STF/ASCOMA Operação E$quema S jogou luz sobre as relações nada ortodoxas entre poderosos enrolados na Justiça, advogados e integrantes do Judiciário

A hora da Lava Toga

Ao alcançar escritórios de advocacia, a Lava Jato se aproxima dos supostos esquemas que vendem facilidades nas cortes superiores
10.09.20

O lado escuro do Judiciário ganhou os holofotes nesta quarta-feira, 9, graças à operação E$quema S, deflagrada pela Lava Jato do Rio de Janeiro. Ela teve por base a delação de Orlando Diniz, ex-presidente da Federação do Comércio do Rio de Janeiro, acusado de ter desviado milhões da entidade que integra o Sistema S, por meio de supostos pagamentos a escritórios de advocacia. “Quero um acordo (com a Justiça). Não tenho alternativa. Vou contar tudo”, disse Diniz à advogada criminalista Juliana Bierrenbach, em seu escritório na região central da capital fluminense, quando ainda negociava os termos de sua delação. Ele cumpriu o que prometeu.

Entre os 26 denunciados por crimes como organização criminosa, estelionato, corrupção, peculato e tráfico de influência, figura nada menos do que o filho do presidente do STJ, Humberto Martins. Na casa do advogado Eduardo Martins, foram encontrados 800 mil reais: 100 mil em espécie e 700 mil num cheque. A dinheirama estava guardada numa sacolinha de papel. Para a esmagadora maioria dos brasileiros, é dinheiro que não acaba mais. Para ele, talvez não. Martins é investigado pela Lava Jato do Rio por receber, direta e indiretamente, 80 milhões de reais da Fecomércio, uma Mega-Sena acumulada. Também foram alvo de denúncia Roberto Teixeira e seu genro, Cristiano Zanin, advogados do ex-presidente Lula, e o ex-presidente do STJ, César Asfor Rocha, acusado de receber 2,67 milhões de reais por meio de subcontratações feitas por três escritórios contratados pela entidade na gestão Diniz.

Embora não tenha sido denunciado, o onipresente Frederick Wassef, que atuou na defesa de Jair Bolsonaro e de seu filho Flávio é outro aparecer na história. Os escritórios de Wassef e de dezenas de outros advogados são suspeitos de integrar um esquema que pode ter desviado cerca de 355 milhões de reais. Os repasses a Wassef se deram por meio do escritório da advogada Luíza Eluf. Dados obtidos pelo Conselho de Controle de Atividade Financeira, o Coaf, mostram que ele recebeu ao menos 2,6 milhões. Surgiu, na investigação, até mesmo um elo de Wassef com Delúbio Soares, ex-tesoureiro do PT. O MPF explica que a contratação de Luíza ocorreu a pedido do publicitário Marcelo Cazzo, “não tendo o trabalho realizado justificado o valor de contratação”. Segundo Diniz, a advogada, com quem se encontrou uma única vez em 2016, foi indicada ao publicitário por “Ivan Guimarães, dono da empresa Corseque Security, com quem a Fecomércio também mantinha contrato”. Ivan Guimarães foi presidente do Banco Popular no primeiro mandato de Lula, indicado ao cargo por Delúbio Soares, ex-tesoureiro do PT. Guimarães, afirmou Diniz, “era muito próximo de Frederick Wassef”.

Reginaldo Pimenta/Raw Image/FolhapressReginaldo Pimenta/Raw Image/FolhapressNa delação, Orlando Diniz diz que os pagamentos milionários visavam à perpetuação no poder da Fecomércio
Crusoé acompanhou todo o processo de negociação da delação de Diniz com fontes ligadas ao caso. Ao longo desse período, o ex-presidente da Fecomércio reuniu-se várias vezes com sua advogada, a criminalista Juliana Bierrenbach, para fornecer detalhes sobre como torrou centenas de milhões de reais em contratos firmados com caríssimas bancas de advogados, algumas delas ligadas a ministros de tribunais superiores – não raro, Diniz escrevia à mão os rascunhos enviados a Bierrenbach, para serem transformados em anexos. Ainda em 2019, a primeira versão da proposta de acordo foi entregue. Em paralelo, a Lava Jato analisava os contratos assinados por Diniz, pesquisava os processos judiciais na Fecomércio e quebrava sigilos bancários e fiscais de escritórios de advocacia a fim de entender a teia de transações financeiras.

Em junho de 2020, quando o acordo foi selado e homologado pelo juiz Marcelo Bretas, os investigadores tinham o mapa dos caminhos que, enfim, levariam a Lava Jato para dentro do Judiciário. Por meio das revelações de Diniz e do material amealhado na investigação, foi possível detalhar uma velha prática conhecida — mas nunca investigada nesse nível — sobre como se dão as relações nada ortodoxas entre poderosos enrolados na Justiça, advogados e integrantes do Judiciário.

Na delação, Diniz é taxativo: os pagamentos milionários visavam à perpetuação no poder da Fecomércio. Para obter influência política sobre ministros do STJ, onde corriam processos contra ele, o ex-presidente da entidade contratou escritórios próximos a magistrados, como o de Eduardo Martins. “Não à toa, os integrantes do núcleo duro da organização criminosa (valeram-se), para tanto, de fraudulentos contratos de honorários advocatícios como forma de remunerar, a preços vultosos, Eduardo Martins, não pela prestação dessa espécie de serviços, mas sim por uma pretensa e propalada influência sua no Superior Tribunal de Justiça, derivada de sua relação filial com o ministro desta Corte Superior, Humberto Martins”, diz o MPF, ao denunciar o advogado.

Pedro Ladeira/FolhapressPedro Ladeira/FolhapressAdvogado de Lula, Cristiano Zanin é apontado como integrante do núcleo duro da organização criminosa
A mesma situação se repetiu no Tribunal de Contas da União, que também questionava os gastos da gestão Diniz. Por indicação do casal Sérgio Cabral e Adriana Ancelmo, a Fecomércio desembolsou 13 milhões de reais para contratar Tiago Cedraz, filho do ministro do TCU Aroldo Cedraz. De acordo com Diniz, a contratação não tinha por objetivo qualquer tipo de assistência técnica nos processos, mas a “compra da solução no TCU”.

Além de explicar os motivos das contratações, Diniz detalhou no seu acordo como se deu a arquitetura do esquema que desviou 151 milhões de reais da Fecomércio e do Sistema S – o valor, diz o MPF, refere-se apenas ao que já foi confirmado, mas pode alcançar 355 milhões de reais. É quando entram em cena o advogado Roberto Teixeira e seu sócio Cristiano Zanin – a dupla foi denunciada por receber 68 milhões da Fecomércio. Os advogados de Lula foram apresentados a Diniz em 2012 pelo advogado Fernando Hargreaves. Na delação, o ex-presidente da Fecomércio-RJ narra um encontro no bar da piscina do Copacabana Palace, no Rio de Janeiro. Segundo o MPF, para tentar estancar uma fiscalização na Fecomércio dirigida por Carlos Gabas, conselheiro fiscal da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo e ex-ministro da Previdência dos governos do PT, Teixeira cobrou 10 milhões de reais, exigindo que 1 milhão de reais fosse entregue em espécie e que o contrato fosse feito em nome de Diniz e não da Fecomércio.

De acordo com a denúncia, a partir do momento em que estreitaram a relação com Diniz, tanto Teixeira quanto Zanin passaram a comandar todas as contratações de advogados. Ao longo do período em que o esquema atuou, entre 2012 e 2016, a dupla integrou o “núcleo duro” do grupo que escoou milhões para os escritórios que fizeram a ponte entre a Fecomércio e as cortes superiores de Brasília. De acordo com a denúncia, Zanin teria intermediado a contratação de bancas de advocacia para influenciar decisões e corromper agentes públicos em processos no TCU e no STJ. O MPF imputa a Zanin, inclusive, a responsabilidade pela contratação de Eduardo Martins, filho do presidente do STJ. O objetivo seria o de “influir em atos praticados por ministros do Superior Tribunal de Justiça.” Um auditor de controle externo do TCU também teria recebido da dupla Teixeira-Zanin propina de 827 mil reais, para criar facilidades na corte. Todos os denunciados têm milhões de motivos para não gostar mesmo da Lava Jato – e os brasileiros honestos têm muita razão para continuar querendo uma Lava Toga.

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