Leopoldo Silva/Folhapress

Intimidade indesejada

Surge mais uma evidência de que amizades estreitas com investigados não impedem Gilmar Mendes de decidir: desta vez, com José Serra, beneficiado por duas decisões do ministro nas últimas semanas
04.09.20

Na manhã do dia 3 de julho, uma operação da força-tarefa da Lava Jato em São Paulo surpreendeu o mundo político. Pela primeira vez, a Polícia Federal batia à porta de um tucano paulista de alta plumagem com um mandado de busca e apreensão. O alvo era o senador José Serra. Enquanto os agentes vasculhavam o imóvel atrás de documentos, procuradores denunciavam, com base em provas mais antigas, o ex-governador e a filha dele, Verônica Serra, por lavagem de dinheiro no esquema da Odebrecht.

Dados recentes das quebras de sigilos bancário, fiscal e telemático de Serra já estavam sob análise dos procuradores quando, 18 dias depois, o senador foi alvo de mais uma operação. Desta vez, o braço eleitoral da PF conseguiu autorização judicial para entrar no gabinete e no apartamento funcional de Serra, em Brasília, em busca de provas de um suposto caixa dois de 5 milhões pago pela Qualicorp, em 2014, quando ele se elegeu ao Senado.

Bastaram poucas horas para que a ação fosse suspensa por uma liminar do presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, no plantão judiciário. No dia 29 de julho, a pedido da defesa de Serra, Toffoli interveio novamente: suspendeu as duas investigações sobre o senador e determinou que todo o material colhido pelos procuradores fosse lacrado e protegido de vazamentos.

Esse roteiro já é conhecido, mas há uma parte ainda não conhecida da história – mais especificamente, nos instantes que antecederam a liminar de Toffoli – que torna mais interessante o esforço empreendido para travar a apuração. Crusoé descobriu com fontes ligadas ao processo que, na véspera da decisão na qual o presidente do Supremo mandou paralisar e lacrar tudo, o juiz federal Diego Paes Moreira, da 6ª Vara Criminal de São Paulo, deferiu um pedido feito pela força-tarefa da Lava Jato para compartilhar com o procurador-geral da República, Augusto Aras, uma parte do material obtido com a quebra de sigilo telemático de Serra. A ideia era convencê-lo a pedir a suspeição de Gilmar Mendes nos casos envolvendo o senador – era sabido que, ao final do recesso, os recursos de Serra teriam o gabinete do ministro como destino.

O material, mantido até agora sob sigilo, seria suficiente, na leitura dos procuradores, para deixar Gilmar Mendes longe do caso. São e-mails trocados entre o ministro e o senador que demonstram haver amizade íntima entre os dois, algo que, pela letra fria da lei que rege a atuação de magistrados, tornaria o ministro suspeito para julgar os recursos de Serra.

Com aval do juiz federal, o material seria enviado durante o recesso de julho para o gabinete do PGR, a quem compete fazer pedidos de suspeição de ministros do STF. A ação, porém, foi frustrada pela liminar de Toffoli, que mandou lacrar todo o material reunido até então pelos investigadores – o que incluía, evidentemente, as mensagens.

Tão logo retornou ao trabalho, em agosto, aconteceu exatamente o que os procuradores se prepararam para evitar: Gilmar Mendes assumiu os casos que o presidente havia paralisado e passou a proferir suas decisões, todas favoráveis a Serra. Como mostrou Crusoé, no dia 20 de agosto o ministro determinou a suspensão da ação penal contra Serra e a filha, que já haviam se tornado réus na 6ª Vara da Justiça Federal de São Paulo pela suposta lavagem de dinheiro ilícito pago pela Odebrecht em uma conta controlada por Verônica Serra na Suíça. Depois, o ministro foi além. Ordenou que o Ministério Público desse aos advogados de Serra “acesso imediato” a “tudo o que contra ele houver” nas seis investigações em andamento na Lava Jato paulista.

Lucas Seixas/FolhapressLucas Seixas/FolhapressAloysio Nunes: outro tucano bem relacionado com Gilmar
Não se sabe se foi um possível vazamento do pedido de suspeição de Gilmar que levou Toffoli a brecar tudo nos últimos dias do plantão, mas a investigação envolvendo Serra entra no rol das “incompatibilidades insolúveis” que levaram sete procuradores da força-tarefa paulista a se demitirem na última terça-feira. Em uma manifestação enviada a membros do Conselho Superior do MPF, os investigadores afirmaram que além do “desmonte” do grupo, com a redistribuição de inquéritos conexos aos investigados por eles, a procuradora Viviane Martinez, dona do gabinete oficialmente habilitado para receber os casos da Lava Jato, tentou adiar a operação deflagrada contra Serra no início de julho.

Viviane, segundo seus colegas demissionários, queria deixar a operação para depois da criação da Unidade Nacional Anticorrupção, a Unac, projeto encampado por Aras para concentrar as grandes investigações de corrupção na PGR e que não tem prazo para sair do papel.

Ainda em junho, os procuradores descontentes escreveram para Viviane no grupo que a força-tarefa mantinha em um aplicativo de mensagens. Disseram que a investigação que ela queria protelar “vinha consumindo uma enorme quantidade de horas” dos colegas, com “integrantes virando noites para organizar as provas” e “preparar uma operação que, pela primeira vez na história, implicava a cúpula paulista do Partido da Social Democracia Brasileira em corrupção e lavagem de capitais”. Apesar do descontentamento coletivo, Viviane manteve sua opinião.

