Reprodução/redes sociaisWitzel, Doria e Ibaneis: eles fecharam na hora certa, mas estão reabrindo na hora errada

Sócios no desastre

Para além da lambança no trato das verbas para reduzir os danos da Covid-19, os governos estaduais erram ao ceder à pressão para flexibilizar o isolamento no momento mais crítico
10.07.20

As cenas de bares lotados no último fim de semana no Leblon talvez desapareçam em breve na imprevisível timeline da epidemia brasileira. Mas as aglomerações de pessoas sem máscaras no auge da crise, flagradas no bairro da zona sul do Rio e em tantos outros cantos do país, deixarão sequelas difíceis de apagar. Governantes que decretaram logo no início medidas rígidas de isolamento social para tentar frear o avanço do coronavírus, amparados por critérios técnicos e científicos, agora ignoram fatos ou retorcem dados para justificar uma arriscada reabertura das atividades, como o comércio boêmio da capital fluminense. Cederam a pressões de setores econômicos e ao temor do impacto da quarentena prolongada nas eleições deste ano. As consequências disso já são visíveis no aumento da demanda por leitos hospitalares e na escalada de mortes por Covid-19 em diferentes regiões do Brasil.

No Distrito Federal, a guinada retórica e prática não teve disfarce. Pioneiro nas ações de distanciamento social, adotadas em março, o governador Ibaneis Rocha, do MDB, admitiu que iniciou a flexibilização da quarentena porque “as pessoas já não aguentam mais” ficar em casa. “É muito melhor fazer uma abertura coordenada, fiscalizada, com exigências, do que você viver na ilusão de que vai conseguir trancafiar as pessoas dentro de casa por todo esse período”, disse o emedebista no mês passado. No início de abril, quando o comércio de Brasília estava fechado, Ibaneis defendia o confinamento como forma de conter a transmissão da doença e poupar vidas. A expectativa dele era que a curva de contágio atingisse seu pico no fim daquele mês. Estava enganado. O recorde de mortes no DF se deu na última terça-feira, 7, justamente o dia da reabertura de academias, restaurantes e salões de beleza. Em 24 horas, foram registrados 41 óbitos. Após ser contestado na Justiça, o governador revogou o decreto no dia seguinte e adiou o plano de retomar as aulas nas escolas em agosto.

Recuos semelhantes também ocorreram no Sul e no Sudeste. Em Porto Alegre, por exemplo, a prefeitura determinou o fechamento do comércio e da indústria no fim de junho após o aumento no número de casos e de óbitos pela doença. Já são mais de 800 mortes em todo o território gaúcho, que parecia ter a situação sob controle. As restrições voltaram ao patamar de março. Por lá, o relaxamento também havia ocorrido devido ao “cansaço” do confinamento, sem nenhum respaldo científico, antes mesmo do pico histórico de internações por doenças respiratórias, que costuma ocorrer na 27ª semana epidemiológica, ou seja, entre 28 de junho e 4 de julho. “Como o isolamento aconteceu muito cedo, agora o estado enfrenta uma situação de cansaço. A população, as empresas, já não aceitam mais a paralisação. Agora, o risco é faltar leito de UTI no Rio Grande do Sul nas próximas semanas”, avalia João Gabbardo, que foi secretário-executivo do Ministério da Saúde na gestão do ex-ministro Luiz Henrique Mandetta.

Demitido do governo Bolsonaro após a queda de Mandetta, Gabbardo assumiu um cargo no comitê de crise do governo do tucano João Doria, em São Paulo, no dia do anúncio do plano de reabertura do estado, em maio. A iniciativa é criticada por especialistas, por ser considerada prematura e pela fragilidade dos critérios utilizados. No dia 1º de junho, 15 das 18 regiões paulistas, incluindo a capital, puderam liberar o retorno de algumas atividades, como escritórios e shoppings, ainda que com algumas normas de restrição. O resultado foi um aumento do número de contaminações, principalmente no interior, que já responde por 70% dos novos casos. Hoje, metade das regiões está na zona vermelha, de alerta máximo, com liberação apenas das atividades essenciais. Segundo Gabbardo, esse efeito já era esperado porque a epidemia chegou mais tarde ao interior e não representa risco porque a capacidade do sistema de saúde é compatível à demanda na atual evolução da doença no estado.

Ricardo Jayme/Agif/FolhapressRicardo Jayme/Agif/FolhapressMovimento em feira tradicional de Brasília: depois do libera-geral, o governo local teve que recuar
Desaceleração do número de casos, achatamento da curva e platô. Todas essas expressões têm sido repetidas como mantra nas últimas semanas pelas autoridades que estão empenhadas em flexibilizar a quarentena. Mas para os pesquisadores nenhum dos principais centros urbanos do país atingiu o conjunto de critérios recomendados pela Organização Mundial da Saúde antes do início da reabertura. O principal deles é a redução sustentada, por ao menos três semanas, do número de infecções, internações e mortes. “No Brasil, todas as medidas de relaxamento foram tomadas sem cumprir as recomendações. Em vez de seguirmos exemplos como o da Alemanha, preferimos copiar a Índia, os Estados Unidos e o Chile. A consequência disso foi a interiorização da epidemia nos estados”, afirma o professor Domingos Alves, do Laboratório de Inteligência em Saúde da Faculdade de Medicina da USP.

