Arquivo pessoal"O mais grave é a passividade das instituições militares que, inadvertidamente envolvidas, optam pelo silêncio"

O general que fala

Ex-integrante do governo e próximo do Alto Comando do Exército, Francisco Mamede de Brito Filho faz duras críticas a seus colegas de farda que ladeiam Bolsonaro no Planalto
28.08.20

Aos 58 anos, o general Francisco Mamede de Brito Filho conhece a fundo a gênese militar daqueles que hoje comandam o país. Durante quatro décadas de caserna, ele conviveu com alguns dos ministros mais influentes do governo de Jair Bolsonaro. Serviu com Augusto Heleno, hoje chefe do GSI, no antigo Ministério do Exército do governo Fernando Henrique, atuou como instrutor na Academia Militar das Agulhas Negras ao lado de Fernando Azevedo e Silva, atual ministro da Defesa, nos anos 1980, e foi subordinado a Luiz Eduardo Ramos, agora ministro da Secretaria de Governo, quando comandou a Brigada de Montanha em Juiz de Fora, em 2013, pouco antes de migrar para a reserva.

A proximidade com figurões de alto coturno da República fez com que o general Brito, como ele é conhecido, fosse convidado a integrar a tropa que se instalou no Planalto no início do governo, o primeiro liderado por um militar desde a redemocratização. Nada funcionou da maneira como ele esperava: o oficial da reserva durou apenas quatro meses na chefia de gabinete do Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais, o Inep, de onde saiu profundamente frustrado após a demissão do então ministro da Educação, Ricardo Vélez. “Entreguei o cargo convencido de que nunca existiu um programa de governo minimamente estabelecido e ordenado”, afirma. “Na sequência, veio o aprofundamento da radicalização ideológica e a fuga ao diálogo democrático.”

Filho de um advogado que lecionava filosofia e de uma professora, Brito se dedicou por anos aos estudos estratégicos de defesa, com passagem pela Escola de Guerra de Paris. Desenvolveu um pensamento crítico que nunca resultou em insubordinação dentro do Exército, mas que hoje, com a liberdade de quem está na reserva (e fora do governo), o transforma em uma voz sóbria e corajosa para apontar os erros dos ex-colegas de farda que alimentam, em sua avaliação, uma “ameaça intervencionista” diante da qual as Forças Armadas se calam, o que no seu entender é ainda “mais grave”. “Ao silenciar, parecem endossar as ameaças e atitudes inconvenientes, estabelecendo um nível de desinformação que só interessa ao próprio governo”, afirma o general nesta entrevista a Crusoé. Eis os principais trechos.

O sr. escreveu em um artigo recente que “mensagens dúbias” transmitidas por militares que ocupam cargos no governo alimentam o temor de uma intervenção militar no Brasil. Que mensagens são essas?
As mensagens ambíguas vêm sendo transmitidas de diferentes maneiras. Desde declarações públicas contendo ameaças veladas, até a passividade e o silêncio das instituições militares diante de eventos claramente antidemocráticos envolvendo a imagem das Forças Armadas. Todo cidadão é conhecedor de que, numa sociedade organizada, o segmento militar constitui-se numa ferramenta exclusiva do Estado para o emprego legítimo da força. Por isso, todo militar, ainda que na reserva, deve estar consciente de que, ao decidir participar do governo, dificilmente será visto como um cidadão comum. Aos olhos de grande parte da população, ele será sempre um militar. Quanto maior o nível de exposição pública do cargo que o militar ocupa, maior o cuidado que ele deve tomar com as palavras e atitudes que adotará no exercício da função governamental. A presença de militares da ativa em manifestações populares de cunho nitidamente antidemocrático é um exemplo de mensagem dúbia a ser evitada. Declarações públicas de militares que prenunciam “consequências imprevisíveis” ou que recomendam ao “outro lado” não “esticar a corda” são também mensagens difíceis de serem compreendidas sem a conotação de ameaça intervencionista. O mais grave, no entanto, é a passividade das instituições militares que, inadvertidamente envolvidas, optam pelo silêncio. Pois, ao silenciar, parecem endossar as ameaças e atitudes inconvenientes, estabelecendo um nível de desinformação que só interessam ao próprio governo.

