Carlos Fernandodos santos lima

Obrigado, Deltan!

04.09.20

Deltan Dallagnol representa o melhor do Ministério Público, do funcionalismo público e da cidadania brasileira. Posso afirmar isso sem medo de errar, pois, além de minha jornada de 40 anos de serviço público, venho de uma família de promotores de Justiça com mais de 75 anos ininterruptos de Ministério Público. Conheço Deltan desde que ele me substituiu na operação Banestado, em 2005. Tecnicamente bem preparado e incansável na sua função, sempre foi um procurador da República comprometido com resultados efetivos, tendo como objetivo a busca por um país melhor para todos nós brasileiros.

Agora, após seis anos de dedicação intensa, Deltan retira-se da força-tarefa da operação Lava Jato no Paraná em virtude de problemas familiares. Depois de tantos anos de trabalho conjunto, sei que apenas uma situação como essa, que exige a sua presença junto à família, levaria a uma decisão tão difícil. Enganam-se, portanto, os conspiratórios que veem no seu afastamento um acordo com Augusto Aras.

Tecnicamente, ninguém é insubstituível no Ministério Público Federal. Se há algo que toda a carreira se orgulha é da qualidade intelectual e técnica dos procuradores da República. Entretanto, há alguns poucos procuradores realmente insubstituíveis, pois, muito mais do que conhecimento, possuem eles coragem para enfrentar interesses poderosos, habilidade para liderar outros colegas, fortaleza moral e um grande senso de dever cívico. Tudo isso caracteriza Deltan Dallagnol.

Não estou dizendo que Alessandro Oliveira, que vai substituí-lo na coordenação da operação no Paraná, não tenha grandes predicados. Só o fato de já ter participado do grupo de trabalho da Lava Jato que auxiliou o gabinete da então procuradora-geral da República Raquel Dodge já indica seu comprometimento com o objetivo maior do Ministério Público, o de ser um advogado da sociedade, um defensor da coletividade, enfim, o de servir de escudo da nossa população contra tantas iniquidades e injustiças. Entretanto, é tarefa difícil substituir um gigante. Não há como negar que o Brasil perde com a saída de Deltan.

É verdade que a Operação Lava Jato em Curitiba já se encontrava em procedimento de aterrissagem. Sempre disse que uma força-tarefa é como um avião, que decola somente após a definição de um plano de voo. Em seguida, ele ganha velocidade e altura lentamente – a fase mais perigosa de todas as operações, basta ver o que aconteceu com tantas outras no passado, como a Castelo de Areia. Sobrevivendo à decolagem, uma operação chega à altitude e velocidade ideais, seu voo de cruzeiro, por assim dizer.

Entretanto, toda operação vai ter que descer, vai ter que aterrissar. O seu destino é o chão, podendo pousar ou cair, conforme as turbulências que suas descobertas causem. E a Operação Lava Jato, por sua extensão e descobertas, enfrenta justamente agora uma tempestade perfeita. Mais do que isso, enfrenta um fogo de artilharia dentro do próprio estado, pois este está completamente dominado pelos interesses privados e escusos que as investigações revelaram.

Assim, a operação tem sido atacada internamente. É como um avião que, além do mau tempo e da artilharia inimiga, tem problemas com a torre de controle –no caso, a Procuradoria-Geral da República comandada por Augusto Aras, que dificulta ao máximo o plano de voo. E é bom não se iludir de que a saída de Deltan vai mudar os planos de sabotagem. A Lava Jato vai definhar pela imposição de dificuldades administrativas cada vez maiores, mesmo tendo ainda centenas de investigações em andamento. Mas não há investigação sem investimento de recursos humanos, técnicos e financeiros, e isso está na mão de Aras.

Infelizmente, a situação a ser enfrentada não tende a melhorar. Os inimigos estão unidos no desejo de destruir a operação e, para isso, contam com representantes em todos os poderes da República e mesmo em instituições que deveriam defender a ordem democrática. O câncer da apropriação do estado por uma elite política e econômica tem metástases por todos os lados.

A população, por seu turno, está cansada e sentindo-se impotente, especialmente quando percebeu que as mudanças prometidas pelo governo Bolsonaro eram apenas uma fraude. Mesmo a imprensa, tão combativa no passado, não passa de um arremedo do que foi, incapaz de ir além de relatórios de versões travestidos de notícia. Poucos são, como esta revista, capazes de se posicionar nesse mar de mentiras – não foi por outro motivo que foi objeto de censura.

Deltan Dallagnol e a operação Lava Jato são parte da história do Brasil. São parte do relato de como a democracia brasileira, nascida com a Constituição de 1988, vem sendo carcomida pelo abuso do dinheiro e corrupção, transformando-se em um arremedo democrático apenas no momento do voto. De como as esperanças foram substituídas pela ganância e pelos interesses escusos, de como os sistemas de controle se tornaram inefetivos e as leis foram sabotadas para dificultar novas investigações.

Exigir dele, neste contexto, qualquer sacrifício além do que já teve é injusto. Sei que muitos batem em nossas costas desejando força e demonstrando esperança, mas, apesar dessa imensa boa vontade, as investigações encontram-se órfãs de apoio. O sistema ameaça diariamente procuradores da República com punições por comportamentos absolutamente lícitos, especialmente o de esclarecer a população sobre irregularidades descobertas. Essa é a estratégia de intimidação de funcionários públicos e procuradores da República e está atingindo seu resultado. O Ministério Público está sendo calado.

A esperança que resta é que o espírito de inconformismo dos brasileiros volte aos dias de manifestações de rua de 2013, pois nenhum daqueles problemas que levaram à indignação popular foi realmente resolvido. Continuamos sem serviços públicos, mas agora temos certeza do motivo: a corrupção que mata pessoas e esperanças dos brasileiros por dias melhores.

Não podemos nunca esquecer que eles, os corruptos, temem o povo, temem o despertar da cidadania ativa, aquela que não é apenas receptora passiva de políticas públicas, essas esmolas dadas magnanimamente pelos políticos, mas uma cidadania questionadora e desafiante, sempre a exigir o correto uso do suor do nosso trabalho apropriado pelo estado. Sempre resta a esperança por dias melhores.

Só tenho a agradecer a Deltan Dallagnol. Agradeço a ele por ter me convidado a participar de uma investigação tão importante, mesmo estando eu no final de uma longa carreira. Agradeço a ele ter me lembrado dos ideais do Ministério Público após tantas batalhas e dificuldades terem me tornado cínico e pragmático. Agradeço a ele ter mobilizado a população em busca de respostas para tanto malfeito. Tenho certeza que veremos Deltan ainda em muitas outras batalhas, pois ele ainda tem muito a oferecer pelo Brasil. Mas agora deixemos ele cuidar do que lhe é realmente essencial: sua família.

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