SergioMoro

Bons exemplos

28.08.20

Há um velho ditado que diz que “um bom exemplo vale mais do que mil palavras”. Não consegui descobrir o autor originário da frase, talvez tenha se perdido no tempo. Mas temos outras frases atribuídas à sabedoria popular que são equivalentes, como “não importa o que você diz, mas, sim, o que você faz”, “de nada adianta a fala se ela não corresponder ao gesto” e “o peixe apodrece pela cabeça”.

Podem ser simples adágios ou conselhos dos avós, mas a mensagem segue reverberando. Por isso deveria compor a cartilha, especialmente, de quem exerce algum cargo de liderança. Os líderes são os principais responsáveis por darem o exemplo de atitudes corretas.

Isso deveria ser válido para qualquer grupo, seja familiar, religioso, empresarial – desde gestores de pequenas a grandes corporações ou instituições – e político, principalmente para a liderança máxima de um país.

Esses ditados voltam à memória quando me recordo de alguns episódios da Operação Lava Jato, em especial o álibi apresentado por algumas lideranças de grandes empreiteiras que, ao negarem o pagamento de suborno a agentes públicos, também afirmavam que mantinham sofisticados e modernos sistemas de compliance e, portanto, seria impossível que tais fatos tivessem ocorrido no âmbito corporativo.

Lembro, aliás, que duas dessas empreiteiras publicaram anúncios de página inteira nas principais revistas e jornais do país, negando envolvimento em ilícitos e criticando as investigações.

Cerca de um ano depois, essas mesmas empresas estavam celebrando acordos de leniência com o Ministério Público, nos quais reconheciam o pagamento sistemático de suborno, ou seja, desmentiram as negativas anteriores. A conclusão necessária é que os sistemas de compliance das empresas eram de fachada, já que os crimes eram planejados e cometidos na cúpula, um péssimo exemplo de liderança.

Passemos agora a uma liderança exemplar. Eu, particularmente, sempre me inspirei no trabalho do juiz italiano Giovanni Falcone, que se notabilizou pelo combate à Máfia nos anos 1980. Recentemente, tive a oportunidade de prefaciar a publicação em português do livro Excellent Cadavers que, escrito por Alexander Stille, conta bem a história de Falcone e de seus colegas magistrados no enfrentamento da Cosa Nostra (No Brasil, o livro ganhou o título “Morte a Vossa Excelência”).

A Cosa Nostra era tida como invencível, pois dificilmente suas lideranças eram processadas e condenadas. Mas, graças à força-tarefa de juízes e ao trabalho de outras instituições italianas, a Máfia foi levada a julgamento em um “maxiprocesso”. Em um ano e dez meses, de um total de 475 acusados, 344 foram condenados, entre eles os principais líderes da organização criminosa.

Não deixaram de existir percalços no trâmite dos recursos. Vários mafiosos foram soltos e condenações anuladas, principalmente por decisões de um magistrado da Corte de Cassação que foi apelidado de “ammazza sentenze”.

Mas, no final, o desfecho foi positivo, pois a Corte de Cassação italiana, em 30 de janeiro de 1992, manteve e restabeleceu a condenação da maioria dos acusados.

Falcone, nesse tempo, já não estava mais na magistratura. Desiludido com o arrefecimento do combate à Máfia pelo Estado italiano e com dificuldades profissionais, apesar de seus méritos, aceitou trabalhar na Divisão Criminal do Ministério da Justiça italiano. A luta contra a Máfia poderia começar em Palermo, mas só poderia ser ganha em Roma.

O tempo de Falcone no Executivo foi, porém, curto. A Cosa Nostra vingou-se das condenações do “maxiprocesso”, vitimando Falcone com um atentado a bomba na estrada de Capaci, em 23 de maio de 1992. Logo depois, seu colega mais próximo, Paolo Borsellino, seria também assassinado em 19 de julho de 1992.

Mas esse não é um texto sobre tragédia e sim sobre bons exemplos e lideranças. Os magistrados italianos, com enorme custo, mostraram que a Cosa Nostra não era invencível e que a impunidade dos chefes criminosos poderia ser superada. Tomo a liberdade de transcrever trechos do meu prefácio:
“Foi um preço muito alto, mas, além dos ganhos imediatos, o fim da impunidade da Máfia, é importante destacar que os exemplos de dedicação e coragem desses magistrados e servidores públicos transcendem em muito o combate à Máfia e o território de Palermo, da Sicília e mesmo da Itália. Uma das provas é o livro que ora chega, finalmente traduzido, às mãos do público brasileiro.”

E ainda:

“Ao final, uma confissão pessoal. Admito que, nos muitos momentos difíceis da minha atuação como juiz – e foram eles muitos, não só na Lava Jato – sempre me inspirei na figura de magistrados como Giovanni Falcone. Meus momentos mais difíceis não faziam par às dificuldades vividas por ele e por seus colegas no combate à impunidade da Máfia. De certa forma, a experiência pessoal dele servia como um alento no sentido de que, apesar das minhas dificuldades serem grandes, eram elas superáveis, já que outros haviam, antes, passado por provações ainda mais significativas e em situações de risco mais elevadas. Não poderia reclamar ou desistir de minhas tarefas quando Falcone não havia desistido diante de obstáculos muito maiores.”

Diria que o mundo, especialmente o Brasil, precisa atualmente de bons exemplos e de boas lideranças, especialmente diante das tragédias e incertezas trazidas pela pandemia da Covid-19, da iminente recessão econômica, da polarização extremada e do abandono político aparente da agenda anticorrupção.

Os obstáculos existem, há reveses e pedras pelo caminho, mas não podemos desistir de fazer a coisa certa sempre.

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