A decisão do presidente do Supremo, Dias Toffoli, protegeu Serra, apesar de o STF ter restringido o foro especial

Privilégio condenável

A tentativa da polícia de obter provas no gabinete de José Serra, frustrada por uma liminar de Dias Toffoli, reacende a discussão sobre o foro privilegiado, uma particularidade brasileira que só contribui para a impunidade
24.07.20

Na última terça-feira, 21, policiais federais chegaram cedo ao Congresso com uma ordem do juiz Marcelo Antônio Martins Vargas, da 1ª Zona Eleitoral de São Paulo, em mãos. O mandado expedido pelo magistrado determinava a realização de busca e apreensão no gabinete do senador José Serra, do PSDB, investigado por caixa dois de 5 milhões em sua campanha de 2014. Os agentes entraram no prédio do Congresso, mas o acesso ao local de trabalho do tucano foi barrado pelo presidente da casa, Davi Alcolumbre. A advocacia-geral do Senado ajuizou uma reclamação no Supremo e, apenas duas horas depois, o presidente da corte, Dias Toffoli, suspendeu as buscas no gabinete de Serra. Embora o STF já tenha entendido que o foro privilegiado só vale para os crimes cometidos no exercício do mandato e em função do cargo, o que definitivamente não é o caso do tucano, Toffoli fez um esforço retórico para sustentar sua decisão. “A decisão da autoridade reclamada pode conduzir à apreensão de documentos relacionados ao desempenho da atividade parlamentar do senador da República, que não guardam identidade com o objeto da investigação”, argumentou o ministro.

Toffoli despachou a liminar por estar no plantão do STF durante o recesso de julho. Em agosto, a ação será encaminhada a Gilmar Mendes, para quem o caso foi distribuído. Espera-se que, então, um debate premente, menosprezado pelos políticos, seja reaberto: o fim do foro privilegiado. Há mais de uma década, setores da sociedade mobilizam-se para acabar com o mais indecente dos incontáveis privilégios das autoridades brasileiras – hoje, mais de 55 mil autoridades usufruem da benesse. Entre avanços e recuos, o Congresso começou a discutir o tema e, após muita pressão da opinião pública, a extinção do benefício passou pelo Senado. Mas, com a miríade de interesses suprapartidários contrários à mudança, a proposta de emenda à Constituição emperrou na Câmara.

Em 2018, o Supremo tentou minimizar o problema ao restringir a prerrogativa de foro de deputados e senadores – a corte manteve sob seu controle somente os processos relativos a crimes cometidos durante o mandato e relacionados ao exercício do cargo. Com a decisão, uma enxurrada de processos foi remetida a instâncias inferiores. Mas como a nova regra decorre de um entendimento dos ministros, e não de uma mudança efetiva na Constituição, brechas de interpretação permitiram que investigadores fossem barrados no Parlamento mais uma vez. E pelo próprio presidente do Supremo.

O posicionamento de Toffoli não é inédito: em decisões monocráticas, ministros já impediram a entrada de agentes nas dependências da casa e atrapalharam apurações contra os ex-deputados Paulo Bernardo, do PT, e Simone Morgado, do MDB, por exemplo. Mas, quando isso aconteceu, o foro ainda não havia sido limitado pelo STF. Ou seja, tratou-se da primeira decisão que cancelou uma diligência no Congresso, determinada por magistrado de primeira instância contra um parlamentar no exercício do cargo, de 2018 para cá. No caso de Simone Morgado, o questionamento ocorreu em 2017, antes da restrição de foro. À época, o ministro Alexandre de Moraes anulou uma ação da PF em endereços da então parlamentar. As medidas haviam sido autorizadas pela Justiça Federal.
A operação envolvendo Paulo Bernardo foi em 2016 e teve outra particularidade: à época, ele não tinha mandato, mas era casado com a então senadora Gleisi Hoffmann, do PT. Ela não era investigada, mas o caso foi parar no Supremo porque o casal vivia em um apartamento funcional do Senado. Por maioria de votos, a 2ª Turma da corte anulou as diligências no imóvel. Vencido no julgamento, o ministro Edson Fachin afirmou que não existe foro de prerrogativa para espaços físicos. “Não comungo da compreensão de que o endereço da diligência funcione, por si só, como causa de atração da competência do Supremo”, argumentou.

Rosinei Coutinho/SCO/STFRosinei Coutinho/SCO/STFPara Marco Aurélio, a ordem de busca no gabinete não é ilegal
O entendimento de Toffoli transforma o Congresso em território livre e imune, uma espécie de templo sacrossanto onde os parlamentares podem ocultar provas, com a segurança de que seus gabinetes, além deles mesmos, serão protegidos pelo instituto do foro privilegiado. “Realizar buscas não é um desrespeito ao Parlamento, essa é uma técnica de investigação e o fato de a diligência ser realizada no Congresso não induz à culpa de ninguém. Se forem tratar o Senado e a Câmara como embaixadas, onde ninguém pode entrar, isso vai gerar uma blindagem que é desnecessária e ruim”, afirmou o presidente da Associação Nacional de Delegados da Polícia Federal, Edvandir Paiva. O coordenador da Lava Jato em Curitiba, procurador da República Deltan Dallagnol, fez coro. “O ambiente parlamentar, assim como qualquer outro, não pode funcionar como um bunker que permita a ocultação de crimes. Não há qualquer regra constitucional ou legal que ampare a ideia de um foro privilegiado de imóvel”, disse.

Com a pressão gerada pela blindagem assegurada a José Serra, é inevitável que os ministros do Supremo analisem em breve a situação para delimitar com precisão o alcance da decisão que há dois anos limitou a prerrogativa de foro. Nos bastidores do tribunal, a decisão de Toffoli dividiu mais uma vez a corte. A ala liderada pelos ministros Luís Roberto Barroso e Celso de Mello atesta a competência de juízes de primeiro grau para determinar busca e apreensão no Congresso. Do outro lado, além de Dias Toffoli, estão Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski. A aposta é que, se o caso fosse julgado hoje, o placar seria apertado, como geralmente ocorre em processos da Lava Jato.

Para o ministro Marco Aurélio Mello, não há ilegalidade na decisão do juiz de primeiro grau que determinou a realização de buscas no gabinete de José Serra. Ele diz que não há dúvidas no caso sobre a competência do magistrado de primeira instância para julgar o parlamentar, já que as irregularidades investigadas são anteriores ao exercício do mandato de senador. Em 2014, durante as eleições, o tucano estava sem mandato. “Não existe limitação. É preciso recuar e ver se o juízo é competente para julgar a imputação. Se ele é, pode determinar diligências, pouco importando que sejam feitas na Câmara, no Senado, no Supremo ou até na Presidência da República. O que temos que saber é se (o magistrado) é competente para julgar. Se é, também tem competência para capitanear a instrução dos processos”, disse Marco Aurélio a Crusoé.

O ministro defende, porém, que a realização de buscas no Congresso deveria ser medida excepcional. “Deve haver um respeito, precisamos preservar as instituições pátrias”, argumenta. Em 2018, o ministro autorizou a realização de buscas em endereços ligados ao ao então senador Aécio Neves, mas não no Congresso. “Me pediram buscas no Senado e eu não deferi, porque entendi que havia outros meios”, justifica.

Rosinei Coutinho/SCO/STFRosinei Coutinho/SCO/STFToffoli despachou a liminar por estar no plantão do STF durante o recesso
A aprovação da PEC que extingue o foro privilegiado seria a solução mais efetiva para acabar com conflitos constantes sobre o tema. Além da divergência sobre a possibilidade de buscas no Congresso, outro entendimento recente expôs os flancos da questão. Investigado por participação em um esquema de rachid em seu gabinete quando era deputado estadual, o senador Flávio Bolsonaro obteve direito a foro privilegiado, depois que a 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro determinou que o processo fosse analisado pelo Órgão Especial da corte, uma espécie de foro especial estadual. O benefício assegurado a Flávio deve ser derrubado pelo Supremo Tribunal Federal, que vai avaliar um recurso contra a decisão. Mas já causou estragos políticos à família de Jair Bolsonaro, que antes de chegar ao poder sempre atacou o privilégio. “Não quero essa porcaria de foro privilegiado”, disse o presidente da República, em um vídeo gravado em março do ano passado, ao lado de Flávio. “Sou pelo fim do foro privilegiado”, declarou Eduardo Bolsonaro, pelas redes sociais, em 2017. Com o Ministério Público do Rio de Janeiro fechou o cerco sobre um suposto esquema de peculato envolvendo Flávio, o senador passou a brigar com afinco pela prerrogativa.

A proposta em debate no Congresso que acaba com a benesse é de autoria do senador Alvaro Dias, do Podemos. Ele protocolou a proposta em 2013 e, só quatro anos depois, o texto foi aprovado. O parlamentar propunha extinguir completamente o privilégio, mas, durante a tramitação no Senado, os colegas inseriram um dispositivo que preservou o foro a apenas quatro autoridades: os presidentes da República, da Câmara, do Senado e do Supremo Tribunal Federal. Na Câmara, o texto passou pela comissão especial e pela CCJ e está pronto para ser votado em plenário. Como esse é um tema que desagrada à maioria dos parlamentares, o projeto não vai a votação. “A estratégia sempre foi de evitar colocar a PEC na ordem do dia”, lamenta Álvaro Dias. “Essa é uma medida muito importante para o país, tanto quanto a prisão após condenação em segunda instância. É certamente um dos temas que mais geram indignação na população porque o foro é o grande símbolo dos privilégios”, afirma o senador.

No último dia 9, um grupo de dez deputados federais de partidos como o Novo, o Podemos e o Cidadania apresentou ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia, um requerimento pedindo a inclusão da PEC na ordem do dia. Maia se comprometeu em dezembro de 2019 a pautar a proposta no início deste ano, mas a pandemia e a pressão de parlamentares favoráveis à manutenção do foro especial contribuíram para o adiamento. O presidente da casa e um grupo de colegas defendem que o texto receba emendas para impedir que juízes de primeira instância determinem medidas como prisão, quebra de sigilo bancário e telefônico e mandados de busca e apreensão contra políticos com mandato, o que desidrataria o texto original.

Assim como a proposta de emenda à Constituição que prevê a prisão após condenação em segunda instância, o projeto que extingue o foro privilegiado conta com adversários de peso no Congresso, sobretudo entre parlamentares do Centrão. “A participação popular é fundamental para conseguirmos pautar a PEC. O cidadão tem que pressionar seu deputado, procurá-lo, pedir para que a proposta seja votada, isso é fundamental”, afirma a deputada Adriana Ventura, do Novo, coordenadora da Frente Parlamentar Mista contra a Corrupção. Será mais uma batalha difícil, com grandes chances de os velhos hábitos da política, que voltaram a dar as caras com força em Brasília, falarem mais alto.

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