Varejão no escuro
Há três semanas, Crusoé revelou que o governo usou uma verba bilionária destinada a combater o coronavírus – um total de 13,8 bilhões de reais – como moeda de troca em negociações políticas com parlamentares. Com o toma lá dá cá chancelado pelo Ministério da Saúde, pela Secretaria de Governo da Presidência e pela liderança do governo no Congresso, parte do dinheiro que deveria parar nos cofres das cidades mais afetadas pela pandemia acabou direcionada a redutos eleitorais de deputados e senadores, não importando o grau de disseminação da doença nesses locais. Houve casos em que a verba foi parar em municípios que nem sequer haviam sido atingidos pela epidemia de coronavírus.
Procurados para falar sobre a efetiva aplicação dos recursos no combate à Covid-19, que já matou de 120 mil pessoas no país, os prefeitos contemplados se prontificaram a defender a transparência na utilização do dinheiro público. Não foi bem o que aconteceu. Em 1º de julho, dia da liberação do dinheiro pelo governo federal, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, recebeu um ofício assinado pelo presidentes dos Conselhos de Secretários de Saúde, em que eles – pasme – simplesmente se recusavam a prestar contas desses recursos.
Semanas antes, técnicos do Ministério da Saúde haviam inserido no Sistema de Informações sobre Orçamento Público em Saúde, o Siops, uma funcionalidade criada para que os secretários de Saúde dos municípios declarem como a verba dedicada ao coronavírus vem sendo gasta. Apesar de ser opcional, várias cidades começaram a inserir informações no banco de dados, que é usado por órgãos de controle – como o TCU – para fiscalizar o orçamento federal.
Quem tentava acessar o sistema dava de cara com uma mensagem do ministério no centro da página informando a suspensão até o dia 31 de agosto do “quadro Covid-19” – esperava-se uma solução até aquela data. Como não houve acordo e o prazo para resolver o assunto estourou, o secretário-executivo do Ministério da Saúde, Élcio Franco, encomendou aos técnicos da pasta a minuta de uma portaria para não apenas liberar o uso da ferramenta, mas também torná-la obrigatória.
A Advocacia-Geral da União, em parecer, declarou que a exclusão do quadro representaria um retrocesso na transparência dos gastos públicos. Caberá ao ministro Eduardo Pazuello a palavra final. A dúvida é se ele vai ousar contrariar — às vésperas de eleições municipais — as pressões políticas para que os dados sobre a aplicação do dinheiro do coronavírus se mantenham numa caixa preta.
Parlamentares de diferentes partidos, incluindo aqueles que indicaram dinheiro da Covid-19 para seus redutos eleitorais, dizem estar se articulando para que prefeitos possam usar a verba em outras áreas que não apenas a da saúde, o que joga mais uma cortina de fumaça sobre o assunto. Nesta semana, o Senado aprovou um projeto de lei da senadora Kátia Abreu, do PDT, que permite o uso de recursos inicialmente destinados à Saúde na Educação, tendo em vista a retomada de aulas presenciais. “Há prefeitos que não vão conseguir gastar todos na saúde, muitos prefeitos estão querendo devolver, e nós teremos o retorno às aulas”, justificou. “Tem muita gente que recebeu o recurso e não vai gastar. O dinheiro foi liberado para custeio, mas a portaria não permite a compra de equipamentos, por exemplo. Tem algumas iniciativas no Congresso para que se possa usar esse dinheiro com outras finalidades”, fez coro o senador emedebista Eduardo Gomes, líder do governo no Congresso.
Com tanto mistério em torno da aplicação dos recursos, uma negociação política por trás e o claro interesse de gestores em manter a verba fora da lupa da fiscalização, o que não falta é dúvida sobre onde o dinheiro que deveria ser usado no combate ao coronavírus vai efetivamente parar.
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