Divulgação/Agência Câmara

Caras excelências

De salário e verbas de gabinete aos pequenos luxos do poder: quanto, afinal, deputados e senadores custam para o contribuinte brasileiro
25.09.20

Enquanto metade dos brasileiros vive com apenas 413 reais por mês, os deputados federais e senadores eleitos para representá-los ganham 33,7 mil reais mensais. O abismo entre a vida real e o Congresso já seria gritante se as discrepâncias parassem por aí. Mas, além do salário 80 vezes maior, os parlamentares ostentam uma lista de regalias que se torna ainda mais indecorosa em um país de miseráveis. O contracheque de elite soma-se a uma extensa lista de benesses que faz com que um deputado possa viver no fausto sem gastar nenhum centavo do próprio salário. A Câmara reembolsa, por exemplo, gastos com restaurante, motorista, aluguel de carro, combustível, táxi, segurança particular, passagens aéreas, hospedagem, conta de telefone, correios, cursos e até fretamento de jatinhos. Ainda repassa 4.253 reais mensais para despesas com moradia – valor suficiente para alugar um imóvel em áreas nobres de Brasília.

A reforma administrativa, que começou a tramitar no Congresso no último dia 3, não atinge os parlamentares e em nada afeta a vida nababesca das excelências. A Câmara promete fazer uma reestruturação que vai alcançar os servidores da casa e enxugar os altos gastos com pessoal. Mas a proposta não retira nenhum privilégio da maior casta brasileira, justamente aquela composta pelos representantes do povo. Do ponto de vista técnico, fazer uma revisão desses gastos seria missão das mais triviais para os parlamentares. Boa parte das benesses não está prevista na Constituição e, para reduzi-las ou até mesmo extingui-las, não seria necessário aprovar uma proposta complicada. Bastaria a edição de atos da Mesa Diretora. Do ponto de vista político, é praticamente inviável porque ninguém quer cortar na própria carne, mesmo que seja só a gordura.

Pelo contrário. A cada quatro anos, quando não buscam alçar voos mais altos, com candidaturas para cargos no Executivo, os parlamentares cabalam votos para renovar seus mandatos e, com isso, garantir a manutenção das regalias. Para alcançar o objetivo, usam parte significativa da verba à disposição para autopromoção. Dos 87,1 milhões de reais gastos este ano com cota parlamentar na Câmara, cerca de um terço foi usado para fazer publicidade do próprio mandato. Os deputados contratam serviços de mídia digital, assessoria para redes sociais e gastam uma infinidade de dinheiro público para, por exemplo, imprimir folhetos em papel couché sobre suas realizações.

Mesmo com a pandemia e com a suspensão temporária das sessões presenciais na casa, as despesas com a cota parlamentar não tiveram uma queda condizente com o cenário de quarentena. Entre janeiro e agosto deste ano, a despesa mensal média foi de 10 milhões de reais. No ano passado, os deputados gastaram cerca de 16 milhões de reais por mês – um total de 192,4 milhões de reais de janeiro a dezembro de 2019.

DivulgaçãoDivulgaçãoAlém do salário de 33,7 mil reais, deputados podem gastar 40 mil reais por mês com a cota parlamentar e ainda dispõem de 111 mil para contratar assessores
Em tese, a crise da Covid-19 impôs o isolamento social a boa parte dos parlamentares, mas os valores de reembolso pela compra de gasolina e de querosene para jatinhos colocam essa teoria em xeque – ou indicam que pode haver algo de errado por trás das prestações de contas. Os deputados federais gastaram este ano 14,9 milhões de reais com aluguel de carros, principalmente modelos de luxo, além de 6,2 milhões de reais com combustível. Com esse dinheiro, é possível comprar 1,3 milhão de litros de gasolina e percorrer até 24,8 milhões de quilômetros, o equivalente a 618 voltas em torno da Terra. Na lista dos deputados que mais utilizaram a cota em 2020, os três primeiros são do Centrão, aquele agrupamento de partidos versado na prática de trocar votos por verbas e cargos. João Maia, do PL do Rio Grande do Norte, apresentou notas fiscais no total de 363 mil reais. Wellington Roberto, líder do mesmo partido na casa, gastou 341 mil reais só neste ano. Completa a lista Silas Câmara, do Republicanos, com despesas que somam 333 mil reais. Os três primeiros do ranking gastaram a maior parte dos valores fazendo publicidade dos próprios mandatos.

Segundo a Associação Contas Abertas, que monitora os gastos de dinheiro público, o funcionamento da Câmara e do Senado custa 30,7 milhões de reais por dia ao contribuinte. “A democracia não tem preço, mas o custo do Congresso é muito elevado”, afirma Gil Castello Branco, fundador e secretário-geral da entidade. Para chegar a esse valor, foram somados os orçamentos da Câmara e do Senado para 2021 – respectivamente 6,4 bilhões e 4,7 bilhões de reais. Os dados fazem parte do projeto de Lei Orçamentária Anual enviado pelo Ministério da Economia no mês passado.

