FelipeMoura Brasil

A reforma moral

14.08.20

“Numa nação conturbada pelas facções sempre há, sem dúvida, uns poucos, comumente muito poucos, que conservam seu discernimento livre do contágio geral.”

A frase é do pai do liberalismo econômico, Adam Smith (1723-1790), em Teoria dos sentimentos morais, livro publicado em 1759.

Para o filósofo e economista britânico, nascido na Escócia, os conservadores do discernimento “raramente somam mais do que um solitário aqui e ali, sem nenhuma influência, pois sua sinceridade os exclui da confiança dos dois partidos”.

“Ademais, a despeito de serem dos homens sábios, ou precisamente por essa razão, não têm nenhuma relevância para a sociedade. Todas essas pessoas são desprezadas e ridicularizadas, frequentemente detestadas, pelos furiosos zelotes dos dois partidos. Um verdadeiro partidário odeia e despreza a sinceridade e, na verdade, não há vício que o pudesse desqualificar mais para a profissão de partidário que essa única virtude. Portanto, em nenhuma ocasião, o real e reverenciado espectador imparcial está mais distante que em meio à violência e fúria dos partidos em luta”, escreveu Smith.

“Talvez se possa afirmar que, para esses, tal espectador dificilmente exista em algum lugar do universo. Até ao grande Juiz do universo imputam seus próprios preconceitos, e não raro consideram esse Ser divino como alguém animado por todas as suas próprias paixões vingativas e implacáveis. Dentre todos os corruptores dos sentimentos morais, por conseguinte, a dissensão e o fanatismo são sempre os maiores”, concluiu o autor.

Já o filósofo e teólogo francês Antonin Sertillanges (1863-1948), um dos maiores expoentes no resgate da filosofia e da teologia do frade católico italiano Santo Tomás de Aquino (1225-1274), ensinou em seu livro A vida intelectual, publicado em 1920, o modo pelo qual as pessoas que persistem em cumprir a missão do talento devem se comportar diante das “inúmeras” provações, especialmente a dos ataques alheios:

“Se em algum grau vierem a ser alguém, fiquem no aguardo de provações seletas e preparem-se para experimentá-las em seus vários sabores:

– a provação do ideal, que lhes parece estar cada vez mais distante à medida que apertam o passo;

– a provação dos estúpidos que não entendem nada das palavras que vocês lhes dizem e ficam escandalizados com elas;

– a provação dos invejosos que os julgam impertinentes por terem atravessado a linha de combate deles;

– a provação dos bons que se deixam abalar, passam a suspeitar de vocês e os largam;

– a provação dos medíocres que são a grande massa e que vocês incomodam com a sua tácita afirmação de um mundo superior. (…)

Diz-se também de Santo Tomás que quando ele era atacado, o que acontecia com muito maior frequência que seu triunfo posterior deixa supor, se esforçava por fortalecer sua posição, por precisar e esclarecer sua doutrina: após isso se calava. O boi mudo da Sicília [alcunha que o italiano recebeu por não falar muito] não ia deixar que as gesticulações e gritarias de uma cruzada de crianças o desviassem do seu caminho.”

Segundo Sertillanges, os que puseram em prática esse método de Santo Tomás “sempre subiram alto; da força que se investia para derrubá-los eles fizeram uma impulsão vitoriosa; com as pedras que jogavam neles, eles construíram a sua morada”.

“A inveja é o imposto de renda da glória, da distinção ou do trabalho”, escreveu o neotomista. “Quando não há nada de aproveitável a retirar de um ataque”, recomendou em seguida, “resta ainda aproveitar para retirar-se a si próprio, para sair primeiramente ileso, isento de enfraquecimentos e de rancores, depois engrandecido, aprimorado pela provação. A força espiritual genuína exalta-se na perseguição.”

Para Sertillanges, “a vida intelectual é um heroísmo: então gostariam que o heroísmo nada custasse? As coisas só valem na exata proporção do que elas custam. O sucesso fica para depois; o louvor fica para depois, e talvez não o dos homens, mas o de Deus e de sua corte, que farão da consciência de vocês seu profeta. Os trabalhadores, seus irmãos, também os reconhecerão, apesar de sua defecção aparente.”

Assim como Adam Smith escreveu que os poetas também “tendem a se dividir em certas facções literárias” e que “muitas vezes cada seita é abertamente, e quase sempre secretamente, inimiga mortal da reputação de todas as outras, e emprega todas as malignas artes da intriga e do apelo para previamente conquistar a opinião pública em favor das obras de seus próprios membros, contra as de seus inimigos e rivais”, Sertillanges registrou as puxadas de tapete cometidas em seu próprio meio.

“Entre intelectuais cometem-se muitas pequenas vilezas e às vezes grandes iniquidades; no entanto, uma classificação implícita nem por isso deixa de consagrar os valores autênticos, ainda que a publicidade os relegue ao esquecimento”, escreveu o francês. Nenhuma indiferença contemporânea lhe é motivo para o abandono do trabalho. “Se for preciso protelar também sua utilidade — quem sabe?, talvez até à época em que vocês já não estejam aqui —, consintam; as honrarias póstumas são as mais desinteressadas, e a utilidade póstuma preenche satisfatoriamente os verdadeiros desígnios de sua obra. Afinal, o que querem vocês? Fama? Lucro? Neste caso, não passam de falsos intelectuais. A verdade? Ela é eterna. Não é necessário utilizar a eternidade.”

Recentemente, o Brasil se tornou uma nação conturbada pelo embate entre facções petistas e bolsonaristas, entre a ala revolucionária da esquerda e a ala reacionária da direita; um país onde os poucos que conservam seu discernimento livre do contágio geral são atacados por partidários furiosos dos dois lados, que odeiam sua sinceridade. Esses poucos precisam passar com força espiritual genuína por todas as provações e vilezas, esclarecendo suas visões sobre uma realidade que muitos não querem enxergar e que, agora, une essas e outras facções contra o combate à corrupção de seus membros.

Poucos também são os políticos dispostos a reduzir o inchaço do estado e, por conseguinte, as brechas para a roubalheira. A saída de Salim Mattar do governo de Jair Bolsonaro, onde ocupava o cargo de secretário de Desestatização, foi, nas palavras de Paulo Guedes, “um sinal de insatisfação com o ritmo de privatizações”. “O que ele me disse é que é muito difícil privatizar, que o establishment não deixa”, disse o ministro da Economia. “Essas estatais acabam servindo para ‘toma lá dá cá’ e corrupção”, explicou o próprio Salim. “Existe uma resistência do establishment em vender as empresas.”

Faltou deixar claro que (1) Jair Bolsonaro é não só parte, mas um expoente desse establishment resistente a cortes de privilégios, como também ilustra a saída de Paulo Uebel do cargo de secretário de Desburocratização, insatisfeito com a falta de envio da reforma administrativa; e (2) que, ao seu histórico de posições estatizantes, expostas ainda em setembro de 2017 no meu artigo “Doria e Bolsonaro: ‘liberais’ até que ponto?”, o presidente pratica o ‘toma lá dá cá’, nomeando na máquina pública indicados por investigados, réus e condenados do Centrão, ao qual se uniu de vez para evitar seu próprio impeachment em razão dos problemas seus e de sua família com a Justiça, decorrentes sobretudo do histórico de farra com dinheiro público em gabinetes.

“Os liberais puro-sangue” no governo Bolsonaro, segundo Salim, “cabem em um micro-ônibus”. Ele notou “muitas pessoas que se passam por liberais para poderem se aproximar, ficar perto do governo” (e até virar presidente, não é mesmo?), mas que “não são liberais”, “o discurso é diferente da prática”. Embora continue governista, Salim vai se dedicar agora aos 120 institutos liberais “que apoio, fundei e ajudo”. “Eu financio os institutos com 2 milhões de reais por ano. Vou me dedicar à propagação das ideias liberais na sociedade brasileira. Essa contribuição é maior do que estar no governo.”

Se é, porém, para financiar passadores de pano da sujeira bolsonarista, travestidos de liberais puro-sangue, essa contribuição é igualmente, ou mais, contraproducente à causa. O problema de boa parte dos defensores do liberalismo econômico no Brasil é, sem perdão pelo trocadilho, que eles querem “a riqueza das nações” (título de outro livro de Adam Smith, publicado em 1776), sem incorporar a “teoria dos sentimentos morais”; como se um capitalismo sadio pudesse ser alcançado sem uma base ética.

Olavo de Carvalho – o autor cuja obra a esquerda revolucionária e midiática não leu, mas despreza; e cuja militância na facção bolsonarista a direita reacionária confunde com a qualidade de boa parte de seus livros – escreveu em artigo de 2001:

“O que distinguiu o capitalismo moderno, surgido nos Países Baixos na época da Reforma, foi um conjunto de condições culturais, morais e políticas que, na ausência de forças políticas reguladoras da vida social, permitiram que o próprio mercado assumisse o papel de regulador. Mas não de regulador autocrático. Os principais fatores daquele conjunto eram a homogeneidade dos valores morais vigentes (cristãos e judaicos) e a inexistência de um poder central coercitivo: o acordo interior, na ausência de coerção externa. Tais foram as bases éticas que, como bem viu Adam Smith, fundamentavam a economia de mercado sem que esta, por si, pudesse criá-las. Foi a presença dessas condições que favoreceu o desenvolvimento do capitalismo nos países protestantes e o inibiu nos países católicos, de forte autoridade central.”

Contudo, continuou Olavo, “não só a fórmula econômica surgida espontaneamente daquela combinação de fatores culturais subsistiu longamente após a dissolução dela, mas também seu sucesso fez com que fosse exportada para regiões onde combinação similar nunca existiu. Pois bem, onde o capitalismo se instalou sem essa base ética, ele teve de improvisar uma – e, aí, a pura ‘ideologia’ capitalista, racionalização esquemática, fez às vezes do fundamento ético faltante. Isto não podia dar certo.”

“Daí o sentido de coisa imposta, revolucionária e autoritária”, concluiu, “que a modernização capitalista adquiriu em tantos países, inclusive o Brasil, onde essa contradição se radicalizou ao máximo no regime militar, tão liberal nos seus pretextos ideológicos quanto estatista, centralizador e prepotente nas suas ações.”

Hoje, Jair Bolsonaro, tão liberal nos seus pretextos ideológicos quanto estatista, centralizador e prepotente nas suas ações, coleciona apoiadores como os racionalistas esquemáticos ainda crentes nas promessas de Paulo Guedes; os reacionários fanáticos dispostos a fechar o STF e o Congresso Nacional em nome do combate ao comunismo; os falsos e ex-intelectuais oportunistas em busca de lucro, fama e poder; os inocentes úteis inflamados por eles; políticos e empresários dispostos a levar vantagens estatais; além de beneficiários de auxílio emergencial e Bolsa Família que o presidente quer unir no programa Renda Brasil para se apossar do crédito pelo assistencialismo e se reeleger.

Com efeito, não existe desestatização significativa se as pessoas responsáveis pelo seu processo são protegidas não só pela transigência umas das outras, mas também da sociedade, com imoralidades e/ou ilicitudes que elas cometeram, querem manter e/ou de cujas investigações tentam se blindar juntas, ainda que preservem rivalidades eleitorais.

Não existe liberalismo econômico sem moralidade pública e qualidade humana.

Sem o zelo pela reforma moral, da qual forças-tarefas como a Lava Jato são ferramentas necessárias, prevalece o embate real ou forjado de facções, enquanto a obra dos autores de discernimento livre segue atravessando a história em busca de utilidade póstuma.

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