Adriano Machado/CrusoéA deputada Bia Kicis usou a estrutura da Câmara, bancada com dinheiro público, para mover a ação

Porteira aberta

Crusoé é alvo de mais uma ordem judicial de censura: o exemplo que vem de cima, especialmente do STF, tem encorajado juízes a sufocar a liberdade de imprensa
14.08.20

Rui Barbosa afirmava que a imprensa é a vista da nação. Por ela é que a população de um país acompanha o que lhe passa ao perto e ao longe, enxerga o que lhe malfazem, devassa o que lhe ocultam, colhe o que lhe sonegam, percebe onde lhe alvejam, mede o que lhe cerceiam, vela pelo que lhe interessa, e se acautela do que a ameaça. Por isso, impedir a publicação de algo é como vendar os olhos de uma nação. É o que o juiz Hilmar Castelo Branco Raposo Filho tenta fazer ao decretar a censura a uma reportagem de Crusoé a pedido da deputada bolsonarista Bia Kicis, do PSL do Distrito Federal, avocando para si uma função que em tempos sombrios da vida nacional era dos censores que circulavam pelas redações, mutilando reportagens incômodas aos poderosos de então.

Na quarta-feira, 12, em razão da decisão do magistrado da 21ª Vara Cível de Brasília, Crusoé passou a usar uma tarja preta sobre o nome da deputada na matéria publicada na edição semanal de 17 de julho. A reportagem mostrou como parlamentares de diferentes tendências, de petistas a bolsonaristas, estão curiosamente alinhados no propósito de relegar ao esquecimento a proposta de emenda constitucional que prevê a prisão de réus condenados em segunda instância.

Apesar da relevância do tema e do interesse público, a mobilização entre parlamentares que, em passado recente, fizeram do apoio à medida seu estandarte eleitoral esmoreceu. Foi justamente nesse contexto que o nome de Bia Kicis foi citado – uma única vez. Mesmo assim, e apesar da fartura de elementos capazes de comprovar a afirmação, a deputada recorreu à Justiça para que Crusoé fosse amordaçada, e ainda se valeu dos serviços da Procuradoria Parlamentar da Câmara dos Deputados, ou seja, de uma estrutura bancada com dinheiro público, em sua investida. “Usei, sim, a estrutura da Câmara que existe para a defesa da imagem e honra dos parlamentares atacados em razão do exercício de seus mandatos”, reconheceu ela.

A liberdade de expressão é um direito fundamental garantido pela Constituição e ratificado em dezenas de tratados internacionais, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Mas, no Brasil de 2020, esse princípio basilar de qualquer sociedade democrática tem sido perigosamente relativizado por autoridades dos Três Poderes. A sequência de decisões judiciais e investigações abertas para constranger a imprensa nos últimos tempos é ilustrativa desse cenário sombrio. Números da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo, a Abraji, mostram que há hoje no Brasil mais de 2.960 tentativas de censurar a imprensa e a liberdade de expressão por meio de processos judiciais ajuizados por políticos, partidos, empresas e figuras públicas.

SECOM/MPDFTSECOM/MPDFTO juiz Castelo Branco: histórico de decisões contra a imprensa
“A censura à imprensa é inconstitucional e viola os princípios da democracia e da livre expressão”, afirmou em nota a Associação Brasileira de Imprensa, a ABI, a propósito da censura à reportagem de Crusoé. A entidade classificou a medida judicial como “absurda” e defendeu que ela seja “prontamente revogada”. Os episódios recentes de censura, ou de tentativa de censura, somam-se a declarações virulentas de parlamentares, a canetadas de integrantes do STF e a pronunciamentos do presidente da República, Jair Bolsonaro, desferidos com certa regularidade contra a imprensa. Esse conjunto forma um quadro aterrador, em que os ataques à liberdade de expressão parecem ganhar lastros institucionais.

Até o Ministério Público Federal, a quem a Constituição incumbiu a tarefa de “defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais”, virou protagonista nas ofensivas contra a imprensa livre. Como Crusoé mostrou na edição passada, o procurador-geral da República, Augusto Aras, chegou a apresentar ao Supremo Tribunal Federal um pedido para investigar comentários postados por leitores de Crusoé e do Antagonista. O pedido, que sugeria ainda a responsabilização dos veículos pelos comentários críticos de leitores a ministros do Supremo, foi apresentado em março ao ministro Alexandre de Moraes, nos autos do “inquérito do fim do mundo”. Moraes prontamente topou a empreitada.

Crusoé já havia sido alvo de censura em abril do ano passado, quando oficiais de justiça bateram à porta da redação para entregar uma decisão do mesmo Alexandre de Moraes, no mesmo “inquérito do fim do mundo”. Ao inaugurar a série de atentados contra a liberdade de expressão escorada no inquérito sigiloso e inconstitucional destinado a apurar ofensas e ameaças a integrante da corte, Alexandre Moraes determinou a retirada do ar da reportagem “O amigo do amigo do meu pai”, baseada em um documento que constava dos autos de um inquérito em curso na Justiça. A decisão do ministro foi tomada a partir de uma provocação do presidente do Supremo, Dias Toffoli, que se viu incomodado com o texto publicado. A reportagem mostrava, basicamente, que o empreiteiro Marcelo Odebrecht dissera à Polícia Federal que era Dias Toffoli “o amigo do amigo do meu pai” mencionado em mensagens trocadas por executivos da empreiteira.

