Carlos Fernandodos santos lima

Cada um sabe o valor de sua consciência

21.08.20

“Meu dever é falar, não quero ser cúmplice”. Assim Émile Zola sintetizou em seu célebre artigo J’accuse, de 1898, a sua obrigação moral de expor ao povo francês a farsa da punição de Alfred Dreyfus, capitão do Exército, de fé e origem judaica, por crime de espionagem, na realidade cometido por outro oficial. Zola, nesse libelo, dá voz à injustiça que o Exército então cometia ao condenar Dreyfus contra todas as provas. Por sua coragem, Zola, um dos maiores escritores franceses, é condenado à prisão e precisa se exilar na Inglaterra, sendo assassinado quatro anos após a publicação do artigo.

Não pense, caro leitor, que em pleno século 21 nós brasileiros estamos longe desse tipo de odioso aparelhamento do estado e do cometimento da mesma espécie de injustiça. Muito pelo contrário. O Brasil encontra-se muito atrasado em comparação às nações de Primeiro Mundo em questões civilizatórias básicas, como probidade da administração pública, igualdade de todos perante a lei, acesso à educação universal de qualidade ou segurança pública. Pena que o atraso ainda seja tão forte e nos coloque mais de cem anos atrás de outros grandes países, especialmente no que se refere ao combate à corrupção pública.

Sem pretender ser um Zola, mas cumprindo o que acredito ser minha obrigação de falar, de não ser cúmplice dessas elites atrasadas, injustas e soberbas, quero pôr às claras a atuação de algumas das principais autoridades de nossa República. Primeiramente, vamos falar de Augusto Aras, atual procurador-geral da República, e de como sua postura não é a de um legítimo representante do novo Ministério Público, aquele Ministério Público criado pela Constituição Federal de 1988 como defensor da sociedade, mas sim a de defensor do poder político, subordinado aos interesses do governante de plantão — enfim, a de um mero instrumento nas mãos de interesses não republicanos.

E, ao mencionar Aras, não posso deixar de lembrar de quem o escolheu justamente por sua subserviência. Jair Bolsonaro é completamente desqualificado para o cargo de presidente da República, inepto para tomar decisões a respeito das grandes questões nacionais e um aproveitador da onda de indignação popular contra a corrupção e a consequente má prestação de serviços públicos básicos. Da mesma forma, percebe-se claramente o estelionato eleitoral que cometeu ao empunhar falsamente bandeiras da probidade, da anticorrupção e de um estado menor e mais eficiente — enfim, as bandeiras que levaram a população às ruas nas manifestações iniciadas em 2013. Ele as descartou antes da metade do seu governo, unindo-se ao pior da política brasileira, para sobreviver aos escândalos criminais envolvendo sua família.

E, considerando a sua fidelidade ao poder e às verbas, relembro o papel costumeiro dos políticos e partidos do Centrão – o pior da política brasileira, estes mesmos que agora incensam Bolsonaro, assim como ajudaram Temer, como suportaram Dilma, como adoraram Lula, como apoiaram Fernando Henrique, como traíram Collor e foram criados por Sarney — de reduzirem o estado brasileiro, como vermes atacando Jeca Tatu, ao impaludismo crônico, mantendo-o no limite de sua sobrevivência apenas para não perderem sua vaca leiteira, sua galinha dos ovos de ouro.

Sendo o Centrão quem é, não poderia deixar de citar o atual presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, o generalíssimo desse baixo clero, que comandou no interesse seu e desses políticos uma verdadeira “noite de São Bartolomeu”, onde foram massacradas e mortas as “10 Medidas contra a Corrupção”, projeto de iniciativa popular com mais de 2 milhões de assinaturas, que representava a vontade da população brasileira de um país livre desse cancro. Não podemos esquecer também que Rodrigo Maia, como típico fariseu que é, enquanto discursa pela punição de membros do Ministério Público, não permite qualquer investigação e punição ético-disciplinar de tantos deputados federais mencionados, investigados, acusados e até condenados por escândalos e crimes cometidos contra a sociedade brasileira.

E se falamos de um chefe de poder, não é possível esquecer de outro. Assim, é importante observar a conduta do ministro Dias Toffoli durante plantões judiciários, a sua prodigalidade em dispensar decisões em casos que não são de sua relatoria, sem qualquer urgência, comedimento ou razoabilidade jurídica na medida solicitada, mas apenas em um voluntarismo obsequioso que paralisou investigações contra interesses poderosos por todo o país ou autorizou o indevido e perigoso acesso a informações sigilosas produzidas perante outros órgãos do Poder Judiciário.

Por fim, mas não o fim de todos que mereceriam ser lembrados na nossa falsa República, denuncio essas autoridades e o secretário-geral do Senado, dublê de membro do Conselho Nacional do Ministério Público, Luiz Fernando Bandeira de Mello Filho, de arquitetarem o afastamento de Deltan Dallagnol da sua função constitucional de promotor natural da Operação Lava Jato, em um verdadeiro atentado contra a independência do Ministério Público e inamovibilidade de seu membro, pretendendo calá-lo e utilizá-lo como exemplo para todos aqueles promotores de Justiça e procuradores da República que um dia ousem desafiar o modelo de política brasileira que a coloca acima das leis e além dos braços da Justiça.

Infelizmente, todas essas denúncias hoje encontram pouco eco na sociedade e imprensa brasileiras, que se encontram entorpecidas após anos de revelações de crimes sórdidos e ausência de eficácia da persecução penal em levar a maior parte dos corruptos para trás das grades, o seu lugar por direito. Mas “ainda há juízes em Berlim”, e aos poucos os bons magistrados nos tribunais superiores, como o ministro Felix Fischer do STJ, e os ministros Fachin e Fux no STF vão restabelecendo o certo e justo no que está ao seu alcance.

Assim foi a decisão histórica do ministro Celso de Mello que impediu o uso arbitrário de uma salada russa de acusações falsas, repetidas e já rechaçadas contra Deltan Dallagnol. Mas esta é apenas uma batalha. Há outros membros do Ministério Público perseguidos pela inquisição política. Haverá outras lutas importantes, inclusive e especialmente em relação à anulação da condenação de Lula, confirmada em três instâncias, o que poderá estender o caos político pelos anos vindouros.

E quem sou eu para recordar desses atores e denunciar suas atitudes questionáveis? Sou, nem mais, nem menos, um cidadão brasileiro, dono ainda de minha cidadania e, enquanto não me faltar voz ou não for calado por um inconstitucional inquérito do STF, do direito de fazer esse libelo contra a rede de mentiras e conveniências, esse acordão nacional que puxa o Brasil para baixo, impedindo-o de sair desse lodaçal vergonhoso da desigualdade causada pela apropriação do estado brasileiro por uma elite política corrompida. Cada um sabe onde está sua consciência e do valor que ela tem.

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