Maria Laura Antonelli/AGFDavigo: os ganhos obtidos com a Mãos Limpas se perderam ao longo do tempo

Contra a corrupção, basta seguir a lei

O magistrado italiano Piercamillo Davigo, um dos principais investigadores da Operação Mãos Limpas, explica como os políticos conseguiram virar o jogo, enfraquecer as leis e tornar muito mais difíceis as punições em casos de corrupção. A experiência serve de alerta para a Lava Jato, alvo de movimentos similares quase cinco anos desde a deflagração de sua primeira etapa
20.07.18

Os políticos investigados contra-atacaram e, bingo, conseguiram destruir a maior operação de combate à corrupção da história do país. O que poderia soar como um obituário da Operação Lava Jato, no Brasil, é na verdade o resumo do que experimentou a Itália com a célebre Operação Mãos Limpas. O caso italiano, cujo desfecho costuma ser repetido em prosa e verso como um sinal de alerta para seu congênere brasileiro, deixou marcas profundas no sistema penal italiano. Mais de 20 anos depois da megaoperação que expôs as vísceras das conexões entre a política e a máfia, Piercamillo Davigo, um dos principais investigadores da Mãos Limpas, diz nesta entrevista a Crusoé que a herança que restou é das piores possíveis: a corrupção voltou ainda mais forte, as leis se enfraqueceram e, hoje, é muito mais difícil apanhar os corruptos. Atualmente as delações premiadas, por exemplo, não valem na Itália para casos que envolvam desvio de dinheiro público. Alçado ao cargo de magistrado da Corte de Cassação, como é chamado o supremo tribunal italiano, Davigo lamenta que a operação não tenha conseguido punir a contento os políticos pegos em plena ação criminosa. E traça um cenário muito parecido com aquele que a Lava Jato, do lado de cá do Atlântico, experimenta quase cinco anos depois de sua deflagração. Lá, como cá, os investigadores foram acusados de agir politicamente e de serem golpistas a serviço dos Estados Unidos. Também foram ameaçados. Aos 67 anos, Davigo se mostra otimista, apesar dos percalços que vieram. Ele diz que, sim, é possível vencer a corrupção e que, para isso, basta seguir as regras. E aponta, como atalho, um direito básico existente nas democracias: “Se os cidadãos punirem com o voto os corruptos e seus aliados, é mais fácil”. A seguir, os principais trechos da entrevista.

A certa altura da Operação Mãos Limpas, os políticos italianos reagiram para evitar o avanço das investigações. Como lidar com esse tipo de reação?
Na Itália, foram usadas contra os juízes e investigadores algumas técnicas de neutralização, como dizer que a corrupção é um dos custos da democracia, tentando justificar o objetivo de financiar ilicitamente partidos. Diziam também que os magistrados perseguiam finalidades políticas, que houve abuso das prisões e assim por diante. Eram declarações falsas, mas que, por serem repetidas, criavam dúvidas nos cidadãos. Quando os acusados detêm os meios de comunicação, não há muito o que fazer.

Os senhores chegaram a ser chamados pelos investigados de “Togas Vermelhas”, por supostamente mirarem políticos de direita. O que faziam diante das tentativas dos réus de politizar a operação?
Em geral, denunciávamos as tentativas de difamação. Fui acusado de ser de direita, de esquerda, de estar a serviço dos Estados Unidos, de ser golpista, além de várias outras acusações que se contradiziam. Como parte dessa ofensiva contra a operação, o parlamento aprovou leis que mudaram a tipificação dos crimes dos quais muitos políticos eram acusados. Também houve iniciativas no sentido de modificar as regras para obtenção e validação das provas, além da introdução da imunidade, que depois foi revogada pelo tribunal constitucional.

Em linhas gerais, olhando para trás, que balanço o senhor faz da Operação Mãos Limpas?
A operação revelou as dimensões da corrupção. Mas em seguida vieram leis que impediram que houvesse a repressão adequada.

Ainda assim, é possível dizer que a operação deixou um bom legado ou os avanços já foram todos perdidos?
Os processos da Mãos Limpas tiveram vários resultados, mas poucos condenados cumpriram pena na prisão por causa da legislação italiana. O legado principal foi conscientizar os cidadãos da dimensão e do nível da corrupção no país.

Houve uma situação em que a força-tarefa italiana ameaçou interromper os trabalhos devido aos embaraços criados pelos políticos.
Sim, isso ocorreu após um decreto-lei que impedia o prosseguimento das investigações. Nós pedimos para sermos designados para outras tarefas. Isso provocou uma forte reação da opinião pública.

ReproduçãoReproduçãoDavigo (à direita), com outros investigadores da Mãos Limpas nos anos 1990: pressão foi semelhante à que, hoje, os investigadores brasileiros sofrem
Por que algumas autoridades tendem a tratar o dinheiro público como se delas fosse, com tanta desfaçatez?
Nos anos 1990, quando alguém era descoberto, era deixado de lado. Nos anos 2000, um secretário de um partido na Itália que foi acusado de desviar o reembolso das despesas eleitorais disse: “É nosso dinheiro, fazemos o que queremos”. Isso foi se tornando cada vez mais comum. Virou hábito e passou a ser tratado como algo normal.

