o governo do presidente republicano Gerald Ford. O secretário de estado era Henry Kissinger, que se correspondia bastante com o ministro brasileiro Antônio da Silveira. Mas Carter venceu. Como prevíamos, na primeira mensagem ao Congresso, ele criticou o Brasil. A relação ficou muito difícil e, durante todo o governo Carter, não melhorou.

No mesmo debate, Biden falou em levantar um fundo de 20 bilhões para ajudar a proteger a floresta e Bolsonaro reagiu atacando a cobiça dos outros países sobre a Amazônia. A ideia de que os estrangeiros querem roubar os recursos da floresta não está meio fora de moda?
É uma paranoia de muito tempo atrás. No fundo, ela revela uma insegurança, uma fraqueza. Na época colonial, os portugueses não deixavam nenhum cientista entrar na Amazônia. O maior cientista do século 19, Alexander von Humboldt, viajou bastante pelas colônias espanholas. Foi para os Andes, para a Venezuela e passou pelo Rio Orinoco. Quando tentou entrar no Brasil, Humboldt foi detido na fronteira do Rio Negro. Os portugueses, que eram muito mais fracos que os espanhóis, tinham fechado o país completamente. Eles se sentiam incapazes de assegurar a soberania sobre aquela região. Essa mentalidade ficou até hoje, entre os militares. Eles têm essa ideia de que a Amazônia precisa ser integrada ao resto do Brasil. Mas hoje essa a região já foi totalmente incorporada, com 25 a 30 milhões de habitantes. É uma fantasia achar que os estrangeiros podem roubar seus recursos. Quem destrói a Amazônia hoje são os grileiros, os madeireiros, os mineradores ilegais. Todos eles são brasileiros.

O secretário de estado americano, Mike Pompeo, visitou Roraima em setembro, semanas antes da eleição americana. Algo parecido já tinha acontecido antes?
Nunca. O Brasil sempre foi muito cioso ao não permitir ser usado por outros países em suas contendas internas. Um exemplo foi na época do Getúlio Vargas, quando Oswaldo Aranha era ministro de Relações Exteriores. Naquele momento, os americanos estavam fazendo uma campanha muito grande contra Juan Domingo Perón, que em 1944 já era um ministro do Trabalho poderoso. O embaixador americano em Buenos Aires, Spruille Braden, fez uma campanha enorme contra Perón. Os americanos então pediram que os brasileiros tomassem uma atitude pública, condenando energicamente o que estava acontecendo na Argentina. O ministro Aranha teve uma saída muito boa. ‘Vocês que estão longe, podem gritar. Nós, aqui perto, falamos ao pé do ouvido’, disse ele. Não fazia sentido envolver o Brasil em uma tentativa de derrubar o governo de um país vizinho. Ao final, o resultado da pressão americana foi um desastre, porque eles acabaram favorecendo a vitória de Perón.

A gravidade da situação da Venezuela não justificaria uma ação mais enérgica?
O Brasil jamais admitiu esse tipo de coisa. Pompeo visitou Roraima porque queria interferir na eleição legislativa da Venezuela, marcada para dezembro. A oposição venezuelana está dividida. Juan Guaidó, o presidente interino, resolveu boicotar o pleito. Mas uma parte da oposição, incluindo o Henrique Capriles, um líder muito mais conhecido que Guaidó, decidiu participar. Esses opositores alegam que, se ficarem de fora, eles não terão nenhum mandato para ter alguma atuação. Os americanos então querem convencer a oposição a não participar, dizendo que isso legitimaria o ditador Nicolás Maduro. É um tema muito complicado, tanto que tem dividido os opositores de Maduro. Como um país estrangeiro pode saber o que é melhor para a Venezuela se eles mesmos não se entendem? Não podemos simplesmente achar que os americanos ou o ministro de Relações Exteriores, Ernesto Araújo, sabem o que convém fazer na Venezuela. Seria uma atitude insensata.

A pressão americana no governo Carter pode ter incomodado a ditadura, mas foi benéfica para os brasileiros em geral, não?
Acabou sendo. Embora o Geisel tenha reagido e nunca tenha admitido que isso tenha influenciado sua política, a verdade é que ele foi o presidente que pôs fim àquela prática descontrolada de tortura. Depois do episódio do assassinato do jornalista Vladimir Herzog, em São Paulo, em 1975, ele demitiu o general que comandava a repressão. No segundo episódio, o da morte do operário Manoel Fiel Filho, em 1976, Geisel fez uma limpeza no pessoal da linha-dura. Ele acabou demitindo o ministro do Exército, Sylvio Frota, em 1977. Entre os que faziam parte do gabinete do Frota estava o general Augusto Heleno, que naquela época era capitão.

A sociedade brasileira poderia se beneficiar novamente desta vez?
O ideal seria que nós resolvêssemos os problemas de acordo com o nosso próprio interesse. No caso do meio ambiente, acho que é do nosso interesse ter uma política diferente de proteção da Amazônia, de combate aos incêndios. Quando isso não ocorre na prática, uma pressão externa pode ajudar. Na verdade, isso já está acontecendo. Nos últimos meses, tivemos a decisão de confiar ao vice-presidente Hamilton Mourão a questão da Amazônia. Foi ressuscitado o Conselho Nacional da Amazônia Legal, que foi criado por mim, em 1993, quando eu era ministro do Meio Ambiente. O diálogo que o Mourão tem mantido com os investidores e com as grandes empresas de fora e de dentro do país é um resultado dessa pressão externa. Nada disso estaria ocorrendo se não tivesse existido uma campanha internacional. Infelizmente, ainda não tivemos uma mudança substancial na nossa política ambiental. Até agora, tudo o que foi feito foi cosmético. Se nada acontecer, teremos mais dores de cabeça nos anos próximos.

