Adriano Machado/CrusoéO Congresso já empilha pautas para relaxar o combate à corrupção

A Itália é aqui

Na esteira da maior ofensiva contra a Lava Jato, o Congresso avança para enfraquecer ainda mais o combate aos malfeitos com dinheiro público: a lei de improbidade administrativa e até a lei de lavagem de dinheiro estão em risco
18.09.20

Criar e aprimorar leis são atribuições primordiais do Congresso. O papel desenvolvido pelos parlamentares é tão imperioso em uma democracia que foi descrito no primeiro artigo da Constituição: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos”. O texto não deixa dúvidas de que deputados e senadores são escolhidos para trabalhar em prol da sociedade e, para isso, devem agir em defesa do interesse público. Em um país tragado pela corrupção e pela impunidade, uma das prioridades do Congresso deveria ser a elaboração de leis para fortalecer o combate a desvios de recursos públicos.

Mas não é o que tem acontecido nos últimos meses. Para além das desventuras da Lava Jato nos tribunais e mesmo dentro Ministério Público, há uma bem articulada ofensiva do establishment político em favor do abrandamento das medidas anticorrupção, assim como ocorreu na Itália, depois do terremoto causado pela Operação Mãos Limpas. O pano de fundo dessa investida é a tentativa de políticos de todos os matizes de faxinar a própria ficha corrida para chegarem com aspectos de limpos em 2022, quando uns tentarão renovar seus mandatos e outros buscarão ressurgir, depois de condenados pela Justiça, com a maquiagem em dia. Essa blitzkrieg de parlamentares encrencados tem aberto várias frentes no Congresso.

O plano começou a ser gestado em meio à votação do pacote anticrime, no final do ano passado, quando contrabandos foram inseridos no texto original pelos deputados. Um deles excluiu dispositivos indispensáveis para a luta contra o crime, como a prisão após condenação em segunda instância, e ainda introduziu a figura do juiz de garantias, um terreno fértil para a impunidade já que, se o investigado conseguir um magistrado de garantias simpático, poderá garantir para sempre que não será mais importunado pela Justiça.

Outra tentativa de facilitar a vida dos corruptos foi a aprovação de mudanças pelo Congresso na aparentemente insípida, inodora e incolor Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. À legislação, malandramente, foram acrescentados dez artigos, entre eles o que prevê que “o agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro”. Ou seja, a nova lei requer, expressamente, a presença de dolo ou erro grosseiro – que afasta a aplicação da mera “culpa simples” – para a responsabilização pessoal do agente público, o que obviamente dificultou a punição aos maus gestores.

Faltava, porém, o carro-chefe: alterar a Lei de Improbidade Administrativa de modo a torná-la palatável aos administradores enrolados com a Justiça. Criada em 1992, a lei é um dos mais importantes instrumentos para assegurar a moralidade no serviço público e sua revisão deveria apenas atualizar trechos que a adequassem à jurisprudência atual. Mas parlamentares resolveram aproveitar a brecha para tentar alterar o espírito do texto e garantir salvaguardas para corruptos e ímprobos.

Gustavo Bezerra/PT na CamaraGustavo Bezerra/PT na CamaraO petista Zarattini: relator da nova Lei de Improbidade Administrativa
Com o apoio de lideranças da Câmara, sobretudo do PT e do Centrão, e o envolvimento de estrelados escritórios de advocacia, esse desmonte está prestes a acontecer. A versão final do autor, deputado Roberto de Lucena, do Podemos, suscitou divergências pontuais, mas o problema está no substitutivo apresentado pelo relator, deputado Carlos Zarattini, do PT. Em nota, o Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais do Ministério Público afirmou que a aprovação do texto do petista representaria “incalculável prejuízo à sociedade brasileira” e geraria “retrocessos e descompasso com o modelo constitucional de combate à corrupção”.

Hoje, a lei prevê três tipos de improbidade administrativa: atos que geram enriquecimento ilícito, considerada a classificação mais grave, iniciativas que provocam danos ao erário e violações aos princípios da administração pública, como a legalidade, a impessoalidade e a moralidade. O texto do deputado Carlos Zarattini exclui da Lei de Improbidade essa última classificação. Assim, se o projeto for aprovado, as desobediências a princípios administrativos basilares deixarão de configurar improbidade.

