MarioSabino

Hebe e a dica sobre a Odebrecht

04.09.20

Ao navegar no Twitter numa das minhas madrugadas insones, deparei com a entrevista da apresentadora Hebe Camargo ao programa Roda Viva, em 1987. Apenas uma mulher figurava entre os entrevistadores, mas a entrevistada nocauteou todos os homens presentes. A maioria virou minoria. Hebe não escondia a idade, como tantas mulheres maduras o faziam (não sei se ainda o fazem). Estava com 58 anos, o meu número atual de primaveras, como se dizia, e gozava ainda mais daquela liberdade proporcionada pelas conquistas possíveis e as ilusões perdidas: a de dizer simplesmente “não” sem se importar com as consequências. É das poucas coisas boas que podem acontecer quando se ultrapassa o meio século de vida, posso atestar.

Hebe foi convidada para ir ao programa porque ela estava na moda desde que passara a frequentar o noticiário político. Em tempos de Assembleia Constituinte, Hebe havia sido alvo de Ulysses Guimarães, então vice-presidente da República, por ter criticado no seu programa no SBT o fato de os deputados encarregados de elaborar a nova Constituição terem relegado os aposentados ao segundo plano. Com o PT ainda nos seus inícios, ela puxara a orelha de um sindicalista do partido, durante entrevista no seu famoso sofá, porque ele havia incitado metalúrgicos a riscar os automóveis da fábrica em que trabalhavam, como forma de pressão para aumentar os salários. Declarava-se malufista, mas achava justas muitas bandeiras da esquerda. Horrorizara senhoras moralistas por ter dito que era ridículo uma mulher de quase 60 anos ser obrigada a falar “bumbum” em vez de “bunda”. Imitava deliciosamente Jânio Quadros. E, no Roda Viva, fez os entrevistadores se emocionarem ao fazer um discurso apaixonado contra os políticos aproveitadores, com o perdão do pleonasmo. Hebe não precisava de cota para dominar a cena.

Acho que deparei com a entrevista de Hebe no Twitter porque ela voltou a estar um pouco na moda, passados oito anos da sua morte. A talentosíssima Andrea Beltrão interpreta a apresentadora na minissérie Hebe — A Estrela do Brasil, veiculada pela Rede Globo. Não deixa de ser irônico que o canal no qual ela nunca trabalhou, vetada seguidamente pela direção da emissora, de acordo com própria Hebe, agora a coloque na sua programação como “a estrela do Brasil”. Você acabou conseguindo, querida.

Acredito que os preconceitos enfrentados por ela deviam-se ao fato de a apresentadora encarnar totalmente as ambiguidades do povo no campo da política e do comportamento. Fora da nossa bolha, inexiste este mundo de esquerda ou direita, liberal ou conservador. A esmagadora maioria das pessoas move-se livremente por sentimentos e conceitos puros, no sentido de despidos de ideologia, e eles são variáveis conforme as condições de temperatura e pressão — a questão é sempre de empatia ou antipatia, bondade ou maldade, alegria ou tristeza, saciedade ou necessidade, justiça ou injustiça, solidariedade ou egoísmo, ódio ou paixão. Isso explica o motivo de elas não verem problema em ser incoerentes ou até mesmo antípodas a si próprias em meio aos seus atos, às suas opiniões e escolhas. Isso explica, portanto, Hebe Camargo.

A minha primeira entrevista publicada na Veja foi com ela, em 21 de dezembro de 1994. Hebe estava com 65 anos e completava meio século de carreira. Pelo seu sofá, passavam naquele momento, além dos atores e cantores de praxe, prostitutas, garotos de programa, viciados e muita gente indignada com Brasília, nessa indignação que só faz piorar. Para mim, a apresentadora continuava a ser principalmente uma personagem da minha infância: remetia-me às irmãs do meu pai assistindo ao seu programa e comentando as joias grandonas e maravilhosas que ela usava. A sua personalidade esfuziante espelhava-se nos adereços e no guarda-roupa que causavam sensação e admiração. Eram prova de que a menina de Taubaté havia conseguido “chegar lá”. Para as minhas tias, ela era um sonho sonhado uma vez por semana.

Foi a entrevista mais gostosa que fiz em 36 anos de carreira. Numa tarde ensolarada, sentada na varanda da sua casa no Morumbi, com vista para a piscina que ficava num plano mais baixo e, ao fundo, o horizonte de prédios de São Paulo, ela deu um show de simpatia e objetividade. Pessoas com sentimentos e conceitos puros não enrolam, concorde-se ou não com elas, aprove-se ou não a sua conduta. Procurei dar um caráter mais político à conversa, como havia combinado com a minha editora na época. Vou reproduzir dois trechos:

Eu, provocativo: A senhora aceitaria um convite do bispo Edir Macedo, da Igreja Universal do Reino de Deus, para levar o seu programa para a Rede Record?

Hebe: Acho difícil, porque gosto de falar em Deus, na Igreja Católica, e uso um terço no pulso quando faço programa, presente da Maricy Trussardi. Na televisão dele, ao que parece, tudo isso é proibido. Fico com pena das pessoas que lotam os estádios para ouvir os pregadores evangélicos. O reino de Deus é realmente um grande negócio — basta ver as sacolas e sacolas de dinheiro que saem do Morumbi e do Maracanã após os encontros promovidos por esses pastores.

(Sim, Deus é um grande negócio e agora chegou ao poder.)

Eu, bem chato: A senhora vive numa bela casa de muros altos, tem uma valiosa coleção de joias e costuma gastar em restaurantes quantias inimagináveis para os moradores das favelas que existem não muito longe do seu jardim. O abismo entre as classes sociais brasileiras não lhe parece extremamente profundo?

Hebe: Nunca escondi o fato de viver na opulência. Só que o meu padrão de vida foi conquistado à custa de trabalho. Posso ostentar minhas joias porque paguei por todas elas. No meu tempo não existia a Odebrecht. O abismo social existe, é claro, mas acho que também é muito fomentado. Hoje, ninguém tem o direito de melhorar. Quem sobe na vida é olhado com desconfiança.

(Sim, senhores, Hebe disse que, no tempo dela, “não existia a Odebrecht”. Foi mais uma a dar a dica onze anos antes da eclosão do mensalão — e ninguém foi atrás, alguns por conveniência. Os burros éramos nós, não ela, tantas vezes depreciada por jornalistas e intelectuais.)

Terminada a entrevista, ela me disse: “Você, com essa carinha, vai tirando respostas da gente… Quero te mostrar uma coisa”. E me convidou para descer até a pequena casa ao lado da piscina. Ao entrar na casa, ela me mostrou um papagaio de brinquedo. “Comprei em Miami, é de pilha, uso para descarregar a tensão”, disse Hebe, ligando o papagaio.  Deu-se a seguinte cena:

“Filho da puta!”, gritou Hebe para o papagaio.

“Filho da puta!”, respondeu o papagaio.

Ela deu a sua gargalhada, eu um pouco atônito.

“Vai tomar no cu!”, gritou Hebe.

“Vai tomar no cu!”, devolveu o papagaio.

Gargalhamos juntos.

“Agora você”, disse ela.

“Vai pra puta que te pariu!”, gritei.

“Vai pra puta que te pariu!”, repetiu o papagaio.

Mais gargalhadas.

“Gostei de você. Achei que você estava precisando”, disse ela.

“Eu também gostei de você, Hebe”, respondi.

Nunca mais nos vimos. E eu nunca mais gargalhei como naquele dia.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO