Agência BrasilDias Toffoli e Alexandre de Moraes: unidos pelo inquérito do fim do mundo

Em causa própria

Após a descoberta de menções a Toffoli em e-mails da Odebrecht, o “inquérito do fim do mundo” foi usado para apurar secretamente se a Lava Jato tinha ministros do STF na mira
18.09.20

Ao se despedir da presidência do Supremo Tribunal Federal, na semana passada, o ministro José Antonio Dias Toffoli ganhou elogios de alguns setores da opinião pública pelo compromisso de sua gestão em favor da democracia. Houve até quem citasse o inquérito do fim do mundo, aquele que ele instaurou de ofício e entregou nas mãos do colega Alexandre de Moraes, como um marco de seu compromisso em defesa das instituições. O inquérito, em curso até hoje, teve várias utilidades desde sua instauração, em março do ano passado. Uma delas, como bem sabe o nosso leitor, foi censurar uma reportagem de Crusoé que revelou o teor de um documento enviado à Lava Jato pelo delator Marcelo Odebrecht. Nesse documento, Marcelo informava ser Dias Toffoli o misterioso personagem que, em e-mails internos da empreiteira, ele tratava como o “amigo do amigo de meu pai”. Toffoli, logo após a publicação da reportagem, enviou uma mensagem a Alexandre pedindo providências e não demorou para que fosse expedida a ordem de censura, sob o argumento de que a revista publicara uma notícia mentirosa – um argumento tão falso que, dias depois, faria o próprio Alexandre voltar atrás na decisão.

Apesar dos evidentes excessos do inquérito, Toffoli conseguiu emplacar com sucesso a narrativa de que o inquérito foi e é um instrumento crucial para deter arroubos do governo de Jair Bolsonaro. Sinais tresloucados do próprio presidente e de figuras de seu entorno alimentavam o fantasma de que o ex-capitão do Exército poderia intervir nos demais poderes. Falas como aquela de Eduardo Bolsonaro pregando que bastariam “um cabo e um soldado” para fechar o Supremo, por exemplo, contribuíram para o temor. De fato, um dos propósitos do inquérito foi criar um mecanismo para averiguar em que medida o próprio governo vinha estimulando seus apoiadores a minar o STF. Mas havia outros objetivos, menos visíveis para aqueles formadores de opinião que dias atrás aplaudiam Toffoli em sua despedida.

O então presidente do Supremo e outros ministros acreditavam que, para além da barulheira da militância bolsonarista, estava em curso uma maquinação ainda mais complexa, com participação de integrantes da Operação Lava Jato, para minar uma parcela da corte. Mais do que isso, eles tinham certeza de existência de investigações ultrassecretas, realizadas à sorrelfa, destinadas a apanhá-los. É justamente aí que fica exposta a outra face da investigação tocada pelo gabinete de Alexandre de Moraes, que Crusoé revela nesta reportagem: ela foi usada para mapear em que medida a Lava Jato estava buscando elementos desabonadores contra ministros do próprio Supremo.

Documentos sigilosos do inquérito mostram que, logo após vir a público o documento em que Marcelo Odebrecht dizia ser Dias Toffoli o “amigo do amigo de meu pai”, os encarregados do inquérito, por ordem de Alexandre, iniciaram uma corrida. Queriam descobrir o que mais tinha sobre Toffoli no material em poder da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba, que havia tido acesso a e-mails até então inéditos trocados por executivos da Odebrecht. A medida, ao menos em tese, não guardava relação com o objetivo do inquérito, que nas palavras do próprio Toffoli, na portaria que o instaurou, deveria apurar fatos e infrações relacionadas a “notícias fraudulentas (fake news), denunciações caluniosas, ameaças e infrações revestidas de animus calumniandi, diffamandi e injuriandi, que atingem a honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros e familiares”.

ReproduçãoReproduçãoAdriano Maia: ainda em abril do ano passado, ele foi ouvido no inquérito
Exatamente em 12 de abril de 2019, o dia da publicação da reportagem de capa de Crusoé que viria a ser censurada, nos autos do inquérito do fim do mundo o desembargador Cesar Mecchi Morales, magistrado a serviço do gabinete de Alexandre, despachou para Curitiba um ofício em que pedia ao delegado Filipe Pace, da Lava Jato, que remetesse para o STF uma cópia do inquérito onde estaria a mensagem relacionada a Toffoli. No documento, o magistrado dava ao delegado o prazo de 48 horas para enviar o material relacionado à investigação, “com todos os anexos, inclusive os sigilosos e termos de delação”. “Para preservar o caráter sigiloso do inquérito, solicito que a resposta seja encaminhada diretamente a este gabinete”, emendava o texto do despacho, enviado ao QG da Polícia Federal na capital paranaense.

Era sexta-feira, e aquele era um primeiro movimento do gabinete de Alexandre de Moraes para saber, por meio do polêmico inquérito, até que ponto ia a investigação e se dela poderiam constar fatos comprometedores em relação a Toffoli. O ministro, por óbvio, não era investigado, nem poderia ser. O que havia era a menção a seu nome no material. Conforme está registrado no anexo 2 do procedimento secreto sob a batuta de Alexandre, o delegado Pace enviou todo o material para Brasília no início da semana seguinte, em um pen drive, depois de levar a requisição do Supremo ao conhecimento do juiz do caso, Luiz Antônio Bonat. Bonat, claro, chancelou a remessa do material para o Supremo, realçando que alguns documentos dos autos estavam protegidos por “sigilo em maior grau de restrição”.

Razão de todo o frisson, o documento em que Marcelo Odebrecht dizia ser Toffoli o “amigo do amigo de meu pai” trazia para a história um personagem importante, Adriano Sá de Seixas Maia, ex-diretor jurídico da Odebrecht. No e-mail que levou ao questionamento, Marcelo perguntava a um outro diretor da empreiteira, com cópia para Maia: “Afinal vocês fecharam com o amigo do amigo de meu pai?”. No esclarecimento enviado à Polícia Federal, ele deu o contexto. “Refere-se a tratativas que Adriano Maia tinha com a AGU sobre temas envolvendo as hidrelétricas do rio Madeira. ‘Amigo do amigo de meu pai’ se refere a José Antonio Dias Toffoli. A natureza e o conteúdo dessas tratativas, porém, só podem ser devidamente esclarecidos por Adriano Maia, que as conduziu”, escreveu.

Assim como no depoimento em vídeo prestado em maio passado a procuradores do grupo de trabalho da Lava Jato na Procuradoria-Geral da República, Marcelo jogava para Adriano Maia a responsabilidade de explicar os detalhes do relacionamento da empreiteira com Dias Toffoli, que à altura da mensagem – julho de 2007 — era advogado-geral da União. Logo após a publicação da reportagem de Crusoé, Maia passou a ser freneticamente procurado pelo Supremo para prestar esclarecimento nos autos do inquérito do fim do mundo. Ao ouvi-lo, por óbvio, seria possível dirimir dúvidas sobre o potencial de dano que a história representava para Toffoli. Estaria Adriano disposto a causar embaraços para o ministro? Ele poderia estar agindo em linha com Marcelo Odebrecht? Teria dito algo comprometedor à Lava Jato? As perguntas pairavam no ar.

ReproduçãoReproduçãoMarcelo Odebrecht no depoimento aos procuradores: só Adriano pode explicar melhor relação com Dias Toffoli
O esforço do gabinete para tomar o depoimento formal de Adriano Maia tem início em 22 de abril, dez dias após a publicação da reportagem. A pedido do Supremo, a Justiça Federal em São Paulo tentou intimá-lo para prestar depoimento. A primeira tentativa restou infrutífera: Adriano havia se mudado dois meses antes. Brasília era informada de cada passo. O depoimento tinha que ocorrer logo. Autorizado por Alexandre, o desembargador Morales fora incumbido de ouvir o ex-diretor jurídico da Odebrecht. Ante a dificuldade de localizar Adriano Maia, Morales acionou a Polícia Federal para descobrir o novo endereço dele “com brevidade”, para “providenciar a oitiva determinada pelo ministro”. Depois das idas e vindas, e depois de o próprio Adriano pedir diretamente ao gabinete de Alexandre o adiamento do compromisso em razão de uma viagem, o depoimento finalmente ocorreu em 6 de maio de 2019. Pode-se dizer que, se havia uma interrogação no ar sobre o animus de Adriano, as três páginas com a transcrição do que ele disse ajudaram a dissipar as dúvidas e a desanuviar o ambiente.

Respondendo às perguntas do desembargador enviado por Alexandre de Moraes, na sala de audiências da 7ª Vara Criminal Federal de São Paulo, o advogado começou contando sua história na Odebrecht, onde entrou em 1994 como estagiário e, de 2009 até 2018, ocupou o posto de diretor jurídico. Depois, ele lembrou que coordenou as negociações do acordo de leniência da empreiteira e dos acordos de delação premiada de 78 executivos com a Lava Jato. É nessa parte do depoimento que começa a ficar clara a intenção de apurar, no âmbito do inquérito, se havia algum interesse especial dos investigadores em buscar informações sobre determinadas autoridades com foro privilegiado – como no caso concreto o depoente era Adriano Maia, e como a principal autoridade cujo nome aparecia naquela história era Toffoli, o pano de fundo estava dado. Adriano foi então indagado se durante o processo de negociação dos acordos de delação com a Lava Jato os procuradores haviam demonstrado interesse em informações sobre alguma autoridade em especial. “Ao longo das negociações referidas, houve indagações sobre eventual participação de autoridades de todas as esferas de poder, mas o depoente nunca presenciou insistência em inculpar qualquer pessoa ou autoridade em particular”, disse ele, conforme registrado no termo de depoimento.