Há um episódio famoso da Mãos Limpas em que um dos investigados, diante da chegada da polícia a seu endereço, começou a confessar seus crimes ainda no interfone. Como foi?
Um suspeito contou que imaginou, por vários dias, que seria preso. Por isso, ele dormia no banheiro para se acostumar com quartos estreitos. Ele estava com os nervos à flor da pele. E quando a polícia de fato chegou até o seu endereço, ele já começou a confessar. Foi curioso, até porque na Itália as confissões feitas à polícia sem a defesa nem sequer podem ser usadas.

Depois da Operação Mãos Limpas, a corrupção na Itália ficou mais pulverizada e difícil de se rastrear?
Sim, principalmente porque as leis em vigor não são eficazes contra esse fenômeno. Hoje a legislação italiana prevê vários tipos de crime relacionados à corrupção, e isso complica os processos.

Diante de tudo o que se viu, as novas gerações de juízes e procuradores italianos passaram a olhar com mais atenção para os casos de corrupção?
No início, sim. Mas, depois, as normas em vigor não permitiram resultados satisfatórios.

Por que, após a descoberta dos grandes esquemas de corrupção, os custos das obras públicas voltaram a subir na Itália?
No início das investigações, os custos entraram em colapso. Hoje, são novamente os mais altos da Europa. Isso se deve à corrupção generalizada, aos cartéis de empresas que compartilham contratos públicos e à ausência de órgãos técnicos da administração pública capazes de controlar a qualidade do trabalho.

Rovena Rosa/Agência BrasilRovena Rosa/Agência BrasilO magistrado italiano com o juiz Sergio Moro durante evento em São Paulo, em 2016: para ele, é preciso resistir às pressões
Como os senhores respondiam ao argumento, também usado aqui no Brasil pelos críticos da Operação Lava Jato, de que as investigações atrapalhavam a economia?
Na verdade, a corrupção e os cartéis de empresas que compartilhavam os contratos é que são a causa dos problemas na economia.

Nos dias atuais, seria possível uma nova Operação Mãos Limpas na Itália?
O êxito dos processos depende de muitos fatores. Se fossem introduzidas operações encobertas, com redução de penas para aqueles que decidem colaborar, seria possível, sim, uma ampla luta contra a corrupção. Para esse tipo de investigação dar certo, é preciso garantir um forte direito de recompensa, com redução de pena para os colaboradores.

Por que é tão difícil ter sucesso em investigações que envolvem presidentes, ministros e parlamentares influentes?
Além das regras constitucionais, isso depende do interesse dos cidadãos em viver em um sistema honesto e eficiente. Se os cidadãos punirem com o voto os corruptos e seus aliados, é mais fácil.

As ameaças atrapalharam o trabalho?
Na Itália, 27 magistrados foram mortos por terroristas e mafiosos, mas não por corruptos. Máfia e corrupção são fenômenos diferentes, embora estejam relacionados.

Tantos anos depois, o senhor consegue levar uma vida normal?
Sim. Me tornei presidente da Câmara de Cassação e agora fui eleito para o Conselho Superior da Magistratura, um órgão de autogoverno presidido pelo presidente da República (na Itália, o presidente não é chefe de governo, mas de Estado). Isso demonstra que as garantias de independência da magistratura previstas na Constituição funcionaram.

Afinal, existe solução para a corrupção?
Claro, basta aplicar as regras.

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  1. Não entrarei no mérito de que foi constitucional ou não, mas a ação de Moro em tornarem públicas as conversas entre a impedida de governar e o recluso, se não fossem os meios eletrônicos, não surtiria efeito algum. Senhores, os depoimentos e delações estão disponível, para qualquer cidadão ver, no YouTube e em outras plataformas virtuais. Não há justificativa, nos dias de hoje, de ser alheio ou alienado quanto as manobras desses inconsequentes, que dizem ser representantes do povo. REPUGNANTE!

  2. A diferença é que hoje há internet assim não ficamos dependentes apenas dos meios de comunicação controlados pelos políticos tais como a globo. Porém ainda a ameaça é censura são grandes

    1. Concordo em gênero, número e grau. O poder está em nossas mãos.

  3. Pelo nível da Crusoé esperava perguntas melhores. Até porque a natureza das operações mãos limpas e lava jato se diferenciam (mafia e corruptos). Quem leu a entrevista com o Juiz Sergio Moro consegue ter mais subsidio sobre tudo isso. Faltou explorar mais as regras que ele menciona, se são as dele que na época não tinha na Italia ou se as nossa irão servir para nos livramos aos poucos da corrupção.

    1. vc ta fazendo confusão, a operação mãos limpas da italia n tratavs de mafia !!! mas sim de corrupção e compra de votos , exatamente igual a lava jato, pesquise e vc vai ver

  4. Por esta entrevista, achou que nossos corruptos se livraram em breve e tudo ficara como eles gostam, sem presídios e disfrutando de uma boa vida, enquanto nos, continuaremos ralando para que eles disfrutem.

  5. Acho que temos algumas vantagens em relação à Itália. Agora temos as internet e seus múltiplos canais de informação, redes sociais etc que, se não são perfeitas, ao menos não são controladas por poucos. O que temos é de usar esses mecanismos e pressionar, deixar clara a indignação e também votar de forma a não reeleger corruptos conhecidos. Em suma, o brasileiro tem de participar mais da política sob pena de entregar o país aos chacais. Sugiro a todos que façamos isso nestas eleições de 2018!!

  6. Tínhamos q lutar e apoiar governantes q tenham propostas de deixar as leis mais duras contra a corrupção. Qualquer comentário contra a Lava jato tinha q ser critério de eliminação

  7. À semelhança dos métodos de dissuasão dos corruptos ,não é mera coincidência, são todos iguais em todos os países!! É a mesma tentativa de distorcer a realidade .

  8. Mudancas se fazem necessarias no Brasil atual. Quem reclama do que esta apodrecendo o Brasil, aceitar o que esta, ou mudar? Quem tera a coragem de mudar, se eleito? Em quem devemos votar? Pelas coligacoes vistas na pre-campanha somente um candidato se alinha a um novo Brasil. Em quem voce ira votar?

  9. Sim, as leis. Segui-las. Certamente as mesmas que, não só permitiram, como até possibilitaram e estimularam os crimes... Casuismo ou ingenuidade?

    1. Pelas leis, pode um ministro do STF julgar tendo recebido grana de uma das partes envolvida? Não pode, mas julga. As leis, a constituição? É só para os outros.

  10. Ótima entrevista. Como não aplica a lei, inventa outra (para também não aplicar). Dá um nó, coloca todo mundo na mão de advogados, promotores e juízes. O cidadão e empresário de bem se afasta, os 171s dominam o pedaço distribuindo mochilas e malas a rodo. O Brasil tem que se libertar da mentalidade de 1988. Paulo Guedes está certo. Ou se liberta ou seremos uma grande Venezuela.

  11. Seguir que lei Sr. Piercamillo? Aqui na republiqueta das bananas pra toda lei depois de promulgada, temos de esperar pra ver se ela "pegou". Aí vamos descobrir pra que ela pregou. É que por esta$ banda$ algun$ $ão mai$ iguai$, entendeu?!?!??

  12. Hoje, a informação está mais disponível pela internet, ponto para nós. Mas lá, o STF não morreu, não foi presidido por um Toffoli, deixando livre o caminho para as "novas" leis de impunidade que virão.

  13. deja vu que não se aplique no Brasil, se deixarmos como está, as politicas eleitorais vão dificultar a cada eleição, a renovação com novos candidatos.

    1. Exatamente!A gde maioria da população só voto pq é obrigatório....

  14. Muito boa a entrevista, embora não auspiciosa. Espero que os italianos ajudem o seu Poder Judiciário no combate à corrupção.

  15. Acreditar ou não na justiça brasileira? Acreditar ou não na consciência e honestidade do brasileiro na hora de escolher seu candidato? Acreditar ou não nas urnas brasileiras? Única esperança que retenho é a certeza que a internet fez a diferença nos últimos 5 anos na vida política brasileira e talvez ela seja o diferencial entre as operação Mão Limpas e a Lava Jato, talvez ela nos salve do mesmo fim, pois se dependermos do povo nas ruas, estamos fadados ao fracasso.

    1. Concordo! A internet está fazendo a diferença. Por isso devemos estar atentos às recentes iniciativas de controlar a informação, disfarçadas de controle das "fake news".

  16. esta entrevista confirma o que sempre falei, a corrupção não e’ un cancer das elites e dos politicos, e’ do povo, de todos os cidadaos, se tds seguissem as regras não haveria corrupção na politica e na administração do pais, e’ tão simlles e logico que desafio qq um a argumentar o contrario ....

  17. Nada animador as conseqüencias da Operação Mãos Limpas, imaginar que o brasileiro é pouco politizado e ainda vota em corrupto, nos resta infernizar a vida do politicos corruptos. Isso fazemos bem, TORNÁ-LOS PRISIONEIROS DELES MESMOS.

  18. A corrupção só começou a ser combatida no Brasil a partir da Lei que possibilitou as delações premiadas. Hoje temos as redes sociais e aplicativos de conversas que nos permitem ter conhecimento do que realmente está ocorrendo... Vamos continuar confiantes, e pressionar os políticos cada vez mais.. Qualquer tentativa de tentarem enfraquecer a Lava-Jato, temos que partir pra cima deles.. FORÇA

  19. Pelas palavras do entrevistado, podemos reconhecer os trechos de discursos do STF , especialmente de Gilmar Mendes. Causa ânsia de vômito ver que um ministro da mais alta corte do pais está ao lado do corrupção e não da justiça. Onde se conclui que Gilmar Mendes......

  20. Vejo, se não houver uma mudança significativa nas eleições de outubro próximo, vamos caminhar para mesma situação da Itália. O povo brasileiro tem que se acordar. Acordem!!!

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