Levando em consideração os gastos com os salários e com a estrutura exclusivamente à disposição dos deputados, cada uma das 513 excelências da Câmara custa até 189 mil reais por mês – um total de 1,1 bilhão de reais por ano. Além do salário de 33,7 mil reais, eles podem gastar uma média de 40 mil reais por mês com a cota parlamentar. O valor varia de acordo com o estado de origem e ocupantes de cargos de liderança têm direito a cotas mais elevadas. Cada deputado dispõe de 111.675,59 reais por mês para pagar salários de até 25 secretários parlamentares, que trabalham em Brasília ou nos respectivos estados. Eles são escolhidos pelos deputados e contratados com salários de 1.025,12 reais a 15.698,32 reais. O custo para a Câmara é ainda maior, já que encargos trabalhistas como 13º, férias e auxílio-alimentação desses comissionados não são cobertos pela verba de gabinete. Entram ainda na soma os 4.253 reais mensais para gastos com moradia pagos aos deputados. Quem preferir pode ocupar um dos apartamentos funcionais da Câmara, localizados nas melhores quadras do Plano Piloto de Brasília e com metragens que superam 200 metros quadrados. Atualmente, dos 513 deputados, só 45 renunciaram ao auxílio-moradia e ao uso de apartamento funcional.

No Senado, o custo por parlamentar é ainda maior do que na Câmara: por volta de 294 mil reais por mês. Esse valor inclui o salário de 33,7 mil reais, o auxílio-moradia de 4.253 reais e a cota para exercício da atividade de até 15 mil reais mensais. Soma-se a esse montante a verba para contratação de servidores comissionados, que, para a maioria, pode alcançar 227,1 mil reais. São oferecidos aos senadores ainda serviços médico-hospitalares, odontológicos e laboratoriais de ponta. Essa despesa cresceu vertiginosamente nos últimos anos e praticamente dobrou entre 2016 e 2019, quando saltou de 7,1 milhões para 13,9 milhões de reais – até agosto deste ano, o Senado já havia desembolsado 7,9 milhões de reais com a assistência à saúde.

DivulgaçãoDivulgaçãoCada senador custa 294 mil por mês: auxílios diversos, serviços médicos de ponta e carros oficiais à disposição estão entre as regalias
A estimativa de custo de 294 mil reais mensais por senador é feita com base no teto de despesas possíveis para um senador sem cargo de liderança de partido ou bloco. Muitos parlamentares enxugaram seus gabinetes e conseguiram reduzir substancialmente esses valores. Mas há brechas para despesas ainda maiores. Os líderes de bancadas podem dobrar o valor da verba para contratação de comissionados. Nesses casos, o custo de um gabinete pode superar os 521 mil reais.

O gabinete do senador Izalci Lucas, do PSDB do Distrito Federal, o mais inchado da casa, é um exemplo. Ele conta com 79 comissionados, além de cinco servidores concursados em seu gabinete e em seu escritório de apoio. A folha de pagamento desse batalhão custa 460 mil reais por mês, ou quase 6 milhões de reais por ano, sem contar os encargos trabalhistas, como férias e auxílios.

As balizas básicas fundamentais sobre a atividade parlamentar, como a remuneração e as prerrogativas dos deputados e senadores, estão expressas na Constituição. Para alterá-las, seria necessária a aprovação de uma proposta de emenda constitucional, com votos da maioria qualificada do Congresso. Não é o caso das regalias, que estão previstas apenas em atos da Mesa Diretora, como a cota parlamentar para passagens, contas de telefone, correios e combustível. Ou seja, bastaria uma simples canetada para suspendê-las. Mas enquanto imperar a lógica política norteada pela eterna busca pela reeleição, as chances de isso acontecer são remotas.

Luis Macedo/Câmara dos DeputadosLuis Macedo/Câmara dos DeputadosMaia apresentou uma proposta de reestruturação administrativa, mas não mexeu nas mordomias: discussão sobre assessores ficou para 2023
Em países desenvolvidos, o quadro é outro. Os políticos não têm direito, por exemplo, a casa, carro e outras benesses. “Na Suécia, por exemplo, muitos parlamentares andam de ônibus. Quanto mais atrasado um país, mais privilégios sua elite política ostenta”, diz o professor de direito constitucional da Universidade de Brasília, Mamede Said. Na Câmara, as atuais regras para uso de cota parlamentar foram instituídas por um ato da mesa que unificou a verba indenizatória, a cota de passagens aéreas e a cota postal-telefônica. O saldo mensal não utilizado em um mês acumula-se ao longo do ano. No Senado, a cota para o exercício da atividade parlamentar foi instituída por outro ato, de 2011, e a lógica é a mesma.

No último dia 2, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, apresentou uma proposta de reestruturação administrativa interna. O projeto foi formulado a partir da contratação sem ônus de uma consultoria privada ligada ao Movimento Brasil Competitivo. O texto prevê a extinção de cerca de mil postos de servidores efetivos, além da definição de salários iniciais mais baixos para os futuros concursados – hoje, os técnicos e analistas da Câmara têm salários de elite, que facilmente superam o subsídio de um deputado.

Maia sinalizou com a ideia de reduzir o limite de 25 secretários parlamentares disponíveis para cada deputado federal. Mas, para evitar resistências à proposta, jogou a discussão sobre esse item do projeto para 2023, quando começará uma nova legislatura. Enquanto parlamentares resistirem a toda e qualquer iniciativa que possa reduzir suas benesses, a diferença entre a realidade do brasileiro e a dos representantes do povo no Congresso permanecerá obscena.

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