Renda Cidadã ou Bolsa Saramandaia?

02.10.20
Roberto Ellery

Austeridade remete à ideia de cortes drásticos de gastos e medidas duras como ocorreram não faz tanto tempo em países europeus. Por aqui é diferente. Desde 2015, sucessivos governos anunciam ajustes fiscais radicais, mas os dados contam outra história. Em 2014 o governo foi acusado de promover uma festa fiscal para se reeleger, o gasto primário foi de 1,42 trilhões de reais (valores de agosto de 2020), bem acima dos 1,33 trilhões de reais de 2013. O ajuste fiscal de 2015 trouxe o gasto de volta aos níveis de 2013, eliminando as gorduras de 2014? Não. Na verdade, o gasto em 2015 foi maior que em 2014. Nem com as pequenas quedas em 2016 e 2017 o gasto voltou ao nível de 2013, e em 2018 o gasto voltou a subir, chegando a 1,48 trilhões em 2019. Criamos o “austericídio” que aumenta gastos! Existem explicações válidas. A principal é a rigidez do orçamento. Mas explicações não anulam a existência, muito menos os efeitos de um fenômeno.

O que vimos na segunda-feira foi mais um desses ajustes que não ajustam. O governo quer ampliar o Bolsa Família, mas como pagar a conta? Mesmo que o governo resolva aumentar a carga tributária, o teto de gastos impediria gastos adicionais. A alternativa seria cortar algum outro gasto. Não faltam sugestões: abono salarial, seguro defeso, salário família, salários de servidores, pensões etc. Cada uma dessas alternativas causa reações dos grupos atingidos. Normal. Ninguém quer perder. Caberia ao governo fazer escolhas e arcar com os custos. Como em um romance de García Márquez ou – talvez mais apropriado – uma novela de Dias Gomes, nosso realismo é mágico, tudo é possível.

Assim, o governo resolveu usar o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, o Fundeb, e os precatórios para bancar o programa com o discurso de não prejudicar ninguém e não furar o teto de gastos. No lugar de enfrentar o coração saindo pela boca dos afetados pelos cortes ou um mercado pegando fogo por causa do furo no teto de gastos, o governo resolveu dizer que pode tirar dinheiro do nariz.

O primeiro truque, usar o Fundeb, nada mais é do que driblar o teto. Os gastos do Fundeb ficaram fora do teto e, recentemente, o Congresso aprovou um aumento considerável dos recursos destinados a esse fundo. O plano é pegar parte desse dinheiro e turbinar o Bolsa Família, um programa cujos gastos estão incluídos no teto. Se a moda pega, um próximo governo pode usar o fundo para dar aumentos a professores universitários com o argumento que esses professores formam professores do ensino básico ou para policiais em razão da segurança das escolas. No realismo mágico vale tudo.

O segundo truque é ainda mais grave. Precatórios são títulos recebidos por quem ganha causas contra o poder público — ou seja, o precatório é o reconhecimento judicial da dívida do agente público com a empresa ou indivíduos que ganharam uma ação contra o governo. Não pagar precatório é o famoso “devo, não nego, pago quando puder”. Usar recursos destinados a pagar precatórios para financiar um programa do governo significa que a cada ano empresas e famílias não vão receber seus direitos. Ou seja, vão tomar calote.

Como não vivemos em Saramandaia, os calotes acumulados não somem no ar e, cedo ou tarde, terão de ser pagos. O plano de usar precatórios para bancar programas do governo lembra muito um outro plano de atrasar pagamentos a bancos federais para bancar outros gastos. Plano que, aliás, terminou em impeachment e crise fiscal.

A verdade é que, por mais méritos que o novo programa possa ter, não é hora de aumentar gastos. Pelo contrário, deveríamos estar discutindo redução de gastos. Antes da pandemia o Brasil já era um dos países emergentes mais endividados do mundo. De lá para cá, a situação fiscal piorou muito. Os gastos com a pandemia devem acabar quando a pandemia acabar. Se o governo não tem liderança política para enfrentar os prejudicados por cortes para financiar o Renda Cidadã, o melhor a fazer é seguir a ordem de Jair Bolsonaro para continuar com o Bolsa Família e dar cartão vermelho para quem insistir no novo programa. O problema é que, no realismo mágico, o cartão vermelho pode assustar menos do que o amarelo, e ordens definitivas não duram nem mesmo um dia.

Roberto Ellery é economista e professor do Departamento de Economia da Universidade de Brasília (UnB). Foi pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). É especialista em economia do setor público, ciclos de negócios e crescimento econômico

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  1. Muito bem explicado,apenas o Mintomaníaco por motivos óbvios continua a sua encenação de rei do gado perdido em tiroteio. É um ignorante atirando para todos os lados no intuito, único e exclusivo, de escamotear os seus negócios sujos e de sua adorada Familícia.

  2. No Brasil só há dinheiro para partidos políticos, magistrados e legisladores. Ou seja, só para a nata da sociedade. O povo que se lixe.

  3. Bem formado e muito bem informado, Roberto Ellery é, acima de tudo, um baita comentarista econômico. É um prazer conhecê-lo.

    1. Acabei de ouvir o presidente proclamando a população , pra achar solução pela falta de dinheiro. Quando não-perecível dinheiro o cidadão comum costuma achar solução vendendo o que tem lote , apartamento , casa e assim por diante. Façam um balanço dos bens imóveis do país cada estado faz o seu . Tem áreas cobiçadíssimas pelas construtoras. Vendem , garanto que terão grandes surpresas

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