Divulgação/Ministério das Relações ExterioresDivulgação/Ministério das Relações Exteriores“O problema é que se criou um mito em torno da OCDE”
A proximidade entre o governo de Donald Trump e de Jair Bolsonaro foi positiva para o Brasil?
A única coisa que os americanos fizeram foi doar a hidroxicloroquina que tinha sobrado por lá. Quanto ao resto, não tem nada. Em matéria de comércio, nos primeiros seis meses deste ano, o Brasil acumulou com os Estados Unidos um déficit de 3,1 bilhões de dólares. Com a China, o país teve um superávit de 17 bilhões de dólares. Isso quer dizer que o superávit com a China é o que mantém o comércio exterior brasileiro à tona. É uma situação que não tem nada de positivo. Os americanos aplicaram sanções e cotas sobre aço e alumínio e não nos deram nenhum benefício em troca da concessão do etanol.

O apoio americano para a entrada do Brasil na OCDE seria algo positivo?
Não acho. Isso só valeria a pena se não tivesse nenhuma contrapartida, como aconteceu com os outros países. Obrigar o Brasil a renunciar à condição de país em desenvolvimento na Organização Mundial do Comércio não faz sentido. Essa condição nos dava vantagens em tarifas e prazos maiores para cumprir acordos. O problema é que se criou um mito em torno da OCDE. A organização produz estudos e conduz avaliações. Em si, ela não representa nenhuma garantia de que o país ganhará algo. O México está na OCDE há dez anos e está igual ou pior que o Brasil. Os mexicanos têm adotado políticas econômicas que nada têm a ver com o pensamento liberal da OCDE. A meu ver, tudo isso é uma ação dos setores ligados ao mercado que veem a OCDE como uma garantia para evitar que o governo brasileiro adote políticas irresponsáveis. Trata-se de uma ingenuidade. O que estamos vendo aqui no Brasil, neste momento, é que as motivações por trás das políticas são de cálculo eleitoral e político.

Quais políticas nacionais vão na contramão do que prega a OCDE?
O que determina as políticas no Brasil são os fatores internos. É por isso que o presidente Jair Bolsonaro quer fazer o Renda Cidadã, estourando o teto de gastos. Se ele desistir, não vai ser por causa da OCDE, mas porque tem medo de que os mercados desabem. A dívida está rolando a um custo cada vez mais alto. O dólar está se desvalorizando muito.

Nos últimos tempos, a ala mais ideológica tem perdido força no governo. Se Biden for eleito, o governo brasileiro poderia se adaptar fazendo mudanças nas áreas de meio ambiente e relações internacionais?
Esse seria o cenário mais positivo. Nos últimos dois meses, temos notado uma mudança do presidente, sobretudo em sua relação com o Congresso. Ele fez uma aliança com o Centrão. A campanha contra o Supremo Tribunal Federal baixou muito de tom. Tenho a impressão de que houve uma decisão tanto do presidente, como do Supremo, de aliviar a tensão. É isso o que explica esses encontros com os ministros do STF Gilmar Mendes e Dias Toffoli (no final de setembro, senadores se encontraram com Gilmar Mendes na casa da senadora Kátia Abreu, do PP. No sábado, 3, Bolsonaro reuniu-se com Dias Toffoli, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, e seu indicado para o STF, Kassio Marques).

A ala ideológica está perdendo terreno em todo o governo?
Os grupos que faziam a guerra ideológica perderam o incentivo com a indicação do novo ministro para o Supremo Tribunal Federal, Kassio Marques. Muitos agora estão contra o presidente. Mas, até o momento, esse movimento tem se concentrado na área política, da qual depende a sobrevivência do governo. É algo que ocorre principalmente na articulação entre os Três Poderes. Não estou vendo isso acontecer nos quatro ministérios que encarnam a linha ideológica mais extremada: o Ministério das Relações Exteriores, o Ministério do Meio Ambiente, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e o Ministério da Educação.

Em que mais esses quatro ministérios se distinguem dos demais?
Eles funcionam como os fiadores da pureza ideológica do governo. Como a questão é puramente de fidelidade, eles não precisam exibir resultados. É diferente do que ocorre em outras áreas, em que o governo cobra números positivos. Em infraestrutura, agricultura e economia, por exemplo, há muita exigência. Mas, na área ideológica, a cobrança é apenas ideológica. Essas quatro áreas, até agora, ficaram intocadas.

Por quê?
A questão é com o próprio presidente. Precisamos saber até que ponto ele sustenta algumas ideias por convicção ou se por um cálculo eleitoral. Não me arrisco a fazer qualquer previsão. Pode ser que Bolsonaro conclua que, para a sua reeleição em 2022, a ala ideológica já deu tudo o que tinha que dar. Outra coisa que pode pesar é se esses eleitores terão ou não alternativa dentro dos setores mais ideológicos. Tudo vai depender de como o panorama da eleição brasileira se apresentar.

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