Dênio Simões/Agência Brasília

Os fiscais sem fiscal

Os tribunais de contas, que deveriam zelar pela probidade, se tornaram verdadeiros escoadouros de verbas públicas. E o pior: não há quem os fiscalize a contento
07.08.20

O controle das contas, o monitoramento da execução orçamentária e a fiscalização das despesas realizadas com dinheiro dos cidadãos são atribuições indispensáveis aos órgãos encarregados de zelar pelo correto funcionamento da máquina pública. Mas boa parte dos responsáveis por esse ofício de inquestionável teor técnico não tem nenhum preparo para a função. Para além do já conhecido aparelhamento político, os tribunais de contas do país, que têm a missão constitucional de analisar com lupa o destino dos recursos públicos, viraram escoadouros de dinheiro do contribuinte. Com o pagamento sistemático de benesses de legalidade questionável a seus integrantes, o teto do funcionalismo, por exemplo, virou letra morta nessas cortes.

A partir de uma canetada, conselheiros e procuradores de contas chegam a dobrar os próprios salários e muitas dessas vantagens são cuidadosamente dissimuladas nos portais de transparência. Sem um órgão administrativo de controle para acompanhar as ações dos tribunais de contas e diante das descabidas concessões de vantagens, coube a entidades da sociedade civil o papel de fiscalizar os fiscais. Em um levantamento inédito realizado por três associações de controle social e compartilhado com Crusoé, é possível ter uma amostra dos absurdos e regalias que imperam nessas cortes.

O trabalho esmiuçou os contracheques de conselheiros e revelou uma infinidade de penduricalhos indecorosos nos vencimentos dessas autoridades, muitos dos quais questionados na Justiça por entidades da sociedade civil ou pelo Ministério Público. Auxílios polpudos para comprar livros, autorização para procedimentos estéticos, diária para quem não viaja e gratificação eterna para os ex-presidentes estão entre as vantagens identificadas. Com a lentidão da Justiça, as ações contra as regalias podem arrastar-se por anos até serem julgadas. Enquanto isso, a casta dos conselheiros, boa parte denunciada ou condenada por crimes, segue enchendo os bolsos com o dinheiro público que deveria fiscalizar.

O relatório foi desenvolvido pela Associação Contas Abertas, pelo Instituto de Fiscalização e Controle e pelo Instituto Observatório Político e Socioambiental. Na primeira etapa do levantamento, as entidades se debruçaram sobre a remuneração dos conselheiros dos tribunais de contas da região Centro-Oeste. Ainda serão fechados cinco novos relatórios das outras quatro regiões e um último do Tribunal de Contas da União.

Apesar de priorizar a questão remuneratória, o estudo também lança luz sobre os escândalos envolvendo os integrantes das cortes de contas. O mais recente certamente terá destaque no relatório da região Norte: na última segunda-feira, 3, o Superior Tribunal de Justiça condenou dois conselheiros do Tribunal de Contas do Amapá por desvios que alcançam a impressionante cifra de 100 milhões de reais. Amiraldo da Silva Favacho foi condenado a 6 anos e 11 meses de prisão em regime fechado. Júlio Miranda, ex-presidente da corte, recebeu pena de 14 anos e 9 meses. Eles são acusados de desviar dinheiro das contas do TCE por reembolsos indevidos de despesas médicas e passagens aéreas a pessoas de fora dos quadros do tribunal e pelo recebimento de verbas remuneratórias sem respaldo legal. Ambos foram deputados estaduais e ganharam o cargo na corte graças a negociações políticas.

Os tribunais de contas estaduais têm integrantes indicados pelas Assembleias Legislativas e pelos governadores. Em geral, se exige dos candidatos “idoneidade moral e reputação ilibada” e experiência em cargos que exijam conhecimentos jurídicos, contábeis ou de administração pública. Algumas cadeiras são reservadas para funcionários de carreira das cortes, outras para representantes do Ministério Público e outras ainda são de livre escolha. Os requisitos suficientemente amplos servem para abarcar qualquer apadrinhado das autoridades de plantão. Assim, parentes de políticos, sindicalistas e antigos secretários estaduais, vereadores e deputados estaduais são figuras comuns nos tribunais de contas.

Jeso CarneiroJeso CarneiroCastelo Branco, do Contas Abertas: estudo revela privilégios imorais
A falta de critério técnico na seleção dos conselheiros ajuda a explicar por que, empossados no cargo, muitos passam a focar na criação ou até mesmo aprimoramento de benefícios para eles próprios. Segundo o levantamento das três organizações, os tribunais de contas custam anualmente 10 bilhões de reais.

O retorno para a sociedade não é proporcional às despesas geradas, já que, em casos de desvios, o percentual recuperado é muito baixo. “Poucos são os exemplos de políticos alcançados pelo poder sancionador desses tribunais de contas e a recuperação do patrimônio público é baixa, já que as decisões condenatórias precisam, após proferidas, ser executadas. Como os tribunais de contas demoram muito para julgar, não conseguem recuperar o patrimônio público desviado, fazendo aumentar o descrédito da população e agigantando a certeza da impunidade”, diz um trecho do relatório.

Na análise das vantagens pagas a conselheiros e procuradores de contas da região Centro-Oeste, o estudo identifica um extenso e criativo rol de privilégios: auxílio-creche, auxílio-alimentação, auxílio-saúde, reembolso de planos de saúde, cotas de combustível, gastos com telefones, verbas para computadores, despesas com segurança pessoal, pagamentos de cursos, 60 dias de férias e venda de parte delas e brechas para ressarcimento de procedimentos estéticos, além de licenças-prêmio.

“Nas remunerações dos tribunais de contas, o teto salarial tornou-se um piso. É inacreditável como o texto da Constituição foi distorcido, com interpretações generosas e injustificáveis, que podem até ter algum amparo legal, mas são, em sua maioria, imorais”, afirma Gil Castello Branco, fundador e secretário-geral da Associação Contas Abertas. No Tribunal de Contas do Distrito Federal, os conselheiros chegam a incorporar ao salário uma gratificação pelo exercício da presidência. Se um integrante assume o comando da corte por apenas alguns dias, ele receberá para sempre um extra de 8,8 mil reais mensais.

No Tribunal de Contas de Mato Grosso existe um benefício chamado “auxílio de obras técnicas”. A corte paga semestralmente o equivalente a um salário aos conselheiros para a compra de livros especializados. Não é necessário comprovar a aquisição das publicações para receber o benefício, que anualmente soma mais de 70 mil reais. O tribunal diz que o auxílio tem a “finalidade de aperfeiçoar os serviços e produtos entregues pelos membros do Tribunal de Contas de Mato Grosso à sociedade”. Segundo o levantamento, apenas um dos sete integrantes da corte abriu mão do benefício.

Até maio, os conselheiros mato-grossenses dispunham ainda de uma outra regalia ainda mais escandalosa, que acabou suspensa pelo Supremo Tribunal Federal, graças à insistência de um grupo da sociedade civil. A briga começou em 2018, após uma reportagem publicada pela imprensa local revelar que os conselheiros recebiam um extra de 23 mil reais mensais. A bolada era paga a título de indenização por viagens dentro do estado. Detalhe: nenhum conselheiro se desloca por Mato Grosso. E, obviamente, a corte não exigia a comprovação das despesas.

Marcelo D. Sants/FramePhoto/FolhapressMarcelo D. Sants/FramePhoto/FolhapressO TCU, com seus vários ministros denunciados, também sofrerá um raio-x
Em novembro de 2019, uma liminar suspendeu o pagamento. Mas, em março deste ano, o tribunal articulou com a Assembleia Legislativa a criação de uma nova verba indenizatória no valor de 35 mil reais. O Executivo aproveitou e estendeu o benefício para secretários estaduais. A proposta, apelidada de PL dos Marajás, foi sancionada pelo governador Mauro Mendes, do DEM. Em maio deste ano, por nove votos a zero, o STF derrubou a farra.

Ainda no Mato Grosso, cinco dos sete conselheiros estão afastados de suas atividades desde 2017, por determinação do STF. Eles foram citados na delação de Silval Barbosa, ex-governador do estado, como beneficiários de um esquema de corrupção no governo.

Em fevereiro, o STJ prorrogou por mais seis meses o afastamento, que deve ser rediscutido em setembro. Um dos conselheiros afastados protagonizou um vídeo pastelão, que veio à tona em julho. Durante o cumprimento de um mandado de busca e apreensão em seu escritório, Waldir Teis desceu 16 andares de escada para tentar se livrar de cheques no valor de quase 500 mil reais. Ao tirar os talões do bolso e jogá-los em uma lixeira, ele acabou flagrado por um agente da Polícia Federal e foi preso preventivamente.

Hoje, na América Latina, apenas Honduras e Uruguai têm cortes de contas em estruturas similares à do Brasil, com um tribunal em cada estado e um órgão específico para fiscalizar os gastos da União. Na Argentina, por exemplo, há corte de contas apenas na cidade de Buenos Aires. O tribunal nacional foi extinto. Outros países seguiram o exemplo do Chile de extinguir seu tribunal e ficar apenas com uma Controladoria-Geral.

Propostas em tramitação no Congresso Nacional preveem mudanças menos radicais do que a pura extinção das cortes de controle, mas trazem mudanças no sistema de escolha de conselheiros e ministros, para tentar reduzir a politicagem e a corrupção nesses órgãos. A julgar pelo emaranhado de interesses políticos que envolve a questão, é possível imaginar quão complicado será mexer nesse vespeiro.

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