Carlos Fernandodos santos lima

O Brasil não é um país sério

18.09.20

Ninguém nasce vilão ou corrupto, por certo! Se o ser humano não é uma folha em branco, nem um bom selvagem, também não nasce o lobo do próprio homem. Há muito de genético nas características humanas, mas sem dúvida o caráter é muito influenciado pelas circunstâncias de vida. O sucesso em muitos meios, por exemplo, exerce uma importante influência sobre as decisões morais. Quando se cresce em um ambiente social em que o reconhecimento está atrelado a valores positivos como credibilidade, honestidade e trabalho, certamente o resultado para a maior parte da população será também nesse sentido. Se os valores forem em caminho oposto, não se pode exigir outro resultado que a subserviência e o servilismo dos indivíduos.

Assim, num país em que a política não reconhece sequer a lei como limite, o sucesso na vida pública, para muitos, parece ser somente atingível por um comportamento amoral e subserviente aos poderosos, para dizer o mínimo. E é isso que se constata, infelizmente, na alta administração do serviço público. Existe há muito tempo um aparelhamento do estado para servir a interesses de pessoas e grupos poderosos, e isso acontece justamente pela colocação de pessoas em postos-chave dos órgãos de controle. Enfim, temos instituições que instrumentalizam o ditado: uma mão lava a outra, e as duas lavam a cara.

Vemos isso nos postos-chave da República. Temos um ministro da Saúde que desconhece completamente essa área, mas que foi colocado lá por cumprir ordens cegamente, mesmo as mais absurdas, como militar da ativa que é. Vemos um procurador-geral da República cuja função é a de conter investigações independentes e manter sob controle o Ministério Público Federal. Assistimos a um ministro da Justiça ser demitido por se opor ao uso da Polícia Federal por interesses políticos e pessoais do presidente da República. Disputam o ministro da Justiça e o advogado-geral da União para ver quem vai propor à Justiça medidas de proteção de particulares simpáticos a Jair Bolsonaro. E esses comportamentos indecorosos não são privilégio dos servos do presidente da República, mas se espalham por todas as esferas do poder e da federação.

Assim acontece especialmente com o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Esse órgão, criado para controlar a administração do Ministério Público nacional, foi totalmente cooptado pelos políticos para espalhar o terror sobre promotores de Justiça e procuradores da República que ousem enfrentar esse estado de coisas espúrio. E fazem isso em evidente abuso e desvio de finalidade, o que é absolutamente ilegal. Como a operação Lava Jato é o principal entrave para o regabofe com o dinheiro público e o grande temor dessa classe de aproveitadores, os principais alvos são justamente os procuradores da República dessa investigação. Tomemos, então, como exemplo do aparelhamento estatal a perseguição contra Deltan Dallagnol e Diogo Castor de Mattos.

Deltan Dallagnol é conhecido nacionalmente como o coordenador da força-tarefa Lava Jato em Curitiba, a investigação original que se espalhou pelo Brasil e pelo mundo. Nenhum outro procurador desperta tanto ódio em nossas elites políticas quanto ele, pois não somente representa a investigação, mas também a campanha por mudanças legislativas que atacam a corrupção como forma de financiamento político. Dessa forma, há um desejo unânime dessas forças políticas em punir Dallagnol, unindo Renan Calheiros, Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Augusto Aras, dentre outros, no objetivo de tornar a sua punição um modelo. Para isso, o plano foi o de tomar o CNMP e desvirtuá-lo de sua finalidade.

A maior prova desse desejo aconteceu em setembro de 2019, quando, sob os auspícios de Renan Calheiros, o Senado Federal deixou de reconduzir os conselheiros Lauro Machado Nogueira e Dermeval Farias, que tinham votado anteriormente contra a punição de Deltan. Era corrente em Brasília que a recondução somente aconteceria com o compromisso dos conselheiros em puni-lo, e a não recondução desses dois conselheiros, justamente representantes do Ministério Público no CNMP, somente confirmou o boato. Não bastasse isso, desde março o Senado Federal vem bloqueando a confirmação de três vagas para aquele conselho, sendo duas justamente aquelas reservadas ao Ministério Público.

Observe-se que os nomes para essas vagas foram sabatinados e aprovados pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado em março deste ano, mas desde então aguardam a sua aprovação pelo plenário daquela casa. O abuso é tão flagrante que obrigou a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) a entrar no STF com ação para obrigar o Senado a votar as indicações pendentes e restabelecer o equilíbrio entre membros internos e externos ao Ministério Público, evitando-se que o CNMP se converta em instrumento de limitação à independência de promotores e procuradores.

Foi justamente essa composição manca e punitivista, comandada pelo serviçal dos senadores, o conselheiro Bandeira de Mello, que tentou de todas as maneiras afastar Dallagnol da operação Lava Jato, ameaçando-o, inclusive por postagens contra o voto fechado para a presidência do Senado – o que lhe é garantido pela cidadania – de ser removido de Curitiba para uma distante procuradoria no país. Agiram como se sua lotação em Curitiba — e especialmente seu comando na Lava Jato — tivesse algo a ver com as postagens realizadas. Nem sequer se davam ao trabalho de esconder seu objetivo de usar a medida cautelar como punição. Foram disso impedidos por decisão de Luiz Fux de suspender os efeitos de punição anterior contra Deltan, bem como pela decisão do procurador de se afastar da operação para cuidar da saúde de sua filha.

O caso do procurador da República Diogo Castor é igualmente emblemático do interesse em punir membros da Lava Jato. A singeleza dos fatos, a aceitação pelo procurador de demanda de movimentos sociais para ajudar no pagamento (4 mil reais pagos de seu próprio bolso) de um cartaz em homenagem à investigação, no qual se dizia apenas “bem-vindo à Curitiba, aqui a lei se cumpre”, é absolutamente desproporcional às penalidades sugeridas – inclusive demissão – para a abertura de procedimento disciplinar.

Além disso, não fossem esses mesmos fatos já terem sido arquivados anteriormente pela própria corregedoria do CNMP e pela corregedoria do MPF, o procedimento disciplinar tem origem no hackeamento ilegal de mensagens e em depoimentos produzidos no nefasto inquérito secreto de Alexandre de Moraes no STF – e que, portanto, nada tem a ver com o objeto de investigação autorizado pelo plenário do Supremo, as fake news. Tudo isso indica claramente que se busca apenas fazer de Diogo Castor outro exemplo do que acontece com aqueles membros do Ministério Público que cumprem seus deveres constitucionais.

Diogo Castor e Deltan Dallagnol representam o melhor do Ministério Público, procuradores da República comprometidos com os valores da nossa Constituição. É sintomático também que sejam ambos os idealizadores da campanha pública das “10 Medidas contra a Corrupção”, que incomodou tanto os parlamentares. Mas enquanto estes estão protegidos pelo foro privilegiado e pela negativa da abertura de procedimentos ético-disciplinares, promotores e procuradores estão sujeitos à perseguição inaceitável em um país sério. Entretanto, infelizmente, com o aparelhamento dos diversos órgãos do estado pelos interesses privados e ilegais de nossa elite
política corrupta, o que resta é concordar que le Brésil n’est pas un pays sérieux – o Brasil não é um país sério.

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