A redução permanente do número de casos estava na primeira versão do plano de reabertura de São Paulo, apresentado em março, mas foi retirada por pressão de empresários e, principalmente, de prefeitos que buscam a reeleição no fim do ano, como o tucano Bruno Covas. Aliados de Doria dizem que foi o prefeito da capital quem pressionou o governador a acelerar o processo de flexibilização, com receio de que a exploração política da crise econômica desencadeada pela quarentena afetasse seu desempenho nas urnas. “Com o Bolsonaro atacando o isolamento de um lado e o prefeito pressionando pela abertura de outro, Doria ficou com o receio de amargar sozinho o ônus de quem defende fechar tudo. Por isso, virou esse atropelo”, disse um correligionário do governador. Doria já autorizou o retorno dos jogos do Campeonato Paulista de futebol, sem torcida, para o fim deste mês. Na capital, os parques serão reabertos semana que vem.

A falta de coordenação central no processo de retomada das atividades nos estados foi criticada nesta semana pelo ex-ministro Nelson Teich em artigo e entrevistas. Segundo ele, as ações têm sido adotadas de forma “confusa” e “intempestiva” e “baseadas em uma estratégia de tentativa e erro, que é ineficiente e não gera aprendizado”. A responsabilidade é do presidente Jair Bolsonaro, que testou positivo para a Covid-19, mas também dos governadores, que não se articulam entre si.

Pesquisadores já alertam que a disseminação da Covid-19 pelo interior dos estados, provocada pela abertura das regiões metropolitanas, pode resultar no chamado “efeito bumerangue”, que seria um aumento do fluxo de pacientes em estado grave para se tratar nas capitais, por falta de estrutura hospitalar nos rincões. Coordenador do comitê científico do Consórcio do Nordeste, o neurocientista Miguel Nicolelis destacou que esse já é um risco real em todas as capitais nordestinas, principalmente em João Pessoa, Maceió, Salvador e São Luís, e que o problema deve se reproduzir pelo resto do país. Em São Paulo, por exemplo, pacientes de Campinas deverão ser transferidos para um hospital de campanha da capital por falta de leitos exclusivos para Covid-19 na região do interior paulista.

Reprodução/TV GloboReprodução/TV GloboAglomeração em bar no Leblon, no Rio: como se não houvesse amanhã
Quando a pandemia aportou no Brasil, em fevereiro, o mundo ainda estava tentando decifrar o comportamento do coronavírus e traçar a melhor forma de contê-lo e o jeito mais eficaz de retomar a vida normal com segurança. Hoje, há um universo de dados atualizados praticamente em tempo real, com uma série de exemplos que deram certo e errado. Membro do Observatório Covid-19 BR, formado por um grupo de pesquisadores de diferentes áreas que monitoram a evolução da doença no país, a bióloga Tatiana Portella chama atenção para o fato de que nenhum governante brasileiro está considerando um critério mundialmente utilizado para decidir pela reabertura das atividades. Trata-se do número efetivo de reprodução, o R0, que mede o potencial de transmissão do vírus. Se esse índice é maior do que 1, isso significa que um infectado contagia mais do que uma pessoa e, obviamente, que o número de casos ainda vai aumentar. “Nós ainda não tivemos nenhuma grande cidade afetada com esse número abaixo de 1 por tempo prolongado. Isso mostra que as decisões de abertura têm sido mais políticas, por questões econômicas, do que com base na ciência”, afirma.

Segundo um modelo matemático de previsão de casos e mortes desenvolvido por um grupo de professores da PUC-Rio, apenas quatro estados têm, neste momento, uma taxa de reprodução abaixo de 1. A previsão é que o número total de mortes por Covid-19 no país chegue a 83,5 mil no dia 21 de julho. As curvas projetadas são altas tanto para São Paulo quanto para o Rio, os dois estados mais populosos do país.

Para que a vida pudesse voltar ao normal de forma segura, seria preciso que já houvesse uma vacina disponível contra a Covid-19, o que só deve ocorrer no primeiro semestre do ano que vem. Mais do que as contratações de leitos emergenciais e de equipamentos como respiradores, muitas das quais envolvidas em suspeitas de desvio de dinheiro, como mostrou Crusoé em diferentes reportagens, o país precisa investir em um amplo programa de testagem e um rigoroso plano de rastreamento das pessoas que tiveram algum contato com infectado, como fizeram os países que viraram referência na Europa e na Ásia.

“Como estamos sob pressão econômica, vão encontrar qualquer desculpa, algum viés nos dados, para liberar a reabertura. As consequências daquelas cenas que vimos nas ruas do Rio de Janeiro no último fim de semana, nós vamos ver daqui a dez dias nas estatísticas. Aquilo é impensável, é um genocídio”, afirma o médico sanitarista Gonzalo Vecina Neto, ex-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa. As agressões testemunhadas contra os fiscais da pandemia no Rio demonstram que não dá para confiar no bom senso das pessoas. A falta dele, seja nas ruas, seja em gabinetes, é uma epidemia para a qual nunca haverá vacina, ao que parece.

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