Os poderes do rei Davi
Como dizia um famoso bordão de um programa humorístico do final da década de 1990, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, “só pensa naquilo”: a reeleição. O tema domina os encontros políticos do senador, dentro e fora da agenda oficial, com integrantes dos três poderes da República. O parlamentar está convencido de que, mesmo ao arrepio da Constituição, poderá ser reconduzido ao cargo. Nas últimas semanas, ele valeu-se da cadeira que ocupa para conseguir o apoio à sua empreitada do Palácio do Planalto, de setores do Supremo Tribunal Federal e até de parlamentares da oposição.
Enquanto não é emitido o sinal verde para a mudança nas regras do jogo com a peleja em andamento, Alcolumbre acumula poder na casa. Durante a pandemia do coronavírus, com as comissões suspensas e o plenário deliberando de forma remota, ele virou rei. É quem decide sozinho o que será votado e quais parlamentares irão obter as relatorias dos principais projetos em tramitação. A mesa diretora nem sequer se reúne. Ao contrário da Câmara, não existe um colégio de líderes formalmente instituído, onde a pauta deveria ser discutida.
Para além da ordem do dia, sobre a qual Davi Alcolumbre decide praticamente tudo sozinho, até mesmo cargos em comissão na estrutura do Senado foram ocupados por apadrinhados do presidente. As canetadas em favor do Amapá, seu estado natal, chegaram a causar incômodo entre líderes partidários. O texto aprovado no Senado que tratava da destinação de 60 bilhões de reais a estados e municípios em razão da pandemia guindou o Amapá a vice-líder nos repasses por habitante. A tentativa de agradar a base eleitoral, no entanto, quase saiu pela culatra. A iniciativa acabou derrubada na Câmara. No retorno do texto ao Senado, porém, Alcolumbre fez valer seu plano original.
O loteamento de outro pacote de verbas que deveria ser destinado ao combate à Covid-19, mas que serviu para senadores contemplarem seus redutos, também teve a bênção de Davi. Não foi a primeira nem será a última vez em que um presidente do Senado terá o poder de definir o destino de recursos do governo. Mas a caneta de Davi tem pesado: um ministro a par das negociações em torno da destinação de cerca de 6 bilhões de reais adicionais para investimentos dos ministérios do Desenvolvimento Regional e da Infraestrutura — comandados por Rogério Marinho e Tarcísio de Freitas — tem dito que “1 bilhão (em emendas) é para o Davi”.
Ao mesmo tempo que é incensado pelo entorno de Bolsonaro, Davi Alcolumbre usa o poder da caneta para angariar apoio ao seu intento de continuar no comando da casa por mais dois anos. No início do mês, num claro jogo de cena, ele fez circular a informação de que estava contrariado com o gesto da senadora Rose de Freitas, sua aliada, de apresentar uma proposta de emenda constitucional autorizando a reeleição dos presidentes da Câmara e do Senado. Conversa fiada. Dos oito senadores que mais relataram projetos durante a pandemia, por decisão do próprio Davi – o que significa que são parlamentares da estrita confiança dele –, somente dois não assinaram a proposta.
Há uma relação de causa e efeito entre uma coisa e outra. Quem devota apoio ao presidente, é premiado com postos de destaque na estrutura da casa. Assim, como em outras épocas fizeram Renan Calheiros, José Sarney e outros que passaram pela cadeira, o senador montou uma espécie de “clube de prediletos”. Fazem parte da turma os líderes do governo no Senado, Fernando Bezerra, e no Congresso, Eduardo Gomes, além de Eduardo Braga, Izalci Lucas, Antonio Anastasia, Marcos Rogério, Zenaide Maia e a própria Rose de Freitas.
