Agência CâmaraEm novo ambiente, com toma-lá-da-cá e tentativas de liquidar a Lava Jato, o sistema político se acomoda e volta ao "velho normal"

A ‘paz conveniente’

O sistema político brasileiro se aproveita dos apuros do governo para se reacomodar. Mostramos quem são os construtores dessa ‘nova ordem’
31.07.20

Na primeira semana de julho, um presidente ainda aturdido pela tempestade quase perfeita que se descortinava no horizonte, cuja cumulonimbus foi a prisão do proverbial Fabrício Queiroz, sacou o celular e ligou para o antecessor Michel Temer, a quem coube, em janeiro de 2019, transmitir-lhe a faixa presidencial. “Pô, Temer! Você não me avisou que era tão difícil. Troca comigo, não quer trocar?”, indagou Bolsonaro, em tom de pilhéria, mas, ao mesmo tempo, como quem clamasse por uma boia de salvação. Desde o início da pandemia, essa seria a quarta conversa entre os dois – duas ocorreram por meio de amigos em comum. Mas foi a primeira vez em que o próprio Bolsonaro tomou a iniciativa de telefonar, ante a necessidade de obter conselhos de alguém acostumado com as dores e as delícias do poder. No papo, de quase meia hora de duração, Temer pontificou sobre questões administrativas e aspectos relativos à liturgia do cargo, perpassando por temas que foram desde a preservação ambiental até a relação com o Congresso e o Supremo. Para azeitar o meio campo entre os Três Poderes, o emedebista se dispôs a ajudar – e o fez, em ao menos duas ocasiões, graças à sua linha direta com integrantes da cúpula do Legislativo, em especial o presidente da Câmara, Rodrigo Maia.

O ex-presidente foi apenas um dos interlocutores que exerceram papel decisivo não só para o cavalo de pau no comportamento de Bolsonaro como também para a construção da nova pax brasiliense, algo próximo de um acordão 3.0, a aparentemente reinar hoje no centro do poder. Assim como Temer, de diferentes maneiras tiveram papéis preponderantes nesse processo de reacomodação de forças ao menos outros quatro personagens: o ministro das Comunicações, Fábio Faria, o procurador-geral da República, Augusto Aras, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, e o almirante Flávio Rocha, secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, amigo pessoal de Bolsonaro que ascendeu no governo em meio à crise.

Todos esses interlocutores fizeram chegar aos ouvidos de Bolsonaro que, numa adaptação da máxima da mulher de César, ao presidente não basta ser eleito, tomar posse e assumir a cadeira reservada a ele no terceiro andar do Palácio do Planalto. Tem de ser e parecer presidente. Hoje, Bolsonaro parece um pouco presidente – um avanço, mesmo que mínimo e ainda insuficiente para um país com as complexidades do Brasil. Movido ou não pelo instinto de sobrevivência, interpretando ou não um personagem, em que por trás dessa nova estampa subsistiria o verdadeiro mandatário, aquele que ergue cloroquina como hóstia consagrada, o fato é que Bolsonaro mudou de conduta. De pouco mais de um mês para cá, assumiu uma nova roupagem. Saiu de cena o presidente acostumado a lançar diatribes e bravatas dia sim, outro também, entrou no lugar um outro recatado, aparentemente ponderado e, ao que tudo indica, disposto a compor com outros setores do poder que, até então, se mostravam incomodados.

