Privilégio condenável
Na última terça-feira, 21, policiais federais chegaram cedo ao Congresso com uma ordem do juiz Marcelo Antônio Martins Vargas, da 1ª Zona Eleitoral de São Paulo, em mãos. O mandado expedido pelo magistrado determinava a realização de busca e apreensão no gabinete do senador José Serra, do PSDB, investigado por caixa dois de 5 milhões em sua campanha de 2014. Os agentes entraram no prédio do Congresso, mas o acesso ao local de trabalho do tucano foi barrado pelo presidente da casa, Davi Alcolumbre. A advocacia-geral do Senado ajuizou uma reclamação no Supremo e, apenas duas horas depois, o presidente da corte, Dias Toffoli, suspendeu as buscas no gabinete de Serra. Embora o STF já tenha entendido que o foro privilegiado só vale para os crimes cometidos no exercício do mandato e em função do cargo, o que definitivamente não é o caso do tucano, Toffoli fez um esforço retórico para sustentar sua decisão. “A decisão da autoridade reclamada pode conduzir à apreensão de documentos relacionados ao desempenho da atividade parlamentar do senador da República, que não guardam identidade com o objeto da investigação”, argumentou o ministro.
Toffoli despachou a liminar por estar no plantão do STF durante o recesso de julho. Em agosto, a ação será encaminhada a Gilmar Mendes, para quem o caso foi distribuído. Espera-se que, então, um debate premente, menosprezado pelos políticos, seja reaberto: o fim do foro privilegiado. Há mais de uma década, setores da sociedade mobilizam-se para acabar com o mais indecente dos incontáveis privilégios das autoridades brasileiras – hoje, mais de 55 mil autoridades usufruem da benesse. Entre avanços e recuos, o Congresso começou a discutir o tema e, após muita pressão da opinião pública, a extinção do benefício passou pelo Senado. Mas, com a miríade de interesses suprapartidários contrários à mudança, a proposta de emenda à Constituição emperrou na Câmara.
Em 2018, o Supremo tentou minimizar o problema ao restringir a prerrogativa de foro de deputados e senadores – a corte manteve sob seu controle somente os processos relativos a crimes cometidos durante o mandato e relacionados ao exercício do cargo. Com a decisão, uma enxurrada de processos foi remetida a instâncias inferiores. Mas como a nova regra decorre de um entendimento dos ministros, e não de uma mudança efetiva na Constituição, brechas de interpretação permitiram que investigadores fossem barrados no Parlamento mais uma vez. E pelo próprio presidente do Supremo.
O posicionamento de Toffoli não é inédito: em decisões monocráticas, ministros já impediram a entrada de agentes nas dependências da casa e atrapalharam apurações contra os ex-deputados Paulo Bernardo, do PT, e Simone Morgado, do MDB, por exemplo. Mas, quando isso aconteceu, o foro ainda não havia sido limitado pelo STF. Ou seja, tratou-se da primeira decisão que cancelou uma diligência no Congresso, determinada por magistrado de primeira instância contra um parlamentar no exercício do cargo, de 2018 para cá. No caso de Simone Morgado, o questionamento ocorreu em 2017, antes da restrição de foro. À época, o ministro Alexandre de Moraes anulou uma ação da PF em endereços da então parlamentar. As medidas haviam sido autorizadas pela Justiça Federal.
A operação envolvendo Paulo Bernardo foi em 2016 e teve outra particularidade: à época, ele não tinha mandato, mas era casado com a então senadora Gleisi Hoffmann, do PT. Ela não era investigada, mas o caso foi parar no Supremo porque o casal vivia em um apartamento funcional do Senado. Por maioria de votos, a 2ª Turma da corte anulou as diligências no imóvel. Vencido no julgamento, o ministro Edson Fachin afirmou que não existe foro de prerrogativa para espaços físicos. “Não comungo da compreensão de que o endereço da diligência funcione, por si só, como causa de atração da competência do Supremo”, argumentou.
Com a pressão gerada pela blindagem assegurada a José Serra, é inevitável que os ministros do Supremo analisem em breve a situação para delimitar com precisão o alcance da decisão que há dois anos limitou a prerrogativa de foro. Nos bastidores do tribunal, a decisão de Toffoli dividiu mais uma vez a corte. A ala liderada pelos ministros Luís Roberto Barroso e Celso de Mello atesta a competência de juízes de primeiro grau para determinar busca e apreensão no Congresso. Do outro lado, além de Dias Toffoli, estão Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski. A aposta é que, se o caso fosse julgado hoje, o placar seria apertado, como geralmente ocorre em processos da Lava Jato.
Para o ministro Marco Aurélio Mello, não há ilegalidade na decisão do juiz de primeiro grau que determinou a realização de buscas no gabinete de José Serra. Ele diz que não há dúvidas no caso sobre a competência do magistrado de primeira instância para julgar o parlamentar, já que as irregularidades investigadas são anteriores ao exercício do mandato de senador. Em 2014, durante as eleições, o tucano estava sem mandato. “Não existe limitação. É preciso recuar e ver se o juízo é competente para julgar a imputação. Se ele é, pode determinar diligências, pouco importando que sejam feitas na Câmara, no Senado, no Supremo ou até na Presidência da República. O que temos que saber é se (o magistrado) é competente para julgar. Se é, também tem competência para capitanear a instrução dos processos”, disse Marco Aurélio a Crusoé.
O ministro defende, porém, que a realização de buscas no Congresso deveria ser medida excepcional. “Deve haver um respeito, precisamos preservar as instituições pátrias”, argumenta. Em 2018, o ministro autorizou a realização de buscas em endereços ligados ao ao então senador Aécio Neves, mas não no Congresso. “Me pediram buscas no Senado e eu não deferi, porque entendi que havia outros meios”, justifica.
A proposta em debate no Congresso que acaba com a benesse é de autoria do senador Alvaro Dias, do Podemos. Ele protocolou a proposta em 2013 e, só quatro anos depois, o texto foi aprovado. O parlamentar propunha extinguir completamente o privilégio, mas, durante a tramitação no Senado, os colegas inseriram um dispositivo que preservou o foro a apenas quatro autoridades: os presidentes da República, da Câmara, do Senado e do Supremo Tribunal Federal. Na Câmara, o texto passou pela comissão especial e pela CCJ e está pronto para ser votado em plenário. Como esse é um tema que desagrada à maioria dos parlamentares, o projeto não vai a votação. “A estratégia sempre foi de evitar colocar a PEC na ordem do dia”, lamenta Álvaro Dias. “Essa é uma medida muito importante para o país, tanto quanto a prisão após condenação em segunda instância. É certamente um dos temas que mais geram indignação na população porque o foro é o grande símbolo dos privilégios”, afirma o senador.
No último dia 9, um grupo de dez deputados federais de partidos como o Novo, o Podemos e o Cidadania apresentou ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia, um requerimento pedindo a inclusão da PEC na ordem do dia. Maia se comprometeu em dezembro de 2019 a pautar a proposta no início deste ano, mas a pandemia e a pressão de parlamentares favoráveis à manutenção do foro especial contribuíram para o adiamento. O presidente da casa e um grupo de colegas defendem que o texto receba emendas para impedir que juízes de primeira instância determinem medidas como prisão, quebra de sigilo bancário e telefônico e mandados de busca e apreensão contra políticos com mandato, o que desidrataria o texto original.
Assim como a proposta de emenda à Constituição que prevê a prisão após condenação em segunda instância, o projeto que extingue o foro privilegiado conta com adversários de peso no Congresso, sobretudo entre parlamentares do Centrão. “A participação popular é fundamental para conseguirmos pautar a PEC. O cidadão tem que pressionar seu deputado, procurá-lo, pedir para que a proposta seja votada, isso é fundamental”, afirma a deputada Adriana Ventura, do Novo, coordenadora da Frente Parlamentar Mista contra a Corrupção. Será mais uma batalha difícil, com grandes chances de os velhos hábitos da política, que voltaram a dar as caras com força em Brasília, falarem mais alto.
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