Os senadores do PT também estão prestes a se associar ao clube. Nos últimos dias, a legenda deixou clara sua preferência pela reeleição de Davi Alcolumbre. “Melhor Alcolumbre do que um aventureiro qualquer do Muda Senado”, avaliou um expoente petista. Da tribuna do plenário, na quarta-feira, 23, o líder do PT no Senado, Rogério Carvalho, criticou o que chamou de “discurso fácil e moralista” entoado por colegas e declarou apoio ao senador do Amapá em seu propósito de continuar no poder por mais dois anos. “Se eu tiver a oportunidade de dar um voto em vossa excelência, darei com muito gosto.” No mesmo discurso, o líder do PT aproveitou para repisar ataques e teorias conspiratórias sobre a Lava Jato. “A Lava Jato é uma farsa, destruiu a economia do Brasil, as nossas grandes empresas, a serviço dos Estados Unidos.”
O grupo Muda Senado, composto por 20 parlamentares, resolveu reagir depois que soube de um jantar organizado pela senadora Kátia Abreu na segunda-feira, 21, em que esteve presente, ao lado de integrantes do cúpula do MDB, como Renan Calheiros e Eduardo Braga, ninguém menos do que o ministro do Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal. Ele é justamente o relator da ação em tramitação no Supremo que pode abrir caminho para Davi Alcolumbre disputar a reeleição ao Senado, em fevereiro do ano que vem. Apesar das negativas de Gilmar, houve quem dissesse que um dos temas debatidos no jantar foi a ação movida pelo PTB que, apesar de oficialmente ter sido usada para tentar barrar a reeleição, pode acabar gerando efeito inverso. “O STF está aberto a tudo e todos”, afirmou Kátia Abreu, dois dias depois do convescote.
O entendimento de que a reeleição da cúpula do Congresso é assunto que cabe apenas ao Legislativo ganhou adeptos entre diferentes alas do Supremo. A posição também foi defendida em manifestação da Advocacia-Geral da União e em parecer da Procuradoria-Geral da República enviados à corte nos últimos dias. O caso deve ser julgado pelo plenário do STF nos próximos meses.
O discurso de Alcolumbre soa como música aos ouvidos de certos ministros do tribunal: ele promete manter a agenda anti-Lava Jato e não importunar os togados do Supremo com pedidos inconvenientes de CPIs ou até mesmo de impeachment – hoje há vários requerimentos nesse sentido parados no gabinete do todo-poderoso do Senado. O assunto, aliás, tem feito parte das conversas sobre o direito de Alcolumbre de esticar sua permanência. De forma cifrada, já chegaram a ministros do Supremo recados segundo os quais um aventureiro sentado na cadeira — para usar o termo empregado pelo líder petista – pode ser perigoso para o equilíbrio entre os poderes. O subtexto é sobre o risco de um senador do Muda Senado, por exemplo, ser eleito e acabar dando andamento aos pedidos de impeachment de ministros da corte hoje parados.
Os dados ainda estão rolando. Enquanto o senador do Amapá e seus apoiadores estiveram em um jantar com Gilmar, a senadora Simone Tebet, que não pertence oficialmente ao Muda Senado, mas transita com desenvoltura entre a ala anti-Davi, foi escalada para uma tête-à-tête com o ministro Alexandre de Moraes. A conversa, no entanto, se ateve aos preceitos constitucionais envolvidos na questão. Já o senador Oriovisto Guimarães fez chegar aos ouvidos de outros ministros do STF que, em caso de vitória de algum senador ligado ao Muda Senado, não haveria disposição para uma “guerra institucional”.
Os sinais, porém, são divergentes. Nesta semana, coube a outro integrante do grupo que defende a moralização do Senado, o senador Lasier Martins, colocar o dedo na ferida. Ele cobrou de Davi Alcolumbre a análise dos pedidos de impeachment de ministros do STF. Lasier perguntou com base em qual norma Davi Alcolumbre “se dá ao direito de avaliar sozinho” os requerimentos, arquivando-os sem sequer submetê-los à mesa diretora. O senador gaúcho afirmou que o assunto gera “clamor nacional” e lembrou que “é da competência do Senado” avaliar pedidos de impeachment de ministros em caso de crime responsabilidade. “A Mesa responderá oportunamente”, limitou-se a responder Alcolumbre, a partir de seu trono – ops, de sua cadeira. É mais do que sabido, porém, que, no dicionário de Alcolumbre, “oportunamente” significa “nunca”.
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