Não só Bolsonaro mudou sua maneira de ser. A mesma turma responsável pelo novo “physique du rôle” do presidente também atuou para convencer setores do Legislativo e Judiciário que ninguém ali tinha a lucrar com o País em chamas, surpreendido a cada semana com operações da Polícia Federal, pedidos de impeachment e manifestações na porta do Legislativo e do STF, quando não em frente às residências dos próprios ministros da corte. O novo quadro produziu no sistema político brasileiro uma reconfortante sensação de “ganha, ganha”, em que todos atores que sempre se valeram do status quo para obter vantagens e amealhar mais e mais poder aproveitaram a oportunidade – e a debilidade do governo – para se acomodar. Com a PGR domada, pronta para implodir a Lava Jato, o Supremo, na figura de seu presidente, Dias Toffoli, mais colaborativo, e com os profissionais da realpolitik no Congresso exercitando o que sabem fazer de melhor, qual seja, o nada franciscano “pois é dando que se recebe”, as forças de Brasília se ajustaram para o deleite de todos os envolvidos. Não que a espada ainda não esteja dependurada sobre a cabeça de Bolsonaro. Mas o terreno está mais aplainado, não só para aquele que está acomodado na cadeira presidencial, como para quem quer que a engrenagem do sistema volte a girar como sempre girou antes da Lava Jato.

Igor Gadelha/CrusoéIgor Gadelha/CrusoéFábio Faria ao lado de Onyx Lorenzoni: o ministro chegou para desatar nós
Numa live na noite de terça-feira, 29, o procurador-geral da República, Augusto Aras, que nas últimas semanas avocou para si o papel de ajeitar as coisas na PGR, sentiu-se à vontade para torpedear a operação dizendo tratar-se de uma “caixa de segredos” – da qual ele vai ser detentor agora – e que é chegado o momento de “corrigir rumos” para que o “lavajatismo não perdure”. Não satisfeito, repetiu a dose em teleconferência com senadores no dia seguinte: “República não combina com heróis”. Nunca na história recente um procurador-geral arriscou ir tão longe e de maneira tão escancarada na tentativa de liquidar com a maior operação de combate à corrupção do país. E, o que é pior, com o beneplácito de setores do STF com os quais Aras tem gastado horas de conversas, e diante do silêncio eloquente da maior parte da classe política – bolsonaristas incluídos, filhos do presidente idem, para o regozijo da esquerda, sobretudo a esquerda petista, que faz eco nas redes sociais às palavras do procurador. Até o PT, até então acanhado em virtude das recentes e fragorosas derrotas sofridas nas urnas, voltou a se assanhar a partir de um cenário em que o “novo normal” político, para usar uma expressão em voga no pós-pandemia, é nada mais do que o resgate do surrado “velho normal” ao qual todos estavam acostumados. O sistema político se contenta como um todo. Afinal, quem poderia imaginar, da Lava Jato para cá, que uma canetada do presidente do STF anularia no mesmo dia duas investigações contra um ínclito senador da República — no caso, José Serra, do PSDB?

No final de junho, menos de dez dias antes do telefonema a Temer, Bolsonaro teve no Planalto uma conversa tensa com ministros da ala militar. “Se não mudarmos, corremos risco” e “assim, o governo não termina” foram as expressões mais amenas utilizadas. Estavam presentes, entre outros auxiliares, o ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Jorge Oliveira, e o ministro da Secretaria de Governo, general Luiz Eduardo Ramos. Ali, começou a cair a ficha para o presidente. Abatido, não raro sorumbático, a perambular pelos recessos mais íntimos do Alvorada, o presidente confidenciou a interlocutores, antes do diagnóstico positivo para a Covid-19, que embora não esperasse contrair o novo coronavírus, ia acabar adoecendo por estresse.

Bolsonaro percebeu que, cercado de neófitos estranhos ao exercício do poder, não iria longe. Desde o início do mandato, o chefe do Planalto teimava em subverter a ordem natural das coisas. A palavra do presidente nunca valeu tão pouco. A ponto de ele falar algo e emissários correrem para dizer que não era bem aquilo. No passado, nunca foi assim. O governo brigava pelos jornais, ministros cometiam toda a sorte de desatinos e o presidente da vez aproveitava a desordem para emergir como o pacificador, a dar a palavra oficial e final. Durante determinados momentos do governo tucano, por exemplo, a disputa entre desenvolvimentistas e monetaristas fez bem a Fernando Henrique Cardoso. Assim como a queda-de-braço entre Antonio Palocci e José Dirceu, estimulada por Lula nos bastidores, ajudou o petista. Dilma Rousseff, não. Ela e seu já desgastado partido eram a própria crise. E deu no que deu. Sarney também personificava a crise. Quando viajava, dizia-se que “a crise viajou”. Hoje, o que se comenta na Esplanada é que a crise agora “pensa três segundos antes de falar” e entendeu que se render aos conchavos com o Judiciário e Legislativo, típicos do que antes chamava de velha política, é mais importante para a sua sobrevivência política do que ceder ao histrionismo da ala ideológica. Atualmente, o bolsonarismo raiz está bravo com o bolsonarismo nutella, mas hoje esse parece ser o menor dos problemas para o presidente.

Um dos responsáveis por convencer Bolsonaro a afastar das posições estratégicas um pedaço dessa franja mais radical, sempre pronta para trazer problemas para o governo, foi o ministro Fábio Faria. Hoje, em conversas com interlocutores, o genro de Silvio Santos comemora o fato de ter ajudado a derrotar a principal tese alimentada, desde o ano passado, por integrantes da ala ideológica do governo. Os olavistas insistiam que, caso o presidente abandonasse o discurso radical, ele perderia o apoio daqueles 30% de apoiadores fiéis que aparecem em quase todas as pesquisas de opinião, o que abriria caminho para o impeachment. Na prática, o que se viu, depois da mudança de estratégia, foi uma melhora na avaliação de Bolsonaro. No longo prazo, a aposta de Faria é que uma fatia do “ruim ou péssimo” migre para o “regular” e que uma parcela dos que consideram a gestão nem muito boa nem muito ruim passe a considerar o governo “bom ou ótimo”.

Alan Santos/PRAlan Santos/PRTemer tem sido um dos principais conselheiros de Bolsonaro durante a crise
Pelo pragmatismo que o move e pela aparente vocação para tarefeiro, o ministro recebeu no governo a alcunha de “Fabio Faz o que Ninguém Faria”. Em tom de elogio, decerto. Além de ter se tornado um dos principais conselheiros do presidente, o ministro das Comunicações tem cumprido o papel de “desatar nós”, seja com o Legislativo, com o Judiciário, ou mesmo com a imprensa. Se há uma rusga, por menor que seja, com determinado setor, ele se apresenta ao jogo para matar no peito e resolver. “Ele é capaz de convencer quem o procura de que a pessoa, se tiver uma pendência com o Planalto, sairá da conversa numa situação melhor do que entrou”, diz uma fonte do governo.

Bom de papo e com tino para captar com antecedência os movimentos políticos, Faria repassa todos os dias por volta das 6h30 da manhã o noticiário com o presidente. Ajuda o mandatário do país a separar o que é importante do que pode ser desprezado. Com isso, diminuíram as teorias da conspiração, em geral alimentada pelos filhos 01, 02 e 03 e pelo ex-chefe da Secom, Fabio Wajngarten, que Faria colocou debaixo de seu guarda-chuva na estrutura do ministério. Um episódio ilustra bem como a influência do ministro sobre o presidente contribuiu para fazê-lo enxergar as coisas de outra forma. Quando viajou ao Ceará, para inaugurar obras da transposição do São Francisco, Bolsonaro teve um acesso de fúria ao ler matérias que destacavam o fato de ele não ter usado máscara nos compromissos públicos da viagem. Acabou convencido por Fábio Faria de que um presidente sem máscara em público, em meio à tragédia da pandemia, é naturalmente notícia, e que o melhor a fazer seria simplesmente usá-la, para evitar repetidas manchetes sobre o assunto.

Foi também numa dessas conversas do princípio da manhã que o ministro das Comunicações persuadiu o presidente a parar de bater ponto diariamente no famoso cercadinho do Alvorada. O ministro alertou Bolsonaro de que o pit stop para cumprimentar apoiadores e falar com jornalistas só produzia notícias negativas, o que contribuía para ofuscar qualquer agenda positiva planejada pelo governo. Nessa tarefa específica, Faria foi ajudado por Temer que, no telefonema com o presidente, reforçou: “Bolsonaro, você inovou, ao criar essa maneira de se comunicar. Mas ninguém disse que você não possa diminuir (as idas ao cercadinho). Você, como presidente, é quem dita a pauta do país”, orientou o ex-presidente.

DivulgaçãoAo lado de Ciro Nogueira, Bolsonaro diz que a relação com o Congresso Nacional engrenou
O almirante Flávio Rocha é outro que, além de Fábio Faria e Temer, também tem operado para aparar arestas. Bolsonaro e Rocha se conheceram em 2002, quando o militar comandava a assessoria parlamentar da Marinha na Câmara. Desde então, a amizade se solidificou, a ponto de o almirante integrar a turma da maçaneta palaciana, aquela dotada do privilégio de entrar no gabinete presidencial sem precisar bater à porta. Nas últimas semanas, Bolsonaro confiou missões espinhosas a Rochinha, como é conhecido no Planalto. Ele tem atuado, por exemplo, como bombeiro nas relações com a ala ideológica do governo. A pedido do presidente, também não foram poucas as incursões do almirante no Congresso e no STF, de maio para cá. Rochinha circula bem no Supremo e, não raro, é escalado para falar com Toffoli, Gilmar Mendes e Marco Aurélio Mello. No diálogo com tribunal, o oficial reforçou a articulação que já era exercida pelo ministro da Defesa, Fernando Azevedo. Parece ter surtido efeito. “Não estamos  aborrecidos com o Executivo, é o que sinto e o que percebo. Quando tivermos que sentar à mesa, sentaremos. Claro que a temperança é sempre o desejado, de parte a parte”, disse Marco Aurélio a Crusoé.

De acordo com assessores palacianos, quando se trata de um tema guardado a sete chaves que não pode escapar para a imprensa de jeito nenhum, o almirante é sempre o nome designado pelo presidente para entrar no circuito. Discreto, mas com autoridade para falar em nome do chefe do Planalto, ele ainda tem auxiliado o governo nas negociações com o Centrão. Nessa seara, Rochinha tem jogado junto com Fábio Faria, Jorge Oliveira e Luiz Eduardo Ramos. O entrosamento tem funcionado.

Apesar do rompimento anunciado do DEM e do MDB com o blocão de Arthur Lira, líder do Progressistas e um dos ases do Centrão, o Legislativo hoje parece mais dócil do que no início do governo. Parlamentares do bloco fisiológico, saco de gatos sempre dispostos a aderir aos governos de ocasião, foram premiados com cargos e postos estratégicos e, por isso, estão mais governistas até do que os próprios bolsonaristas de carteirinha. “Estamos começando a engrenar com o Parlamento”, reconheceu Bolsonaro na quinta-feira, 30, após visitar cidades do Nordeste escoltado por Ciro Nogueira, comandante do Progressistas. No STF, apesar de os dois inquéritos tocados por Alexandre de Moraes ainda preocuparem o presidente, o governo comemora um mês sem nenhuma nova operação contra seus aliados nos inquéritos tocados pelo ministro – a última foi que a resultou na prisão de um blogueiro bolsonarista no chamado “inquérito dos atos antidemocráticos”. Na corte, atua com desenvoltura para debelar possíveis incêndios o presidente Dias Toffoli, sempre afinado com o ministro Fernando Azevedo e com o procurador-geral, Augusto Aras. A perspectiva de nomeação próxima de dois ministros para o Supremo concorre para adoçar o animus de parte do Judiciário. Na PGR, não são poucos os que garantem que a decisão de Aras de criminalizar a Lava Jato guarda relação direta como uma tentativa de se credenciar a uma vaga no STF. O procurador fia-se na regra de ouro de Brasília, segundo a qual a fidelidade aos poderosos de turno é sempre bem recompensada. Para quem quer que tudo volte a funcionar sob os códigos de outrora, nada como os Três Poderes pacificados.

Com reportagem de André Spigariol.

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