MarioSabino

Não me amolem

10.09.20

Em 5 de julho, na cidade de Bayonne, no sul da França, o motorista Philippe Monguillot parou o ônibus que dirigia num dos pontos do seu percurso, para que três homens, um deles com um cão, subissem. Em seguida, um quarto homem se juntou ao grupo. Monguillot pediu a este último que mostrasse o seu passe e disse ao grupo que era obrigatório que todos colocassem máscaras de proteção contra o coronavírus.

Monguillot começou a ser insultado pelos homens. Ele reagiu e foi empurrado para fora do ônibus. Caído no chão, o motorista levou socos e pontapés principalmente na cabeça, desferidos por dois dos agressores. Levado para o hospital, Monguillot teve morte cerebral, aos 59 anos. Deixou mulher e três filhos jovens.  A brutalidade que o vitimou não foi exceção, outras semelhantes vêm acontecendo na França. Ao ser entrevistado pelo jornal Le Figaro sobre tais ocorrências, o ministro do Interior, Gérald Darmanin, disse:  “Assistimos a um crise de autoridade. É preciso parar o ‘enselvajamento’ de uma certa parte da sociedade”.

Quando li a frase, ela me pareceu razoável, visto que “selvagem” está dicionarizado também em francês na acepção de “não civilizado” — e civilizado é sinônimo de respeitoso, educado, cordial e outras qualidades que, espero, continuem a ser apreciadas. Qual não é a minha surpresa quando vi a fala de Darmanin ser objeto de críticas zangadas e discussões acirradas, alvo inclusive do ministro da Justiça da França, Éric Dupond-Moretti. Perguntado a respeito, o colega de Darmanin afirmou: “’Enselvajamento’ é uma palavra que suscita o sentimento de insegurança. Pior do que a insegurança, é o sentimento de insegurança”. E completou: “Quero dirigir-me à inteligência dos franceses e não aos seus baixos instintos, porque o sentimento de insegurança pertence à ordem da fantasmagoria”.

Fui entender a indignação ao ler o que escreveu o jornalista René Naba, em artigo publicado no jornal Le Parisien: “Um policial que comete um ato selvagem é um erro grave. Mas um negro ou um árabe que atira num policial ou joga o carro contra ele é enselvajamento. O vocabulário não é neutro”. Ou seja, como os assassinos de Monguillot possivelmente não eram brancos, o ministro do Interior estaria sendo racista e xenófobo quando empregou a palavra relativa a selvagem. Ele a teria tomado de empréstimo da extrema direita, que a emprega constantemente para assombrar os franceses com a ideia que o país está sendo invadido por imigrantes ilegais e perigosos. Aliás, integrantes do Front National, partido da direitista Marine Le Pen, chegaram a difundir na internet a foto de um homem de 29 anos como um dos agressores de Monguillot, no que se revelou ser uma fake news.

Aqui do meu canto, gostaria de dizer que continuarei a usar o termo “selvagem” e todos a ele relacionados, neologismos também, independentemente de serem utilizados da forma que for pela extrema direita ou de serem motivo de admoestações da patrulha da esquerda. Quando assisti à depredação do Boulevard Saint-Germain, em Paris, por um monte de brancos, chamei-os de selvagens, sem nem sequer cogitar longinquamente que a expressão do meu estupor pudesse conotar outra coisa que gente sem respeito, sem educação, sem civilidade. Assim como o ministro do Interior francês, acho que o mundo está sendo tomado pela selvageria de todos os lados. A brutalidade é selvagem, a ignorância é selvagem, a corrupção é selvagem, a destruição do ambiente é selvagem. O preconceito é selvagem. O autoritarismo é selvagem, inclusive em relação à língua.

As palavras não são neutras, tem razão o jornalista francês que escreveu no jornal Le Parisien, mas boa parte delas sofreu tamanha transformação nos seus significados, às vezes em curto espaço de tempo, que acepções pejorativas primeiras foram canceladas, sem chance de ressurreição, por mais que haja idiotas tentando fazer isso. A história pode transformar em ruínas o que parecia ser eterno e fazer terra arrasada do que se afigurava inexpugnável — tal é a sua beleza, tal é a sua tragédia, a depender do caso. A língua é também processo histórico. Veja-se o exemplo de “gótico”, palavra que designa o estilo que floresceu na França e erigiu as mais belas catedrais do mundo. Ela foi utilizada originalmente pelos italianos, para definir o que julgavam ser a arte dos godos bárbaros. Quem diria hoje que, por ser gótica, a Notre-Dame de Paris, lambida por chamas selvagens, no sentido de indomadas, foi construída por alienígenas incultos e desprezíveis? Por falar em bárbaro, em português do Brasil, o termo ganhou também o significado de bonito, gentil, amigo, muito legal e por aí vai — o exato oposto de acepções anteriormente atribuídas a ele.

Selvagens mataram Monguillot. Selvagens estão destruindo o Brasil. Não me amolem.

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