MarioSabino

A cota da má consciência

28.08.20

Na escola do meu filho mais novo e também em outras cuja clientela pertence à classe média de verdade, não aquela do IBGE, pais se movimentam para dar bolsas de estudos para alunos negros e criar cotas para professores igualmente negros. De repente, eles perceberam que não havia negros na escola, afora aqueles poucos que trabalham na limpeza e outros serviços subalternos. Ao dar uma espiada nas mensagens sobre a novidade trocadas num grupo de WhatsApp, a minha primeira impressão foi a de que os defensores da novidade tiveram uma iluminação divina como a de Saulo na estrada para Damasco. O mais provável, no entanto, é que a conversão tenha ocorrido por meio das ações afirmativas em comerciais de TV.

Onde estava esse pessoal o tempo todo? A esmagadora maioria não estava ao meu lado, posso garantir. Há quatro anos, contei num artigo:

Estudei em escola pública de 1971 a 1976. Fui para a escola pública depois que a separação dos meus pais empobreceu a minha mãe; voltei para a escola particular depois que o meu pai, casado pela segunda vez, parou de brigar com a minha mãe — e a escola pública havia começado a se tornar um lixo completo. 

As duas escolas públicas que tive a oportunidade de frequentar contavam com excelentes professores, laboratórios bem equipados, bibliotecas decentes e quadras de esporte impecáveis. Eram exceções num universo incomparavelmente melhor do que o de hoje. Filho de médico, eu convivia com filhos de empregadas domésticas, pedreiros, feirantes, comerciários, garçons e, imagino, desempregados. Branco, eu convivia com outros brancos, negros, mulatos, cafuzos e asiáticos. Bom corredor, no pega-pega eu levava olé do Estevão, primogênito de uma lavadeira. 

Nossos filhos não tiveram nem terão semelhante experiência. Mesmo que ocorram vicissitudes familiares como as que marcaram a minha infância, sempre haverá um tio pronto a evitar a ‘tragédia’ de os sobrinhos serem obrigados a sair do sistema privado de ensino. Escola pública, para a classe média, agora é ameaça de castigo para quem tira notas ruins: “Se não se emendar, mando você para uma escola estadual!” 

A falência total da escola pública não é só fruto do descaso, mas de uma política desenhada para o seu aniquilamento — que, paradoxalmente, se acentuou com a redemocratização do país. Destruiu-se a escola pública para enriquecer empresários que, em geral, oferecem ao povão um ensino ruim envernizado por instalações físicas razoáveis. Destruiu-se a escola pública e, com isso, fortaleceu-se a pedagogia esquerdista que prega a desordem, não o progresso. Resultado: quedas contínuas no desempenho dos alunos brasileiros nos exames internacionais e da produtividade dos nossos trabalhadores de qualquer nível. 

Não haverá democracia no Brasil enquanto não houver escola pública de boa qualidade para todos, inclusive os seus descendentes, leitor de classe média. Não apenas porque ela oferecerá chances iguais a pobres e ricos, mas porque possibilitará a queda do enorme muro que separa as classes sociais. É preciso que ricos possam brincar com pobres no recreio; é preciso que pobres possam brincar com ricos no recreio — e, juntos, aprendam o que vale a pena ser aprendido em sala de aula. E, juntos, deixem de ter medo uns dos outros. E, juntos, prosperem e construam uma nação. Quero que, no pega-pega, o meu neto leve olé do neto do Estevão.

Também abordei o desmonte da escola pública em outro artigo publicado em novembro de 2018, já nesta Crusoé, intitulado  O suicídio do Brasil. Relato nele a experiência de ter levado o meu filho caçula para conhecer a minha antiga escola, hoje em estado lastimável, assim como a maioria das suas congêneres.

Ter estudado em escola pública não me dá, evidentemente, superioridade moral ou “lugar de fala”. Mas me dá muito conhecimento de causa. Só escolas públicas de boa qualidade darão chance aos pobres (de todas as etnias) de ascender economicamente. Só escolas públicas de boa qualidade golpearão fortemente a discriminação racial e social. Só escolas públicas de boa qualidade serão a nossa porta de entrada para o mundo desenvolvido. Nos países que eliminaram a pobreza endêmica, as escolas públicas de boa qualidade tiveram um papel fundamental. Elas existem no Brasil, mas formam um minúsculo arquipélago num oceano de precariedade.

Dito isso, não sou contra dar bolsas de estudos para negros, obviamente. Desde que sejam distribuídas também a pobres não negros. A mensalidade ficará mais salgada, mas estou disposto a pagar por isso. Sou contra, porém, estabelecer cotas para professores negros. Pago para o meu filho ter bons professores, e não é a cor da pele que garante a capacidade de ninguém. Se há racismo na escolha dos docentes pela escola, é preciso denunciar o fato criminoso e ter controle externo sobre o processo de seleção. O melhor professor de literatura que tive era negro e homossexual. Mas ninguém levava isso em conta na escola particular em que completei o colegial, e nem tinha de levar mesmo. O Aguinaldo era respeitado por seu conhecimento e a sua paixão pelos grandes autores (ele, aliás, gostava de atribuir cores às personalidades dos alunos. Eu era “geleia”, o que é mais questão de consistência do que de cor, convenhamos, e atribuição não muito elogiosa). Na minha opinião, estabelecer cotas para professores negros é já partir do pressuposto que eles são necessariamente piores.

Ações afirmativas que servem apenas para aplacar a má consciência da classe média branca esclarecida me causam embrulhos no estômago. A convivência natural e sadia de negros e brancos se dá em ambientes nos quais ambos são plenamente iguais e tratados como tal, não naqueles nos quais a cor da pele realça diferenças que não poderiam existir. Escolher ou ser escolhido primeiramente por ser negro, não por ser bom professor, acentua a discriminação de maneira dissimulada. Para cancelar clivagens indesejáveis e ultrajantes, a solução é a classe média colocar os seus filhos na escola pública e lutar para que ela seja boa para todos, com professores negros e brancos bem preparados e bem pagos. Compreende-se que ninguém queira usar os filhos como pioneiros nessa empreitada, mas o caminho é esse. Pinçar negros para estudar ou ensinar em escolas particulares caras, pelo fato de serem negros, não resolverá problema social nenhum. É tão somente hipocrisia que, ao resolver casos individuais, alivia a cota da má consciência.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO