MarioSabino

Você, eu e a baleia sem cauda

10.07.20

O meu cãozinho Napoléon, exemplo de máquina de amar produzida por meio de cruzamentos genéticos ao longo de séculos, está há quase quatro meses no hotelzinho onde costuma ficar quando viajo. Em meio a afazeres domésticos e profissionais, isolado que estou, não conseguiria cuidar dele e passeá-lo como se deve (pertenço ao grupo de maior risco). Ele está mais feliz lá do que comigo. Quando vai para o hotelzinho, Napoléon tira férias de mim, o que eu também faria se pudesse.

Não sou particularmente entusiasta de animais de estimação. Prefiro os selvagens, como leões e elefantes. Talvez um dia faça um safári, mas os documentários do Animal Planet já satisfazem o meu gosto por esses bichos. Fascina-me ver leões caçando em grupo, embora sempre torça pelos búfalos desgarrados e gazelas distraídas, naquela tendência cultural de ficar do lado dos mais fracos nas lutas. Leões são expressão de uma tragédia, no sentido grego. O Destino os condenou ao topo da cadeia alimentar animal, o que significa cumprir apenas o papel de carrascos. Para mim, há algo de triste e catártico nisso. Em oposição, eu me amarro em elefantes — africanos, em especial –, por serem naturalmente os seres mais gentis e solidários da Terra. Talvez sejam os primeiros em inteligência emocional. É preciso irritá-los muito para que reajam a provocações. Tanto que há coisa de 25 anos, mais ou menos, chamou atenção o fato de elefantes jovens estarem se comportando de maneira violenta na África, como se organizados em gangue. Consta que os mais velhos lhes deram uma puxada de orelha — ou de tromba, melhor dizendo. Ser elefante não admite bancar o personagem de West Side Story. Hoje, os rebeldes de então devem estar ensinando a lição aos garotos da manada. Várias pessoas têm fotos dos filhos como fundo de tela do computador. Eu tenho um elefante, com uma girafa ao fundo. É bem mais tranquilizador.

Nesta semana, contudo, o que me comoveu mesmo foi uma baleia que recebeu o nome de Codamozza (“cauda cortada”, em italiano), como informa o jornal La Repubblica, que publicou um vídeo protagonizado por ela. Codamozza foi avistada pela primeira vez em 1996, quando ainda conservava uma parte da cauda; no final de 2019, foi-se o resto. Provavelmente, hélices de motores de barcos a aleijaram duas vezes. Codamozza não tem sorte, definitivamente, mas lhe sobra força de vontade. Sem cauda, essa baleia notável desenvolveu um jeito próprio de se locomover. Para nadar, ela realiza um movimento ondulatório com as costas e vai adiante graças apenas às barbatanas. É uma baleia que nada no estilo borboleta, portanto. É uma baleia que nada tem de literária, o reverso de Moby Dick.

O fato de não ter cauda reduz, obviamente, a sua capacidade de locomoção e busca por comida, mas Codamozza é capaz de cobrir grandes distâncias pelo Mediterrâneo. Fez há pouco uma viagem de mil quilômetros, a distância entre a Calábria, na ponta da Bota italiana, e um santuário de baleias na Ligúria, bem ao norte, na fronteira com a França. Está sendo monitorada por uma equipe especializada. Com a perda da segunda parte da cauda, aumentou a preocupação com Codamozza. “Parece muito magra e nada muito próximo à costa, arriscando-se a sofrer outros acidentes”, disse o veterinário Sandro Mazzariol ao La Repubblica. A esperança é que consiga alimentar-se melhor no santuário.

A história de Codamozza seria tocante em qualquer momento, mas adquire mais pungência agora que todos estamos como baleias sem caudas, tentando nos mover de alguma forma nesta quarentena interminável, em viagens interiores, inclusive. Seremos capazes de nos adaptar no curto prazo a um nado borboleta, para prosseguir vivendo como antes, ou de modo parecido? A vida só é projetável no curto prazo, nossa única certeza, com o perdão da platitude. É preciso, assim, que sejamos capazes.

Codamozza que estou, obrigo-me a voltar aos muitos leões do meu cotidiano, esperando a solidariedade dos poucos elefantes que nele existem e um dia rever Napoléon.

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