O sr. está se referindo a declarações recentes dos ministros-generais Augusto Heleno e Luiz Eduardo Ramos. Eles embarcaram, de fato, na onda da ameaça?
Pode ser que tenha sido um descuido, algo não intencional. Mas qualquer militar com esse nível de exposição pública tem que ter muito cuidado com aquilo que fala. Mesmo que não tenha sido intencional, a mensagem passada foi essa. Da maneira como foi dita é uma ameaça velada. Pode ter sido que não tenha vínculo com ameaça de intervenção militar, mas deixa margem para essa interpretação. É preciso ter muito cuidado com as palavras. Mesmo estando na reserva e ocupando um cargo civil, ele continua sendo um militar.

O sr. acredita que a intervenção militar é um risco real no Brasil? Por quê?
Não acredito que uma intervenção militar represente um risco real. Na condição de militar graduado em 1983, e contemporâneo dos atuais integrantes do Alto Comando do Exército, conheço os valores democráticos que nortearam a formação da atual geração de líderes militares. Entretanto, sabemos que existe uma parcela saudosista da sociedade que, desiludida com os últimos governantes, parece acreditar numa solução militar para a instalação de um governo autoritário. O mais preocupante é perceber que a manipulação desse sentimento popular minoritário vem sendo realizada em proveito do atual governo justamente por meio das mensagens dúbias a que me referi. E o silêncio das instituições pode estar colaborando, ainda que passivamente, para esse processo de apropriação indevida das Forças Armadas para fins políticos.

Mas em que medida a posição de ministros militares como os generais Heleno e Ramos pode ter alguma repercussão nos quartéis, ainda que entre as patentes mais baixas?
Tenho total convicção de que intervenção militar é algo fora de propósito, e que tais declarações não têm efeito prático nenhum. Estando na reserva, os ministros militares não têm nenhum poder de ingerência sobre as Forças Armadas e, como já disse, não há predisposição na atual geração que está no comando. Entendo que tais declarações possam causar algum tipo de empolgação nas patentes mais baixas porque são pessoas menos maduras. Enxergam a classe militar a que pertencem ocupando espaço de destaque no governo e tendem a considerar que aqueles militares atuam sempre com uma postura irrepreensível. A estrutura do Exército é muito grande e diversificada. Os militares são cidadãos livres e podem adotar a convicção política que melhor lhes convier. Não se pode negar que existam militares eventualmente bolsonaristas ou saudosistas de uma época mais autoritária. O que não é admissível é o proselitismo político no ambiente da caserna, ou mesmo fora dela se o militar estiver fardado ou identificado como militar da ativa.

DivulgaçãoDivulgação“A manipulação desse sentimento popular minoritário vem sendo realizada em proveito do atual governo justamente por meio das mensagens dúbias”
Como alguém que estava até recentemente na caserna, o que o sr. pode dizer sobre o esforço das novas gerações de militares para se livrar da carga histórica do que se passou na ditadura?
Toda a nossa formação foi dentro de uma mentalidade de despolitização iniciada curiosamente no ano de 1964, no governo do marechal Castello Branco, que tinha uma visão estritamente legalista. Baseava-se, essencialmente, na redução do tempo de serviço ativo dos oficiais-generais a, no máximo, 12 anos e na implantação da meritocracia no processo de promoções. Naquela época, um oficial-general podia se afastar do serviço ativo para ocupar cargos políticos e depois voltar para a tropa. Isso foi inibido. Tais medidas, que coibiam o famigerado ambiente de troca de favores entre o poder político e a caserna, tornaram possível estabelecer, pela primeira vez no país, o conceito pleno das Forças Armadas atuando como instituições do Estado, distanciadas das atividades mundanas político-partidárias. Desde então, bons resultados foram alcançados. Assim como eu, a atual geração que hoje ocupa o Alto Comando sempre foi pautada para permanecer distante do cenário político partidário. Quartel é lugar sagrado, não se fala de política, nem se permite qualquer tipo de alusão a eventos de cunho político que não estejam historicamente convalidados. Nunca deixamos de perceber que as medidas restritivas e repressivas que foram adotadas durante o governo militar geraram antagonismos e ressentimentos internos, principalmente nos setores da sociedade que mais sofreram com tais medidas. Nossa meta sempre foi buscar o diálogo com base na Lei da Anistia e restabelecer o diálogo com esses setores da sociedade. Então, posso afirmar que é uma geração formada dentro de um tom conciliador, orientada para abrir as portas dos nossos quarteis e desconstruir os antagonismos gerados no governo militar.

