SergioMoro

Em defesa da Lava Jato

14.08.20

Sim, já li recomendações aqui e ali de que devo escrever sobre assuntos variados e não apenas sobre corrupção. Em minha defesa, os quatro artigos que escrevi na Crusoé foram sobre temas bem variados: contra a “intervenção militar”, a favor de reformas e das instituições, sobre liberdade de expressão e redes sociais, e apenas um – “Senhor da Moscas” – foi sobre ameaças ao combate à corrupção.

Para satisfazer em parte as cobranças, esclareço algumas posições. Sou a favor do livre mercado e da iniciativa privada. As nações mais prósperas são aquelas que bem souberam incentivar o desenvolvimento a partir do investimento privado. Não se ignora, evidentemente, que o Estado tem um papel importante na regulação do mercado, especialmente para evitar excessiva concentração de riqueza, prevenir monopólios e oligopólios, incentivar a livre concorrência, prover serviços de segurança, saúde e educação pública e não descuidar de políticas de amparo social. Sou, por princípio, desfavorável à excessiva intervenção do Estado no domínio econômico, mas confesso que sou bastante pragmático nesse tema. Um bom ditado vem do ex-premiê chinês Deng Xiao Ping, “não importa a cor do gato desde que ele pegue o rato”.

Mas, nesta coluna, diante do contexto, sou obrigado a falar um pouco sobre a Operação Lava Jato, já que não são poucos os que contra ela vociferam.

Leio pontualmente algumas críticas que sugerem que um grupo de jacobinos foi formado para cortar as cabeças da elite econômica e política do país em um obscuro projeto de poder.

Outras que o combate à corrupção teria prejudicado a economia do Brasil. Um ex-Ministro da Justiça chegou a mencionar que alguma corrupção poderia funcionar como uma espécie de “óleo” para movimentar as engrenagens.

O argumento favorito de vários, principalmente de denunciados e condenados, é o de que a Lava Jato promoveu a “criminalização da política”, ao tratar todos os políticos como desonestos.

O espaço é curto para refutar todas as críticas possíveis, mas vou destacar alguns pontos. O combate à corrupção visa acima de tudo a fortalecer o império da lei, elemento essencial do Estado de Direito e da democracia. Ninguém está acima da lei e se alguém cometer um crime deve, com o devido processo, ser punido.

Policiais que investigam crimes, procuradores que formulam acusações e juízes que julgam apenas cumprem seu dever legal. Não há jacobinismo, assim como não há lavajatismo. Não há um clube ideológico ou alguma organização sinistra. Tudo na Operação Lava Jato foi feito com absoluta transparência e sob severo escrutínio da imprensa e da sociedade.

O combate à corrupção não prejudica a economia, ao contrário, atrai a confiança e o respeito dos investidores. Corrupção é areia, e não óleo, nas engrenagens da economia. Se a burocracia, por vezes, é excessiva, o remédio é diminuí-la e não contorná-la por meio de subornos.

A corrupção disseminada, não raramente, está associada ao superfaturamento de obras, à construção de “catedrais no deserto” e a práticas de concorrência desleal. Não tenho dúvidas de que esses fatores impactam a produtividade da economia brasileira e nos condenam a ser um país de renda média.

A aludida “criminalização da política” é a acusação mais fraca. Foram formuladas acusações determinadas pelo Ministério Público contra agentes públicos e políticos específicos. Se os números são elevados, a explicação é que vários se envolveram em práticas ilícitas.

As acusações, claro, podem ser refutadas e se mostrarem improcedentes. Mas os fatos descritos nas peças das denúncias correspondem basicamente ao pagamento e recebimento de subornos, e não têm por objeto atos essencialmente políticos.

Todas essas acusações foram feitas em processos públicos, assim como os julgamentos foram públicos, porque a Constituição assim exige, o que é salutar. A imprensa realizou ampla abordagem dos fatos, sim, porque estavam disponíveis. Não houve diferença em relação ao acompanhamento diário do julgamento do Caso Mensalão (Ação Penal 470), pelo Supremo Tribunal Federal.

Ouve-se muito por aí que “ninguém é contra a Lava Jato”, “só contra os excessos”, embora, na maioria das vezes, não fique claro o que poderia, de fato, ser considerado excesso ou indesejado. Seria o número alto de condenações criminais e prisões de criminosos?

Em uma Operação que se iniciou em 2014 e ainda não esgotou todas as suas descobertas, é natural que equívocos pontuais possam ter acontecido, mas não deixa de ser paradoxal como a Lava Jato tem tantos defensores que, ao mesmo tempo, são seus detratores. Mas, a despeito dos falsos defensores, a Operação sempre contou com apoiadores sinceros.

É importante lembrar que a Lava Jato não é uma entidade independente; não é uma instituição de Estado. Ela foi produto de uma combinação de iniciativas legislativas prévias (como a aprovação da lei do crime organizado em 2013) e da ação de vários agentes da lei e da Justiça, nas várias instâncias judiciais – do primeiro grau ao Supremo Tribunal Federal.

Aliás, o Supremo Tribunal Federal teve papel crucial na Operação ao estabelecer a execução da condenação criminal em segunda instância (infelizmente depois reviu seu posicionamento), reduzir o alcance do foro privilegiado, proibir doações eleitorais vindas de empresas e, mesmo nos casos concretos, homologar, por exemplo, a delação dos executivos da Odebrecht. Atirar contra a Lava Jato atinge o trabalho do próprio Supremo Tribunal Federal.

Escrevo essas linhas, principalmente, porque leio que o Conselho Nacional do Ministério Público – CNMP – irá se reunir em breve para decidir se pune disciplinarmente ou não o Procurador da República Deltan Dallagnol. Ao mesmo tempo, vejo na página do Ministério Público Federal alguns resultados do trabalho que, em parte, é resultado da Força Tarefa do MPF da Lava Jato em Curitiba. Foram 119 denúncias apresentadas, 165 condenados em primeira e segunda instância por corrupção ou lavagem de dinheiro, 70 fases de operações, R$ 4 bilhões já devolvidos aos cofres públicos e R$14,3 bilhões previstos como total de recuperação.

Como ninguém está acima da lei, infrações disciplinares devem ser sancionadas, mas me permito dizer, agora como cidadão comum, que tenho lá minhas dúvidas sobre essas infrações, embora algumas condutas talvez pudessem ter sido evitadas. Não importa aqui se você gosta ou não do Procurador, mas se ele está ou não sendo tratado com justiça. Enfim, fica a minha indagação: vão mesmo punir Deltan Dallagnol pelo seu trabalho na Lava Jato?

O mesmo questionamento vale para a Operação: vamos ou não valorizá-la como um avanço no combate à corrupção no Brasil feito por diversas mãos e instâncias, inclusive pelo Supremo Tribunal Federal?

Espero que as tentativas dos condenados, e de seus advogados, de desqualificarem os trabalhos da Polícia Federal, do Ministério Público e da Justiça não prosperem. E que o combate à corrupção, que veio crescendo com os julgamentos do mensalão e da Lava Jato, encontre espaço para prosperar. A democracia e a economia agradecem.

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