A despeito da primeira censura, Crusoé continuou a defender o respeito à liberdade de expressão mesmo quando atacada de forma vil pelas falanges bolsonaristas nas redes sociais, as mesmas que, posteriormente, também teriam suas contas suspensas pelo mesmo STF, a partir de uma determinação do mesmo ministro e com base no mesmo inquérito condenável que subverte o sistema acusatório ao estabelecer uma estrutura em que o togado é vítima, investigador, acusador e juiz.

Marcos Oliveira/Agência SenadoMarcos Oliveira/Agência SenadoAs canetadas de Alexandre de Moraes também calaram perfis bolsonaristas
A censura de abril de 2019 teve um efeito bumerangue e voltou-se contra o próprio Toffoli: a ordem de Moraes amplificou a repercussão do caso envolvendo o presidente do STF. A ação da deputada Bia Kicis gerou as mesmas consequências: o nome da parlamentar figurou entre os assuntos mais comentados do Twitter na quinta-feira, 13, e sua postura acabou virando alvo de críticas duras. Nas redes sociais em geral, multiplicaram-se posts que apontam a contradição da deputada ao ajuizar a ação.

Em março, a propósito da notícia sobre uma suposta ordem para tirar da internet menções negativas a empresas envolvidas em escândalos, ela disse o seguinte: “A Justiça brasileira obriga o Google a apagar toda e qualquer menção ao escândalo da JBS/Friboi. Isso é censura. Um grande absurdo”. Cinco meses depois a deputada, firme em suas convicções, recorreria ao mesmo expediente. No final de julho, Bia Kicis também criticou a decisão de Alexandre de Moraes que determinou a retirada de contas de bolsonaristas do Twitter e do Facebook. “Enquanto eu defendo a liberdade, psolista defende censura. Normal, qual a novidade?”, escreveu.

Na reportagem que atiçou a ira da deputada, Crusoé lança luz sobre os inúmeros fatores que inibem o andamento da PEC da Segunda Instância no Congresso. Um deles é o fato de deputados bolsonaristas que até havia pouco usavam a defesa da proposta como bandeira eleitoral terem deixado de apoiar a iniciativa publicamente. Para além de ter abandonado o tema em suas redes sociais, a deputada também deixou de tocar no assunto em seus discursos. Nas 40 vezes em que falou neste ano, ela não fez uma única defesa pública da proposta. No entanto, o juiz, que ostenta um histórico de decisões contra órgãos de imprensa, decidiu obrigar a retirada da reportagem do ar ou, ao menos, a supressão do nome da deputada. Em 2017, ele já havia proibido a Folha de S.Paulo e O Globo de publicar informações sobre uma tentativa de extorsão sofrida pela então primeira-dama, Marcela Temer. Três anos antes, o magistrado condenou a editora responsável pela publicação da Carta Capital e dois jornalistas a pagar 180 mil reais em indenização a Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, por textos considerados ofensivos à honra do ministro.

“Hoje, a censura, além de arbitrária, não tem critérios, por isso ela é tão indecorosa. A situação beira a barbárie”, lamenta o professor da USP Ferdinando Martins, vice-coordenador do Observatório de Comunicação, Liberdade de Expressão e Censura da instituição. “A partir de 1988, a censura foi oficialmente extinta, mas passamos a ter outras formas, como a censura togada, exercida pelo Judiciário. Os veículos mais combativos e que se expõem mais, como Crusoé, acabam sendo as maiores vítimas”, prossegue Martins. “O fato de uma deputada se sentir atingida por uma matéria de uma revista e conseguir que um juiz determine a censura é, a esta altura do campeonato, muito preocupante”, diz Rosental Calmon Alves, diretor do Centro Knight para o Jornalismo nas Américas e professor da Universidade do Texas.

Antonio Augusto/Secom/PGRAntonio Augusto/Secom/PGRAras pediu investigação sobre caixas de comentários de Crusoé e Antagonista
No rol de casos igualmente condenáveis de ataques à liberdade de imprensa, está a censura imposta ao jornal O Estado de São Paulo por reportagens sobre negócios suspeitos da família de José Sarney. A censura durou espantosos nove anos, de 2009 a 2018, até finalmente ser derrubada no STF. Advogados do empresário Fernando Sarney, filho do ex-presidente e ex-senador, alegavam que o jornal ferira a honra do clã ao publicar as matérias. Outro episódio estarrecedor ocorreu recentemente no Rio Grande do Sul. Em junho passado, o juiz Daniel da Silva Luz, do município de Espumoso, impôs censura prévia a uma reportagem da RBS TV, afiliada da Rede Globo, sobre fraudes na concessão do auxílio emergencial. A decisão foi assinada a pedido de uma dentista que havia recebido, irregularmente, o benefício de 600 reais destinado a brasileiros em dificuldades financeiras em razão da pandemia de coronavírus.

Magistrados como Hilmar Raposo Filho e Daniel da Silva Luz não estão sozinhos. Infelizmente, nestes tempos estranhos, alguns iluminados têm se arvorado o papel de “editores da nação”, para impor perigosos limites à liberdade de expressão e de imprensa. É o novo normal com cheiro de mofo a avalizar toda a sorte de abusos e decisões com tintas fortemente autoritárias. Nas décadas de 60 e 70, quando atos assim se banalizaram, o país vivia um regime de exceção que eliminara, por diversos atos discricionários dos generais de plantão, a liberdade. Assim, é inacreditável, intolerável mesmo, que a sombra da censura e da intimidação volte a ser lançada por uma Justiça que deveria zelar pela democracia plena que, até muitas provas em contrário, ainda se encontra em vigor no Brasil.

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