Adriano Machado/Crusoé

Outra meia reforma

O governo envia ao Congresso uma proposta de reforma administrativa que até ajuda, mas não resolve o grave cenário dos gastos com o funcionalismo público e seus incontáveis privilégios
04.09.20

Digitar textos com rapidez foi uma das habilidades mais valorizadas no mercado de trabalho dos anos 1980. À época, os disputados cursos de datilografia ensinavam os profissionais a não “catarem milho” – expressão muito usada para se referir aos mais lentos na digitação. Há décadas obsoleta, essa atividade ainda faz parte da realidade do serviço público: o governo federal tem hoje 3.073 datilógrafos em seu quadro de efetivos, com remuneração básica que supera 10 mil reais. Como exemplos de anacronismo, a folha de pagamento da União tem ainda onze operadores de telex e um operador de videocassete – todos efetivos, com estabilidade e altos salários. A existência desses cargos é apenas uma amostra de quão arcaico é o serviço público brasileiro, cuja estrutura é composta por carreiras ultrapassadas, que jamais são submetidas a avaliações efetivas e controle de produtividade. A folha de pessoal da União custará 337 bilhões de reais no ano que vem, o que representa 22% de todos os gastos do governo federal. As despesas com o funcionalismo, que cresceram 142% em pouco mais de uma década, drenam os recursos para investimento sem entregar aos cidadãos, em contrapartida, serviços de qualidade.

Depois de uma série de recuos por questões políticas, o presidente Jair Bolsonaro finalmente enviou ao Congresso uma proposta de reforma administrativa. Entregue nesta quinta-feira, o texto traz até algumas mudanças importantes que corrigem determinadas distorções do serviço público. Mas, 22 anos depois da última reforma do estado, as mudanças na legislação propostas por Bolsonaro ainda são insuficientes para promover uma ampla modernização da máquina pública e acabar de fato com os incontáveis privilégios do funcionalismo. Ou seja, para dar uma satisfação ao mercado, o presidente entregou ao Congresso uma reforma pela metade – o mesmo que já havia feito com a reforma tributária.

A proposta de emenda à Constituição avança, de certa forma, ao extinguir a estabilidade para alguns cargos, acabar com as progressões automáticas na carreira por tempo de serviço, abrir a possibilidade de demissão de funcionários públicos ímprobos, incompetentes ou cujo trabalho não é mais necessário e ao pôr fim a algumas gratificações salariais inexistentes no setor privado.

O texto, porém, tem abrangência limitada: só vale para quem ainda vai ingressar no serviço público. A reforma não atinge os grupos mais privilegiados, como magistrados, membros do Ministério Público, conselheiros e ministros de tribunais de contas, parlamentares e militares. Por exemplo, a perda das vantagens e dos chamados penduricalhos não afetarão essas categorias, que recebem os salários mais elevados do funcionalismo. O fim da estabilidade também não abarcará servidores públicos de carreira de estado – como os funcionários da Polícia Federal, Receita e Itamaraty. Ao contrário das outras categorias, esses grupos de servidores também não terão seus salários reduzidos em caso de redução de jornada.

Presidência da RepúblicaPresidência da RepúblicaO limite aos chamados penduricalhos não afetará os militares
Com a versão mais light da reforma administrativa, o preocupante cenário fiscal permanece o mesmo: os gastos com pessoal continuam crescendo num ritmo mais elevado que a arrecadação. Há ainda dois itens na proposta – os famosos jabutis – que conferem novos poderes ao presidente da República: ele poderá, por exemplo, extinguir órgãos públicos por decreto. Atualmente, o Poder Executivo só pode se desfazer de órgãos por meio de projetos de lei. O presidente ou o ministro de estado também terão mais liberdade para escolher funcionários que irão ocupar cargos comissionados e funções de confiança.

O alcance limitado da proposta é fruto de um pesado e histórico lobby de corporações e sindicatos, com influência no Congresso e no governo, ao qual os presidentes de turno costumam ser sensíveis. De acordo com dados do Ministério da Economia, a despesa com pessoal do setor público representa cerca de 13,6% do PIB brasileiro. Nos Estados Unidos, por exemplo, esse percentual é de 9,5%. Mantidas as atuais projeções de crescimento dos gastos, em 2030, a folha de pessoal da União vai chegar a 14,8% de tudo o que é produzido no país.

A despeito de as contas públicas estarem em frangalhos, no mês passado o Senado deu uma pequena demonstração da força do lobby desses setores: os parlamentares avalizaram um reajuste de servidores durante a pandemia, decisão com impacto estimado de 120 bilhões de reais. O aumento havia sido vetado pelo presidente Jair Bolsonaro. Coube à Câmara manter o veto e impedir o reajuste. “Sempre estaremos próximos de uma eleição e sempre haverá lobby e pressão”, afirma o deputado federal Thiago Mitraud, do Novo de Minas Gerais. Presidente da Frente Parlamentar da Reforma Administrativa, o parlamentar articula um movimento para que alguns dispositivos da proposta enviada pelo governo, como a proibição de férias de mais de 30 dias e o fim da aposentadoria compulsória como punição, alcancem os atuais funcionários públicos.

Entre 2003 e 2018, o número de servidores na administração pública federal aumentou 34%. No mesmo período, o funcionalismo ganhou aumentos salariais indecentes, se comparados à realidade do setor privado. Mais de 500 cargos tiveram aumentos de 50% acima da inflação. Outros 220 postos receberam aumento real acima de 100%. E 12% dos servidores efetivos foram agraciados com aumento real maior do que 130%. A complexidade da burocracia estatal também é refletida na elaboração dos contracheques dos funcionários públicos. As folhas de pagamento de servidores têm até 440 rubricas, que incluem as mais variadas gratificações, bônus, comissões, vantagens, incentivos, retribuições, antecipações, auxílios, adicionais e indenizações. Uma sopa de letrinhas que multiplica os vencimentos. Mais de 80% das rubricas previstas na folha de pagamento do funcionalismo não têm equivalência no setor privado.

DivulgaçãoDivulgaçãoA sede do TJ do Rio: privilégios gritantes no Judiciário
“Além da mudança das regras do funcionalismo do Executivo, os poderes Judiciário e Legislativo também precisam promover com urgência suas próprias reformas”, defende o economista Paulo Feldmann, professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP.

As situações mais gritantes de privilégios estão na Justiça. Mexer em regalias do Judiciário, entretanto, ainda é um tabu no Brasil. Tramitam no Congresso propostas de emenda à Constituição que preveem mudanças em mordomias escandalosas de magistrados, como 60 dias de férias por ano. A benesse é um acinte ao trabalhador brasileiro, que tem direito a no máximo um mês de descanso remunerado. No último dia 28, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, agravou o cenário de descalabro ao liberar a venda de um terço de férias – assim, os magistrados convertem o benefício equivalente a 20 dias em abono salarial e ainda podem usufruir de 40 dias.

Há um obstáculo quase intransponível para a extinção de privilégios como esse: o medo paralisante que parte da classe política tem da toga. A cada tentativa de pautar propostas que acabam com regalias de juízes e desembargadores, recados ameaçadores surgem de tribunais. O projeto que proíbe penduricalhos e acaba com supersalários, por exemplo, é constantemente travado nas comissões. Levantamento do Conselho Nacional de Justiça revelou que, no ano passado, os magistrados brasileiros receberam, em média, 50 mil reais mensais. Com a entrega da PEC que altera as regras do funcionalismo, projetos que reduzem benesses do Judiciário e do Ministério Público devem ganhar força no Congresso. Mas a aprovação, como sempre, vai depender da pressão da sociedade.

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