MarioSabino

Naya Rivera e o Príncipe Submarino

17.07.20

Quase morri afogado quando tinha quatro anos. Havíamos acabado de chegar a São José do Rio Preto, cidade natal do meu pai, no interior de São Paulo, e pouco depois já estávamos no Automóvel Clube, que era (ou é) um dos principais clubes de lá, juntamente com o Monte Líbano, ao qual também tínhamos acesso. Acompanhada dos três filhos, minha mãe foi para a área das piscinas. Lembro que cheguei decidido a pular na piscina maior, provavelmente inspirado por algum personagem de desenho animado, sei lá, talvez Namor, o Príncipe Submarino. Não recordo os detalhes, mas a minha decisão era inarredável. Aproveitei que minha mãe se afastara um pouco com os meus irmãos, ambos mais novos do que eu, tirei o tênis, corri em direção à piscina e pulei.

Afundei, sem ter prendido o fôlego, e continuei afundando enquanto me debatia no azul. Havia um buraco negro no fundo da piscina. Parecia ser uma garagem da qual eu me aproximava e aproximava. “Não posso entrar na garagem”, pensava. A minha visão já escurecia, quando fui puxado pelos cabelos que começariam a escassear dali a catorze anos. Um menino de onze, doze anos, tentava me salvar da maneira que podia. Mas ele não tinha força suficiente para me segurar por muito tempo, enquanto gritavam por socorro — eu emergia e submergia, sem tempo para respirar o bastante. A visão da garagem ia e voltava, até que um funcionário do clube me tirou da piscina. Não cheguei a perder os sentidos, mas entrei em estado de torpor. Cancelei da memória o resto da viagem, apenas sei que ela foi encurtada por causa do incidente. Só entraria outra vez numa piscina aos dez anos.

A garagem do fundo da piscina do Automóvel Clube de São José do Rio Preto ressurgiu para me assombrar com a notícia do afogamento da cantora e atriz americana Naya Rivera, num lago da Califórnia. Eu nunca ouvira falar no seu nome, jamais assisti a um episódio da série Glee, da qual era uma das protagonistas, nem conheço qualquer música cantada por ela. Mas Naya permanecerá afundando comigo até que eu seja salvo a cada vez da lembrança do meu quase afogamento.

As Moiras teceram meticulosamente a morte dela. Naya alugou um barco no lago Piru, na Califórnia, para passear com o filho de quatro anos, Josey, a mesma idade que eu tinha quando pulei na piscina do Automóvel Clube de São José do Rio Preto. Só ela e ele, como está escrito na última postagem da cantora e atriz nas redes sociais: Just the Two of Us, título de um rap de Eminem. A música narra a história de um homem que mata a ex-mulher, depois da guerra do divórcio, e joga o corpo dela num lago. O ato final é precedido pela conversa doce do homem com o seu filho pequeno, que nada entende mas a tudo assiste. Lago e morte.

Na derradeira imagem de Naya, ela sai do carro e caminha em direção ao cais, com o menino que a segue. Três horas depois, Josey foi encontrado sozinho, dormindo no barco alugado, no meio do lago. Vestia o colete salva-vidas. Ele disse à polícia que a mãe estava na água e não voltou para o barco. Cinco dias depois, o corpo de Naya foi encontrado. As autoridades acreditam que ela nadava com o filho, quando foi apanhada por uma correnteza extremamente forte. Naya teria tido força suficiente para salvar Josey, mas não a si própria. Até o momento, é a hipótese que prevalece.

Enquanto afundo com Naya, imagino o seu desespero para extrair a última reserva de energia de cada célula sua, a fim de levar Josey para o barco. Nadar contra a correnteza traiçoeira, ao mesmo tempo que mantinha o menino colado ao seu corpo, preocupada em manter a cabeça dele fora d’água — e, uma vez alcançado o barco, içar Josey e, com o breve ar que lhe restava, ainda dizer que era para ele não sair do barco, que mamãe o amava e voltaria logo, antes de ser tragada para sempre, abandonando-se ao inevitável… Afundo, afundamos.

Emerjo pela mãos da biologia e a necessidade imperativa de preservação a que chamamos de amor. Muitos anos atrás, li Sexo e as Origens da Morte, do biólogo americano William R. Clark. A sua tese é a de que a única função dos seres pluricelulares é proteger o DNA que os construiu contra as ameaças exteriores. Seríamos, portanto, simples armaduras. Mas as células somáticas que compõem a proteção envelhecem e morrem, o que não é conveniente para o DNA que se quer imortal. É preciso ter outra armadura antes que o fim programado pela natureza ocorra. Como fazer? Associando-se a um DNA semelhante, por meio da reprodução sexuada de dois organismos pluricelulares da mesma espécie, e assim permanecer vivo em outras armaduras sucessivamente. O livro de William R. Clark é fascinante e o seu final foi aproveitado por mim num conto intitulado Não é Bem Assim, da coletânea O Antinarciso. Ele escreveu:

Quando completado o processo de morte, cada uma das células do nosso corpo estará morta, de acordo com os desígnios da natureza. Se nós tivermos cumprido a nossa parte, teremos passado o nosso DNA, empacotado em células reprodutoras, para a próxima geração. Este DNA talvez estará próximo a nosso leito de morte na forma de um filho ou de uma filha. O DNA contido em todas as células restantes do nosso corpo — nosso DNA somático — não terá mais nenhuma utilidade. Um ser humano é apenas um meio de a célula reprodutora fabricar outra célula reprodutora — assim como uma barata; assim como um repolho. Não é uma forma lisonjeira de nos explicarmos a nós mesmos. Precisamos desesperadamente ser mais do que veículo para o DNA, e ao menos transitoriamente o somos. Ainda assim as células somáticas morrerão ao final de cada geração sejam parte de uma asa de inseto ou do cérebro humano. Nós talvez venhamos a compreender a morte, mas não podemos mudar esse único, simples, fato: no grande desenho das coisas, não importa a mínima que essas células somáticas contenham tudo aquilo que há de mais caro para nós, a nossa habilidade para pensar, para sentir, para amar — para escrever ou ler estas palavras. Para o processo básico da vida, que é a transmissão de DNA de uma geração a outra, tudo isso é apenas som e fúria, significando certamente bem pouco, e muito possivelmente nada.

Onde alguns podem ver apenas frieza científica e ateísmo, eu enxergo replicação de vida, força, poesia. Crescei e multiplicai-vos: é o que estamos fazendo desde sempre, achando ou não que há um sentido transcendente para a nossa existência. Naya não teve um leito de morte como o descrito por Clark, o seu fim não foi aquele programado naturalmente, mas ela extraiu o máximo de energia de todas as suas células somáticas para salvar o seu filho — e permanecer viva por meio do DNA de Josey, como determinado pela natureza. Eu fui resgatado da piscina do Automóvel Clube de São José do Rio Preto por obra de células somáticas de um DNA solidário. E permaneço vivo para agradecer finalmente ao salvador hoje sessentão, na esperança de que o meu quase afogamento tenha sido uma boa história repassada aos seres pluricelulares que ele gerou e o cercam.

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