MarioSabino

Van Gogh interrompido pelo Brasil

31.07.20

Eu planejava escrever apenas sobre Vincent van Gogh, o pintor holandês cuja morte fez 130 anos no último dia 29. Ele morreu com um bala no peito, na francesa Auvers-sur-Oise, que atraía muitos pintores por causa das cores dos seus campos de trigo e vegetação natural. No dia 27 de julho de 1890, dois dias antes da sua morte, Van Gogh chegou ao hotel onde morava com a noite já caída, bem mais tarde do que o habitual, e subiu para o seu quarto no primeiro andar, sem dar palavra. O proprietário do hotel, o senhor Ravoux, estranhou e foi até o quarto do pintor.  Encontrou-o deitado em posição fetal. “O senhor está doente?”, perguntou-lhe Ravoux. “Eu queria me matar”, respondeu Van Gogh, levantando a camisa e mostrando o buraco de uma bala no seu peito. Na versão de Adeline, filha de Ravoux (retratada de perfil, em azul sobre azul, em junho de 1890, tela pertencente a uma coleção privada suíça), a cena é mais dramática: o pintor entra no hotel com as mãos sobre o estômago, dizendo a todos que havia tentado se matar. Gosto mais da outra versão.

Correram a chamar o doutor Gachet, personagem que rendeu dois magníficos óleos de Van Gogh, um deles exposto no Museu D’Orsay, em Paris, no qual predomina o azul (o segundo retrato, em que reina o preto, foi comprado por um particular por mais de 82 milhões de dólares). O médico o auscultou (provavelmente com expressão mais próxima do retrato em fundo azul) e disse que faria de tudo para salvá-lo, embora já soubesse que não havia nada a fazer. A morte era só questão curta de tempo. No dia seguinte, policiais foram ao hotel para tomar o depoimento do pintor. Um deles disse a Van Gogh que suicídio era ilegal. O moribundo retrucou: “Guarda, meu corpo me pertence e sou livre para fazer dele o que quiser. Não acusem ninguém, fui eu quem quis me matar”. Não há registro do depoimento e jamais encontraram a arma. 

Apesar de a vida de Van Gogh ter sido marcada por surtos de depressão e insanidade, inclusive com a automutilação da sua orelha esquerda (dois autorretratos), numa briga com o amigo Paul Gauguin, além da internação em hospício, as circunstâncias do suicídio do pintor pareceram estranhas aos que o conheciam, e assim permanecem aos pósteros. Quarenta anos depois da sua morte, surgiram rumores de que Van Gogh levara o tiro fatal por acidente: dois jovens parisienses, Gaston e René Secrétan, em férias em Auvers-sur-Oise, divertiam-se com um revólver no campo onde o pintor trabalhava, quando um deles, sem querer, teria disparado um tiro com a arma usada para matar passarinhos. O passarinho acabou sendo Van Gogh, que costumava conversar com ambos e até chegara a pagar uma rodada de cerveja a Gaston. Numa entrevista a um historiador americano, John Rewald, ambos os irmãos negaram a hipótese de homicídio culposo: havia sido um acidente protagonizado pelo próprio pintor. Mas a morte de Van Gogh ainda causa controvérsia.

O retrospecto biográfico é para emoldurar devidamente um achado surpreendente noticiado pelo jornal Le Monde. Ao catalogar cartões postais antigos das regiões nas quais Van Gogh havia vivido, Wouter van der Veen, estudioso da obra do pintor, deteve-se sobre o que trazia uma foto de Auvers-sur-Oise, datado da primeira década do século XX. A imagem mostra um caminho que leva aos campos de trigo pintados por Van Gogh. Debruçado sobre o caminho, há uma árvore cujas raízes estendem-se pelo terreno erodido. Van der Veen suspeitou que ali estava a realidade do tema da última e inacabada pintura de Van Gogh: Raízes de árvores.

Entusiasmado, o estudioso, que mora em Estrasburgo, entrou imediatamente em contato com o Museu Van Gogh, em Amsterdã, que abriga a tela no seu acervo. Especialistas do museu se certificaram de que a árvore ainda existia, pediram fotos dela hoje, mediram ângulos e proporções da imagem antiga e das atuais, confrontaram-nas com a pintura e, nesse exame minucioso, chegaram a consultar um dendrólogo (botânico especializado em vegetais lenhosos), que lhes disse como as raízes daquele espécie de árvore se desenvolviam ao longo do tempo. Medições e comparações feitas, concluiu-se depois de cinco semanas que a árvore que Van Gogh deixara incompleta na tela era a mesma da foto que chamou atenção de Van der Veen. A ilustre habitante de Auvers-sur-Oise foi protegida por um tapume-moldura, para ser admirada, ela própria, como se fosse um quadro. Virou patrimônio artístico.

Van der Veen não tem dúvida de que, no dia em que morreu, Van Gogh enveredou pelo caminho estampado no cartão postal. Naquele 27 de julho de 1890, um domingo muito quente, Van Gogh teria montado o seu cavalete próximo da árvore, a 150 metros do hotel em que morava, antes de chegar ao campo onde o tiro foi disparado. Ela já o intrigava como tema havia bom tempo. Numa carta endereçada a seu irmão, Theo, em maio de 1882, ele desenhou um croqui das raízes da árvore e escreveu sobre o seu tema: “Há algo (nela) da luta pela vida. O fato de se enraizar apaixonada e convulsivamente de alguma forma na terra, mas sendo meio arrancada pelas tempestades”. Belo.

O achado de Van der Veen empresta um significado extra a Raízes de Árvores, considerada precursora da arte abstrata. “É uma mensagem de adeus”, diz ele. E mensagem de aspecto universal, porque a vida, ela própria, deixa raízes e é sempre inacabada, acrescento.

Adeus, Van Gogh.

“Raízes de Árvores“, de Van Gogh
Como disse, eu planejava escrever apenas sobre o pintor, mas fui bruscamente interrompido por Dias Toffoli. É a história da minha (nossa) vida brasileira: antes de inacabar qualquer coisa, sou (somos) sempre interrompido(s) em atividades mais frutíferas, elevadas e interessantes. As interrupções constantes impostas pela realidade do país são também uma forma de censura.

Dias Toffoli. Das manobras que vêm sendo feitas para exterminar não apenas a Lava Jato, mas a possibilidade de que possam surgir homens públicos honrados em quantidade suficiente para mudar o país, entra como cereja do bolo a sugestão do presidente do Supremo Tribunal Federal de que ex-juízes e procuradores sejam obrigados a fazer quarentena de oito anos antes de candidatar-se a cargos políticos. Oito longos anos. Como diz um amigo meu, é impor a pena ateniense do ostracismo a magistrados e integrantes do Ministério Público. Cassação de direitos pura e simples. Acho Toffoli um sujeito formidável — eu, que já admirava a sua cultura e elegância, passei a admirar também a sua sutileza.

Ao justificar a proposta, ele disse que era preciso evitar a “utilização da magistratura e do poder imparcial do juiz para fazer demagogia, aparecer para a opinião pública e se fazer candidato”.

E mais:

“Quem quer ser candidato, seja como magistrado, seja como membro do Ministério Público, tem que deixar a magistratura, tem que deixar o Ministério Público, e tem que haver um período de inelegibilidade, sim (…). Eu já disse isso várias vezes a senadores da República, não só nessa legislatura como em legislaturas anteriores.”

E ainda:

“A imprensa começa a incensar determinado magistrado e ele já se vê candidato a presidente da República, sem nem conhecer o Brasil, sem nem conhecer o seu estado, sem ter ideia do que é a vida pública.”

E por fim:

“Quer ir para a política, pode ir, pode ir. Sai da magistratura, e tenha um período de inelegibilidade. E eu volto a pedir ao Congresso Nacional que estabeleça prazos de inelegibilidade para membros da magistratura e do Ministério Público deixarem suas carreiras. Para que não possam magistrados e membros do Ministério Público fazer dos seus cargos e das suas altas e nobres funções meios de proselitismo e demagogia.”

Como também posso ser sutil, sugiro que advogados de partidos políticos tenham de fazer quarentena de vinte anos, pelo menos, antes de serem indicados para o Supremo Tribunal Federal. E com efeito retroativo, se já tiverem sido empossados.

Vou tentar não cortar uma das minhas orelhas.

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