O texto do petista ainda cria a figura da “improbidade de bagatela”, ao definir que, em casos de “atos de menor ofensa”, as sanções podem se limitar a multas. A proposta não esclarece, entretanto, o que seriam esses atos de menor gravidade, dando margem a julgamentos subjetivos. Para finalizar com chave de ouro, o projeto exclui as possibilidades de condenação pelos chamados atos culposos. A penalidade passa a se aplicar apenas a agentes que cometem delitos com intenção ou má fé. Pelas regras atuais, nos casos em que há prejuízo aos cofres públicos, mesmo que o responsável não tenha agido com dolo, ou seja, com intenção, ele fica sujeito às sanções da Lei de Improbidade.

“Tirar o tipo de improbidade culposo seria um retrocesso. Se qualquer ato culposo deixar de ser configurado como improbidade, isso pode anular condenações, já que a lei retroage em caso de aplicação mais benéfica”, afirma o procurador regional da República Ronaldo Pinheiro de Queiroz, que participou de audiências públicas na Câmara e acompanha com atenção o debate sobre a revisão da legislação.

Com o fim das convenções partidárias, as costuras para a votação da proposta, que agrada do PSL ao PT, passando pelo Centrão, devem ganhar fôlego. Uma terceira frente da ofensiva, no entanto, já começou a ser discutida: o abrandamento da Lei de Lavagem de Dinheiro. Em tempos de novidades tecnológicas no mundo financeiro, como ativos digitais e bitcoins, a legislação de fato precisa ser modernizada. A questão é que, a pretexto de “melhorar os alicerces jurídicos do país”, deputados e senadores planejam criar escudos para protegê-los de futuras punições – sobretudo em casos de lavagem de recursos destinados ao financiamento ilegal de campanhas.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéRodrigo Maia: disposição para fazer as pautas andarem
Na semana passada, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, criou uma comissão de juristas para rediscutir a lei, oito anos após a última atualização. O grupo será comandado pelo ministro do Superior Tribunal de Justiça Reynaldo Soares da Fonseca e terá ainda em sua composição outros dois ministros da corte, além do desembargador Ney Bello, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, aliado de primeira hora do ministro Gilmar Mendes.

Não é preciso ter bola de cristal para imaginar o que vem pela frente. Casos recentes em que doações não declaradas foram enquadradas como crime de lavagem de dinheiro têm tirado o sono dos políticos. Um dos que viraram réus por lavagem como consequência do caixa dois foi o ex-governador de São Paulo Geraldo Alckmin. O tucano também foi denunciado por corrupção passiva, pelo recebimento de 11 milhões de reais da Odebrecht nas campanhas de 2010 e 2014 – a ação foi suspensa posteriormente por Gilmar Mendes. O deputado federal Paulinho da Força, do Solidariedade, já havia sido alvo, em julho do ano passado, da chamada Lava Jato Eleitoral. No seu caso, a PF investiga caixa dois de 1,7 milhão de reais, o que, ao fim e ao cabo, pode configurar lavagem de dinheiro.

Um dos objetivos de políticos de diversas colorações partidárias é justamente o de, durante a revisão da lei, excluir a possibilidade de punição por lavagem de dinheiro nos casos de recebimento de doações eleitorais não declaradas. É que, enquanto o crime de falsidade ideológica eleitoral do caixa dois prevê pena de até cinco anos, o de lavagem de dinheiro tem punição de até dez anos – o dobro.

A ladainha é fartamente conhecida e recitada de maneira empolada pelas excelências: a intenção, ao propor alterações nas leis anticrime, de introdução às normas do Direito, de improbidade e lavagem de dinheiro seria a de “aperfeiçoar os instrumentos legais de combate ao crime”. O desfecho, porém, é conhecido. Em geral, acabam arrumando um jeitinho de blindar aqueles que têm contas a pagar à Justiça e que querem se aproveitar de novas brechas criadas na legislação para continuar delinquindo. Puro suco de Brasil, temperado pela poderosa reação institucional à Lava Jato que tem unido diferentes forças da cena nacional.

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