Inimigos íntimos
Em cinquenta anos, a relação entre a China e os Estados Unidos deu um giro completo. Nos anos 1970, o presidente americano Richard Nixon e seu secretário de estado Henry Kissinger surpreenderam o mundo ao reatar os contatos com Pequim. O objetivo era expandir a influência americana, enfraquecendo a esfera soviética. “No longo prazo, simplesmente não podemos deixar a China de fora da família de nações. O mundo não pode estar seguro até que a China mude”, escreveu o presidente Richard Nixon, em artigo na revista Foreign Affairs, em 1967.
Após cinco décadas de engajamento com os chineses, os americanos hoje se mostram extremamente incomodados com a presença do gigante asiático entre os mais poderosos. Para os Estados Unidos, é a segurança mundial que novamente está em jogo. Na quinta, 23 de julho, o trecho do artigo de Nixon foi citado no discurso China Comunista e o Futuro do Mundo Livre, pelo atual secretário de estado Mike Pompeo, realizado justamente na Biblioteca Richard Nixon, na Califórnia. Pompeo decretou o fracasso da aproximação com a China e pediu que o mundo livre resistisse à ascensão de Pequim. “O discurso de Pompeo é um ponto de virada simbólico, formalizando a saída do governo americano da política de engajamento iniciada por Nixon”, diz Pepe Zhang, diretor associado do Centro China-América Latina no Atlantic Council.
A China ocupou o posto de maior parceiro comercial dos Estados Unidos na última década. Só perdeu a posição em meados do ano passado, quando as barreiras tarifárias afetaram as importações e exportações entre os dois países. Ainda assim, são duas economias muito dependentes uma da outra. O problema é que cada um dos lados — o chinês e o americano — não pode acatar as demandas do outro sem comprometer a essência de seus sistemas. A mentalidade baseada nas liberdades individuais que rege os Estados Unidos é oposta à chinesa, que vê no coletivismo e no controle do estado peças fundamentais para o bem-estar social.
Os americanos querem que a China deixe de reprimir minorias uigures ou manifestantes em Hong Kong, que abandone suas pretensões militares na Ásia, que deixe de roubar propriedade intelectual e que empresas de tecnologia como a Huawei não estejam subordinadas ao Partido Comunista. Para a China, abrir mão dessas coisas só seria possível com uma troca de regime, o que é impensável. Da parte dos chineses, querer que os americanos façam comércio sem se importar com a natureza ditatorial parece um desejo distante, uma vez que no Partido Democrata a ojeriza a Pequim também é grande. “Há um crescente consenso em Washington de que os Estados Unidos precisam ser mais duros com a China “, diz Trey McArver, da consultoria Trivium China.
“É muito raro, fora de períodos de guerra, que um país ordene o fechamento da missão diplomática de outro país. Não existe precedente para essa decisão no relacionamento moderno entre Estados Unidos e China”, diz o especialista do Instituto Brookings Ryan Hass, que foi diretor para China do Conselho de Segurança Nacional americano, entre 2013 e 2017. Pouco antes, em junho, Trump assinou um decreto para encerrar o tratamento econômico e comercial especial concedido a Hong Kong. A medida foi uma retaliação à nova lei de segurança nacional imposta pelo regime comunista à cidade.
No front militar, as tensões devem permear os próximos meses. Exercícios conjuntos da Marinha americana e da Índia, que não aconteciam desde 2012, voltaram a ocorrer no Oceano Índico em junho. Dias antes, militares de China e Índia se enfrentaram a pauladas em uma região da fronteira. Ao menos 20 soldados morreram. No domingo, 26, dois aviões militares americanos foram vistos a menos de 100 quilômetros de Xangai. Na terça imediatamente anterior, dia 21, o secretário de Defesa dos Estados Unidos, Mark Esper listara diversos exemplos de maus comportamentos da China, em seminário pela internet. Falou dos exercícios com a Marinha da Índia e previu um conflito de alta intensidade na região do Mar do Sul da China. “Nós esperamos nunca precisar lutar, mas temos de estar preparados para derrotá-los”, disse Esper.
Há ainda o front eleitoral. Em 2016, o plano de governo do então candidato Donald Trump citou “China” ou “chineses” oito vezes. No documento da campanha pela reeleição deste ano, foram 25 referências. O assunto, contudo, não deverá ser decisivo no pleito de novembro. Nas pesquisas de opinião abertas, em que os entrevistados citam livremente os principais temas, a China nem sequer aparece. Coronavírus, economia, saúde e relações raciais são os assuntos mais relevantes. Quando perguntados sobre a China, a maioria dos entrevistados afirma que o rival democrata Joe Biden seria a pessoa mais indicada para lidar com a tensão. A rejeição ao país asiático é bipartidária: 73% dos americanos afirmam ter uma visão negativa da China.
Medidas governamentais contra empresas chinesas têm se multiplicado pelo mundo. Os americanos pressionam diversos governos, inclusive o brasileiro, a não incluir a companhia chinesa Huawei nos leilões para a construção de redes de infraestrutura 5G. Reino Unido, Austrália, Japão e Suécia seguiram os americanos. Alemanha e França estão perto de fazer o mesmo. O governo dos Estados Unidos também estuda banir o aplicativo de vídeos TikTok dos celulares, temendo o roubo de dados de privacidade e a exposição de crianças. A Índia, que era o maior mercado do aplicativo, tomou a medida em junho, após o conflito com soldados chineses na fronteira.
Há ainda uma tendência crescente de companhias cancelarem, por conta própria ou estimuladas por autoridades, investimentos em fábricas na China e inaugurarem unidades nos Estados Unidos e outros países ocidentais. A dificuldade de obter insumos chineses para combater a pandemia contou muito para esse movimento. Na quarta-feira, 29, o candidato da Casa Branca para assumir o Banco Mundial, Mauricio Claver-Carone, disse que está pensando em um plano para oferecer incentivos de 30 bilhões a 50 bilhões de dólares para multinacionais americanas mudarem suas fábricas da Ásia para os Estados Unidos, para a América Latina e para o Caribe. O processo, também chamado de reindustrialização, é visto por alguns políticos como uma maneira de gerar empregos e ganhar votos. Em novembro do ano passado, o presidente da Apple, Tim Cook, visitou com Donald Trump uma nova fábrica de computadores da companhia no Texas. Uma placa comemorativa de metal dizia: “Mac Pro. Desenvolvido pela Apple na Califórnia. Fabricado nos Estados Unidos.” A mensagem faz referência à frase “Desenvolvido pela Apple na Califórnia. Fabricado na China” que costuma aparecer nos celulares iPhone. A consequência indireta desse tipo de política é um aumento dos preços de vários produtos e inflação, uma vez que é muito difícil produzir a um custo menor que o da China.
Boicotes para que consumidores deixem de comprar produtos chineses também são uma possibilidade no horizonte, a pretexto de protestar contra as persistentes violações de direitos humanos, como os campos de concentração para minorias muçulmanas em Xinjiang. “Seria uma retomada de técnicas da Guerra Fria, quando a União Soviética, também comunista, era criticada por perseguir cristãos”, diz o professor Marcus Vinícius de Freitas. “A questão é que a China é muito mais importante economicamente do que foi a União Soviética, o que gera efeitos maiores.” Os reflexos da “nova Guerra Fria” nunca estiveram tão perto da vida de cidadãos de todo o planeta.
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