O que o sr. acha da situação do ministro Eduardo Pazuello, militar da ativa que está há três meses como interino na pasta da Saúde?
Adotaram uma forma de driblar o Estatuto dos Militares. Como não pode assumir em definitivo o cargo de ministro, que é um cargo civil permanente, ele foi colocado como interino com a única intenção de caracterizá-lo como cargo civil temporário, que é uma condição exigida pelo estatuto, no caso de militar da ativa. Não é o espírito da lei. Uma interinidade dura quanto tempo? Presume-se que seja por um tempo mínimo, o suficiente para encontrar um substituto. Ele está no cargo interino há três meses. No caso do general Ramos, quando perceberam que havia uma impropriedade, ele teve de passar para a reserva para poder continuar no cargo.

Um dos principais argumentos utilizados pelos defensores de uma intervenção militar é a corrupção sistêmica no estado brasileiro. O sr. acredita que um eventual governo militar poderia acabar com a corrupção? Por quê?
Não há mais espaço para se falar de governo militar no nosso país, sob qualquer que seja a alegação. Nenhum governo no mundo está imune à corrupção. Muito pelo contrário, a história tem nos ensinado que é nos sistemas de governo menos democráticos e, portanto, menos transparentes, onde se verificam os maiores índices de corrupção. Se o que desejamos é acabar com a corrupção sistêmica, devemos, cada vez mais, defender a autonomia dos integrantes do Ministério Público, apoiando as iniciativas de sucesso que vêm realizando. Defender a maior celeridade dos tribunais para que se elimine a sensação de impunidade, principal fator a servir de estímulo para o cometimento de ilicitudes. Defender a liberdade de imprensa para que a transparência dos atos praticados por aqueles que nos representam seja a principal ferramenta em favor de uma maior probidade na administração pública. As instituições democráticas precisam ser fortalecidas. Suprimi-las, ou reprimi-las, é algo impensável no mundo contemporâneo. Algo que felizmente subsiste apenas no âmbito de correntes extremistas decadentes e fadadas ao esquecimento.

De que forma é possível coibir a politização das Forças Armadas hoje?
O atual quadro, onde militares da ativa passaram a ocupar cargos de natureza civil no governo, é algo que merece especial atenção. A situação é indesejável porque faz ressurgir no âmbito da caserna a competição por cargos de poder no governo. Além disso, reinaugura a possibilidade de realização de campanhas político-partidárias no interior dos aquartelamentos, prática visivelmente nociva às instituições militares. Hoje, o caso mais emblemático é o do atual ministro interino da Saúde. Um aspecto relevante a considerar é que será muito difícil para esse militar, ao retornar à caserna, dissociar a imagem do governo ao qual esteve vinculado da imagem do comandante militar responsável por manter a neutralidade política no ambiente da tropa sob seu comando.

Também temos visto o Exército atuando a pedido do governo na produção de medicamentos, como a cloroquina, e na execução de obras de infraestrutura. Qual deve ser o papel das Forças Armadas junto ao governo?
A realização de tais atividades possui amparo legal e qualquer solicitação do governo com esse escopo serão executadas mediante o simples repasse de recursos orçamentários. Não existem empecilhos para que as Forças Armadas contribuam com esse tipo de atividade. Devemos estar atentos, no entanto, aos propósitos político-partidários que costumam vir dissimulados nas entrelinhas de tais atividades.

O presidente Jair Bolsonaro vinha sendo criticado por estimular o confronto entre as instituições e governar apenas para seus apoiadores. Agora, selou acordos com a ala fisiológica do Congresso com receio de sofrer um processo de impeachment. Qual a sua avaliação sobre o governo até aqui?
Tive a oportunidade de integrar o governo durante os seus quatro primeiros meses, desempenhando o cargo de chefe de gabinete do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais, o Inep. Aceitei o convite para o cargo por acreditar que desempenharia um cargo gerencial, essencialmente técnico, para o qual me julgava habilitado e com a condição de me manter afastado do cenário político. Após a demissão do ministro Ricardo Vélez, entreguei o cargo convencido de que nunca existiu um programa de governo minimamente estabelecido e ordenado. Tudo o que aconteceu depois da minha saída do governo só veio corroborar a minha primeira impressão. Na sequência, veio o aprofundamento da radicalização ideológica e a fuga ao diálogo democrático. Muitos compromissos de campanha foram abandonados, como também foram abandonadas qualquer obediência à liturgia do cargo e qualquer pretensão ao posto de estadista de uma grande nação. Finalmente, veio a pandemia, para praticamente sepultar qualquer esperança de redenção. Diante dos fatos, não há como o atual governo escapar de uma avaliação insatisfatória.

DivulgaçãoDivulgação“Compromissos de campanha foram abandonados, como também foram abandonadas qualquer obediência à liturgia do cargo”
O que o sr. encontrou no Inep e por que saiu em tão pouco tempo?
A sensação era de total desgoverno diante das sucessivas crises que se instalavam diariamente e que só foram se intensificando com o passar do tempo. A maioria delas provocadas pela ala ideológica que pregava uma verdadeira caça às bruxas — e que acabou resultando na condenação de servidores públicos de elevado conhecimento técnico-profissional ao completo ostracismo. As decisões eram tomadas com base na simples suspeição de uma eventual militância de esquerda, ainda que praticada em épocas muito remotas. Lutei como pude em favor do diálogo e do equilíbrio e contra a radicalização ideológica. Após o anúncio do nome de Weintraub para a sucessão do ministro Vélez, decidi entregar o cargo. Se com Vélez havia alguma esperança de estabelecer o diálogo, com Weintraub não haveria a mínima chance.

O sr. acredita que um eventual fracasso do governo Bolsonaro possa afetar a imagem e a credibilidade das Forças Armadas?
Se nada for feito em relação ao atual cenário, a tendência é a de que possa ocorrer certo desgaste, ainda que limitado. Entretanto, as Forças Armadas possuem uma estatura institucional amadurecida e consolidada o suficiente para ultrapassar satisfatoriamente momentos de turbulência como os que estamos enfrentando. Confio plenamente na capacidade dos atuais chefes militares para controlar os danos que já foram causados e para interromper o prosseguimento desse processo.

Como é, aos olhos de um militar graduado, ver a família do presidente egresso do Exército ligada a personagens controversos relacionados a milícias do Rio e a tramas ainda não explicadas, como os cheques do ex-assessor Fabrício Queiroz para a primeira-dama?
Claro que todas as suspeitas precisam ser investigadas. São graves e depõem contra a pessoa do presidente, embora isso ainda estejam sob investigação. Só posso considerar lamentável que essas suspeitas todas envolvam a pessoa que ocupa o cargo máximo do país. É lamentável. Não podemos partir para o julgamento sem uma investigação adequada. O ideal seria que as suspeitas nem existissem. Se elas existem, precisam ser investigadas de forma imparcial e, por isso, temos que defender a autonomia do Ministério Público e do Congresso Nacional para investigar ou analisar com independência, e denunciar, se for o caso. É importante poder contar com a liberdade de atuação das instituições, pois assim deve ser o exercício democrático.

O sr. defende o impeachment do presidente Jair Bolsonaro?
Não disponho de dados suficientes para tal avaliação. O que posso defender é o direito de qualquer cidadão que, eventualmente, disponha de tais dados ao oferecimento da denúncia e ao correto encaminhamento no âmbito das instituições competentes, seja no Ministério Público ou na Câmara dos Deputados.

Temos observado nos últimos meses uma mudança de comportamento do presidente Bolsonaro, adotando práticas comuns ao ex-presidente Lula, por exemplo. O sr. teme que o Bolsonaro se torne um líder populista engajado na manutenção de seu projeto de poder?
No meu entendimento, já existe muita semelhança em diversas práticas adotadas pelo atual governo, e que não são de agora. No entanto, é preciso ter certa cautela com o conceito de populismo. Se o fato de se apropriar do sagrado com o intuito de usar, para fins políticos, o nome de Deus, ou o fato de se apropriar do aparato militar do Estado, para usar, com o mesmo propósito, o nome das Forças Armadas podem ser ambos considerados práticas populistas, então estamos diante de um caso concreto de populismo. Em vigor desde o início da campanha eleitoral do atual governo.

Qual a avaliação do sr. sobre o atual movimento político e institucional contra a Operação Lava Jato?
Acredito que se trata de um grande retrocesso no combate à corrupção. Felizmente, a sociedade já foi contagiada pelo espírito republicano que alimentou o surgimento da Lava Jato. E essa tomada de consciência, que parece não mais ter volta, é o principal legado da operação. É lamentável constatar o surgimento de forças contrárias que atuam, à luz do dia, para desmontar uma ferramenta que tanto colaborou para o saneamento da administração pública do nosso país.

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