A certa altura, Adriano Maia deixou entrever que, justamente por causa da negociação da delação, virou desafeto de Marcelo Odebrecht. O empresário-delator, que hoje trava uma batalha jurídica com o pai, Emílio Odebrecht, entendeu que uma parcela da alta cúpula da companhia, incluindo a turma que cuidava da área jurídica, fora poupada. “Marcelo Odebrecht passou a conduzir sua estratégia de defesa e os demais desdobramentos de forma autônoma, reduzindo significativamente os contatos com a empresa. Apesar dos (sic) acordos terem sido, no modo de ver do depoente, como já dito, bastante satisfatórios, alguns executivos passaram a tecer críticas ao trabalho desenvolvido pelo depoente, e esta foi a razão principal para seu afastamento voluntário do grupo Odebrecht”, resumiu.

Feito esse preâmbulo, o depoimento finalmente entrou no assunto principal: a menção a Dias Toffoli. “Sobre os e-mails do ano de 2007 recentemente divulgados, o depoente gostaria de prestar alguns esclarecimentos. Tratava-se de uma intensa disputa jurídica e empresarial para as licitações das usinas do rio Madeira, quais sejam, Jirau e Santo Antônio; era o maior projeto, em escala mundial, de interesse da Odebrecht no qual a empresa, em parceria com Furnas, vinha investindo recursos e estudos desde 2002; era também o maior empreendimento, até então, do Programa de Aceleração do Crescimento – PAC. Por isso, houve intensa disputa entre grupos empresariais com vistas à participação nesse empreendimento.”

Trecho do documento enviado pelo empreiteiro-delator à Lava Jato no ano passado: primeiro o e-mail, e depois (em destaque) as explicações de Marcelo Odebrecht
Adriano Maia, então, deu sua explicação para o papel da AGU, comandada por Dias Toffoli na época da mensagem. Ele disse que a Odebrecht apenas fez chegar ao órgão pareceres para tentar garantir seus direitos no processo de construção das usinas. No dia do depoimento, ainda era desconhecida a coleção de outros e-mails sobre o tema que, mais tarde, a Lava Jato reuniria – aqueles que Crusoé mostrou em sua edição da semana passada. Afirmou o ex-diretor jurídico da Odebrecht: “Para salvaguardar seus interesses, de forma a preservar a confidencialidade de dados obtidos nestes estudos e confirmar a legalidade de uma cláusula de exclusividade que detinha com o sistema Eletrobrás, a Odebrecht muniu-se de pareceres de grandes juristas na área de direito constitucional e administrativo, e apresentou-os à AGU, que conduzia a mediação para assegurar a alteração dessa cláusula, compatibilizando-a com a competitividade do certamente a ser realizado”.

Por fim, o advogado jogou água na fervura ao dizer que todo o processo foi conduzido de maneira regular. “A solução encontrada pela AGU foi um meio-termo, no qual a Odebrecht manteve a parceria com Furnas, mas teve de abrir mão da exclusividade que até então detinha com o sistema Eletrobrás, nele incluída Furnas. Durante esse processo de mediação, a empresa não foi favorecida, muito ao contrário. Nesse processo a Odebrecht acabou perdendo direitos que julgava ter, tanto que perdeu a licitação para a construção de Jirau e somente ganhou a de Santo Antônio após fazer muitas concessões e deságios. Não houve nenhuma irregularidade e muito menos favorecimento ao longo de todo esse processo.” O depoimento durou pouco menos de meia hora. Não demorou para que uma cópia do termo logo chegasse a Brasília e fosse juntada ao inquérito conduzido por Alexandre de Moraes. Logo depois, os autos foram para as mãos do ministro.

Não se tem notícia de que Maia tenha sido ouvido novamente após o depoimento prestado por Marcelo Odebrecht em maio passado a procuradores da Lava Jato na PGR, até porque a apuração preliminar, baseada no conjunto de mensagens sobre o tema com menções a Dias Toffoli, não avançou – antes de deixarem a operação por discordarem da postura do procurador-geral da República em relação à operação, os procuradores chegaram a propor a abertura de uma investigação junto ao Supremo Tribunal Federal para apurar as suspeitas, mas o plano aparentemente não teve a adesão de Augusto Aras. Ao falar aos investigadores, como mostrou Crusoé, Marcelo Odebrecht voltou a apontar Adriano Maia como peça-chave para compreender as tentativas de aproximação da Odebrecht com Dias Toffoli. “Quem pode falar sobre esse tema em primeira pessoa, só tem um, é Adriano”, disse o empresário.

Outros papéis obtidos por Crusoé mostram que Adriano Maia não foi a única testemunha ouvida no inquérito do fim do mundo, por ordem do gabinete de Alexandre de Moraes, com o objetivo de averiguar se a Lava Jato estava empenhada em investigar ministros do Supremo. Em outubro passado, Alexandre determinou que fossem tomados os depoimentos de dois alvos da operação, o auditor da Receita Federal Marco Aurélio Canal, ex-chefe de uma unidade do Fisco que fazia a interface com Lava Jato e acabou preso sob suspeita de participar de um esquema de corrupção, e o empresário Jacob Barata Filho, conhecido como o “rei do ônibus”. Nos dois casos, mostram os depoimentos, a ideia era entender se os investigadores estavam interessados em avançar sobre ministros da corte. Canal e Barata foram ouvidos no mesmo dia, 30 de outubro, pelo mesmo desembargador Morales, o magistrado instrutor do gabinete do ministro Alexandre.

Daniel Marenco/FolhapressDaniel Marenco/FolhapressJacob Barata Filho, que também foi indagado se a Lava Jato pressionou por declarações contra ministros
Curto, o depoimento de Barata, que estava em prisão domiciliar após ser alvo da força-tarefa da Lava Jato no Rio por envolvimento em tramoias com a turma de Sérgio Cabral, é esclarecedor. Barata, à época, respondia a três processos. A pergunta do emissário de Alexandre de Moraes não consta do registro, mas a resposta indica qual era a intenção do depoimento. O empresário, que tem laços familiares com a advogada Guiomar Feitosa, mulher do ministro Gilmar Mendes, respondeu assim: “Nesses processos somente teve contato com membros do Ministério Público Federal durante a audiências; em nenhum momento recebeu, sob qualquer circunstância, pressão ou mesmo sugestão de qualquer autoridade no sentido de prestar declarações desfavoráveis a qualquer magistrado, inclusive da Suprema Corte”.

O auditor Marco Aurélio Canal, por sua vez, foi ouvido em razão de outra celeuma. Meses antes, tinha vindo a público a existência de uma apuração interna da Receita sobre a evolução patrimonial de familiares de ministros de tribunais superiores com atuação em escritórios de advocacia. Entre os alvos do levantamento estavam Guiomar Feitosa, a mulher de Gilmar, e Roberta Rangel, mulher de Dias Toffoli. O próprio Gilmar chegou a dizer publicamente que a Lava Jato estaria por trás do trabalho. Em uma entrevista, ele citou nominalmente Marco Aurélio Canal como um dos supostos responsáveis pelo serviço. “Tenho curiosidade de saber quem mandou a Receita fazer (a apuração). O que se sabe é que quem coordenou essa operação é um sujeito de nome Marco Aurélio Canal, que é chefe de programação da Lava Jato do Rio de Janeiro. Portanto, isso explica um pouco esse tipo de operação e o baixo nível. Às vezes, querem atingir fazendo esse tipo de coisa. Estão incomodados com o quê? Com algum habeas corpus que eu tenha concedido na Lava Jato?”, afirmou o ministro à Globonews. Gilmar, assim como Toffoli, acreditava que tinha virado uma espécie de alvo colateral e oculto da Lava Jato.

Era justamente sobre o procedimento de apuração do Fisco que Alexandre de Moraes queria que o auditor prestasse esclarecimentos, nos autos do inquérito do fim do mundo. Primeiro, Marco Aurélio Canal negou participação no levantamento que mirou a evolução patrimonial de familiares de ministros. Depois, assim como Barata Filho, ele foi indagado sobre supostas pressões. A resposta foi resumida assim no termo de depoimento: “Em nenhum momento sofreu qualquer pressão para direcionar os trabalhos fiscalizatórios na Receita em relação a qualquer autoridade; tampouco tem conhecimento (de) que qualquer outro colega seu tenha recebido tal tipo de pressão ou mesmo sugestão de direcionamento dos trabalhos”.

Um dos piores capítulos da história do Supremo, o inquérito sigiloso, a pretexto de proteger a corte e a democracia, acabou por avançar sobre o livre funcionamento das instituições. Virou um instrumento de autoproteção não apenas contra ameaças de militantes voluntariosos, como o discurso oficial fazia crer, mas também para que as excelências soubessem, de antemão, se estavam expostas a riscos de outra ordem.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO