Adriano Machado/Crusoé

A primeira boiada

Como secretário de Meio Ambiente de São Paulo, o hoje ministro Ricardo Salles beneficiou empresa da família de um deputado amigo
24.07.20

Quando foi comemorar a nomeação de Fábio Faria para o Ministério das Comunicações em uma badalada festa no Lago Sul, em Brasília, no mês passado, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, conhecia muito bem o terreno onde estava pisando. Como Crusoé revelou há uma semana, a portentosa casa cedida para o evento em junho e usada para uma série de encontros secretos entre as mais altas autoridades do país é bancada pela família do deputado Guilherme Mussi. Mais do que amigo de Salles, o dirigente do partido Progressistas é o principal responsável pela ascensão do ministro na vida pública. Foi Mussi quem indicou, ainda em 2016, o desconhecido advogado paulistano para comandar a pasta ambiental no governo de São Paulo, a estreia dele em um cargo executivo. Um gesto político que Salles tratou de recompensar tão logo assumiu o posto, quando tentou passar a sua primeira boiada, para usar a expressão adotada por ele próprio na famosa reunião ministerial de 22 de abril, ao defender que o governo aproveitasse a pandemia para tirar do papel medidas polêmicas sem o risco de ser criticado ou questionado judicialmente.

Documentos inéditos obtidos por Crusoé mostram que uma mineradora da família Mussi está entre as empresas que seriam beneficiadas pelas alterações feitas diretamente por Salles, em apenas quatro meses de gestão como secretário em São Paulo, no texto de um plano ambiental que havia sido elaborado e aprovado em órgãos técnicos ao longo de cinco anos. Todas as mudanças promovidas por ele flexibilizavam a proposta original para permitir a expansão industrial e minerária na várzea do Rio Tietê, incluindo os negócios da Indústrias Brasileiras de Artigos Refratários, a Ibar. A empresa é controlada pelo industrial Carlos Henrique Ferreira, pai de Guilherme Mussi, e tem duas fábricas na Grande São Paulo, além de campos de extração de minério na Bahia e no Ceará. Ferreira é quem costuma financiar os convescotes na casa secreta frequentada por Salles, onde uma SUV registrada em nome da Ibar estava estacionada na garagem na semana passada.

ReproduçãoReproduçãoO deputado Guilherme Mussi é “padrinho” e amigo do ministro
Classificadas pelo Ministério Público paulista como “manobras maliciosas e fraudulentas” para defender “interesses obscuros”, as alterações feitas clandestinamente por Salles no plano ambiental, em 2016, renderam ao ministro uma condenação por improbidade administrativa no fim de 2018. Ele recorreu da sentença e a decisão em segunda instância deve sair nas próximas semanas. As modificações foram feitas no gabinete do então secretário, sem nenhuma justificativa formal e sem discussão e aprovação nos órgãos técnicos, rito necessário antes de ir para votação no conselho estadual do meio ambiente, que acabou aprovando o texto adulterado com os mapas fraudados. O plano, contudo, foi suspenso pela Justiça estadual.

Todas as mudanças foram fruto de um lobby feito pela Federação das Indústrias de São Paulo, a Fiesp, que também foi condenada na mesma ação civil. Segundo a investigação, as alterações foram solicitadas por meio de anotações a caneta em post-it e em e-mails enviados por representantes da entidade presidida por Paulo Skaf a assessores de Salles. Na Fiesp, a ofensiva para rever regras mais restritivas na área de proteção ambiental foi conduzida pelo departamento de meio ambiente, que tinha como um dos dirigentes à época justamente o industrial Carlos Henrique Ferreira, pai do padrinho político e amigo do peito de Salles. Agora, um segundo inquérito aberto pelo MP paulista investiga se as empresas beneficiadas participaram da fraude. Um parecer da Promotoria obtido por Crusoé apresenta uma relação com o nome de 37 companhias tratadas em reunião da Fiesp com a secretaria de Salles. Na lista aparecem gigantes como a Suzano Papel e Celulose e a Gerdau, além, é claro, da Ibar.

A casa no Lago Sul bancada pela família Mussi: Salles esteve lá
A indicação de Salles para a Secretaria do Meio Ambiente, em julho de 2016, foi uma moeda de troca exigida por Guilherme Mussi do então governador Geraldo Alckmin, do PSDB, para colocar o PP, atual Progressistas, na coligação do tucano João Doria, que venceria naquele ano a eleição para prefeito da capital. À época, Salles estava filiado ao partido, que Mussi passou a controlar em São Paulo após a derrocada política de Paulo Maluf. Naquele período, os dois amigos circulavam juntos em festas abastadas na Bahia e em passeios de iate no litoral paulista. Dinheiro nunca faltou para o cacique do “novo PP”. Mussi já foi casado com uma das filhas do apresentador Silvio Santos e declarou gastos de 698 mil reais em espécie na sua primeira campanha, em 2010. Quatro anos depois, a mineradora do pai dele aplicou 2,9 milhões em dinheiro vivo em sua candidatura à reeleição, segundo registro da Justiça Eleitoral.

O plano frustrado de Salles em 2016 parece uma versão regional da polêmica estratégia política exposta na fatídica reunião ministerial do dia 22 de abril, quando ele sugeriu que o governo Jair Bolsonaro deveria aproveitar a “oportunidade” gerada pela pandemia do coronavírus, que atraiu toda a atenção da imprensa, para “ir passando a boiada”, flexibilizando normas ambientais que seriam alvo de críticas de ambientalistas e que poderiam ser contestadas na Justiça. “Tudo o que a gente faz é pau no Judiciário no dia seguinte”, disse Salles naquele dia, diante do presidente da República e dos colegas de Esplanada. A julgar pela “primeira boiada” em São Paulo, a condenação que ele sofreu na Justiça estadual não surtiu efeito.

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