Crusoé apurou que, dentro da força-tarefa, a procuradora também atrasou o andamento do pedido feito ao juiz federal para compartilhar os e-mails de Serra com a PGR, a fim de embasar a suspeição de Gilmar Mendes. Com as decisões de Toffoli, mandando lacrar tudo, e do próprio Gilmar, liberando o material à defesa do tucano, ao menos por ora só os advogados do senador têm acesso, formalmente, às mensagens.

Na semana passada, quando os defensores de Serra foram à sede da Procuradoria em São Paulo para copiar o material sigiloso, Gilmar deu uma decisão que beneficiou o ex-governador na outra investigação que lhe rendeu dor de cabeça em julho, até ser suspensa por Toffoli. Contrariando a jurisprudência do Supremo, defendida por ele mesmo, o ministro puxou para si a investigação sobre o caixa dois de 5 milhões de reais da Qualicorp em 2014, que estava na Justiça Eleitoral por decisão da corte. A decisão de Gilmar saiu duas semanas antes dos crimes supostamente praticados por Serra prescreverem. Mais uma vez, o ministro deu razão à defesa do tucano e reconheceu o foro privilegiado de Serra no caso, pelo fato de a PF investigar fatos que poderiam ter relação com o atual mandato do senador, iniciado em 2015, o que os investigadores negam.

Mensagens apreendidas pela Lava Jato já haviam levado a um pedido de suspeição de Gilmar Mendes em investigação relacionada a outro grão-tucano, o ex-ministro e ex-senador Aloysio Nunes Ferreira. Em março do ano passado, a força-tarefa de Curitiba pediu para a PGR solicitar o afastamento do ministro após identificar, por meio dos registros telefônicas, que Aloysio atuou junto a Gilmar para interferir nos processos envolvendo seu amigo e operador tucano Paulo Vieira de Souza, o Paulo Preto. O pedido foi arquivado pela então procuradora-geral, Raquel Dodge.

Edilson Rodrigues/Agência SenadoEdilson Rodrigues/Agência SenadoAécio: em 2017, 46 telefonemas trocados com número atribuído ao ministro
Condenado por fraude e formação de cartel nas obras do Rodoanel no governo de Serra em São Paulo (2007-2010), o ex-diretor da Dersa tinha acabado de ser preso pela terceira vez – em 2018, em duas oportunidades ele foi solto por decisão de Gilmar. Na estatal paulista, Paulo Preto era apadrinhado de Aloysio. Durante a investigação, os procuradores encontraram um cartão de crédito entregue ao ex-ministro em um hotel na Espanha vinculado a uma conta mantida pelo afilhado na Suíça.

Em uma das mensagens apreendidas no celular de Aloysio, Gilmar Mendes é tratado como “nosso amigo”. Aos colegas detentos do Complexo Médico Penal de Pinhais, para onde vão os presos da Lava Jato no Paraná, Paulo Preto se referia a Gilmar como “goleiro”, capaz de fazer milagres na defesa do time.

A relação do ministro com tucanos como Serra e Aloysio é pública e histórica. Todos se aproximaram no governo de Fernando Henrique Cardoso. Gilmar foi advogado-geral da União. Serra, ministro da Saúde. Aloysio comandou o Ministério da Justiça. Paulo Preto era assessor especial da Presidência da República.

Os encontros entre eles não se limitavam aos gabinetes. Em 2017, por exemplo, Gilmar ofereceu um jantar em sua casa para comemorar o aniversário de 75 anos de Serra. Participaram do convescote outros nomes de peso da política igualmente enrolados com a Justiça, como o então presidente Michel Temer, do MDB, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, do DEM, e o deputado federal Aécio Neves, do PSDB. Este último, também próximo e beneficiado por decisões de Gilmar.

Um relatório da Polícia Federal apontou que entre fevereiro e maio daquele ano, Aécio trocou 46 ligações via WhatsApp com um número de telefone atribuído a Gilmar. As chamadas ocorreram no período em que o tucano já era investigado no STF por suspeita de ter recebido propina da JBS. Uma das chamadas ocorreu no mesmo dia em que Gilmar deu uma decisão favorável a Aécio, livrando-o de prestar depoimento à PF em um dos inquéritos da Lava Jato.

Além de ter assinado decisões favoráveis a pedidos dos próprios tucanos, Gilmar também registra em seu histórico recente uma decisão que beneficiou um importante advogado de tucanos. Em setembro do ano passado, o ministro concedeu um salvo-conduto sigiloso ao escritório de José Roberto Santoro, que defende Aloysio Nunes e Paulo Preto. A medida impede que a Lava Jato investigue o advogado após a descoberta de que a banca dele recebeu 3,7 milhões de euros em Portugal de uma conta controlada por Paulo Preto nas Bahamas. Foi para essa conta que o operador tucano transferiu 113 milhões de reais que estavam escondidos na Suíça após o início da Lava Jato.

Desde que o ex-diretor da Dersa foi preso pela primeira vez, aventa-se a possibilidade de um acordo de delação premiada em que ele revelaria tudo o que sabe sobre malfeitos envolvendo a cúpula tucana. Aos mais conhecidos, porém, Paulo Preto, que agora está em prisão domiciliar por causa da pandemia, rechaça a possibilidade. O motivo? Ele diz confiar no “goleiro” Gilmar. Procurado, o ministro do Supremo evitou falar sobre o assunto. Limitou-se a dizer que o caso que envolve José Serra está em segredo de Justiça. O senador tucano não se manifestou.

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