Golpe no Planalto

Prometendo meio trilhão de dólares para o Brasil, um conhecido golpe da internet fez o gabinete presidencial mobilizar tempo e energia de técnicos para concluir o óbvio: a história não passava de uma fraude
10.07.20

Não é segredo para ninguém que a pandemia abriu um rombo nos cofres públicos. Em meio à crise, o Ministério da Economia teve de envidar esforços para analisar o que seria uma doação generosa de fundos ao governo brasileiro: 500 bilhões de dólares. A oferta chegou por meio de várias cartas enviadas para o presidente Jair Bolsonaro. A história estava toda contada lá. O dinheiro, em poder de fundações internacionais, teria origem em polpudas heranças esquecidas nos Estados Unidos. O gabinete do presidente não só acreditou como mandou que técnicos do governo avaliassem a proposta.

Propostas mirabolantes como essa são conhecidas de quase todos que têm uma caixa de e-mail. Elas chegam de várias partes do mundo e variam de personagens, mas o enredo de fundo é quase sempre o mesmo: supostos príncipes africanos, xeiques, filhos de multimilionários e altos executivos de grandes empresas se apresentam oferecendo verdadeiras fortunas ao destinatário. Alguns dos generosos “doadores” exigem contrapartidas. Para outros, basta que o destinatário responda dizendo que topa a empreitada. O dinheiro, por óbvio, jamais vai aparecer na conta dos interessados – tudo não passa de uma fraude.

No caso da oferta feita ao governo brasileiro, porém, o gabinete pessoal de Jair Bolsonaro levou a ideia a sério. Mandou que as cartas, em inglês, fossem traduzidas para o português e as remeteu para a equipe do ministro da Economia, Paulo Guedes. Uma das cartas, sob o timbre de uma certa Arcode Europa, dizia que o dinheiro poderia ser usado “para financiar grandes projetos de capital como infraestrutura rodoviária e ferroviária, coleta e tratamento de resíduos, produção de eletricidade, construção de hospitais modernos e equipados, construção de habitações, construção de prédios administrativos, turismo etc”. Outras correspondências, todas integrantes de um mesmo pacote e enviadas por um mesmo intermediário, aparecem assinadas por representantes de uma tal Chardet Foundation.

Isac Nóbrega/PRIsac Nóbrega/PRBolsonaro e Braga Netto, chefe da Casa Civil, receberam as correspondências
Para efetivar a transação, bastaria que o governo brasileiro desse uma tal “garantia soberana” como contrapartida para a liberação da bolada e topasse bancar uma viagem dos dirigentes da fundação ao Brasil, para assinar o contrato – com tudo pago, claro, desde os bilhetes aéreos até um “carro com motorista” e “hotel 4 ou 5 estrelas”. A obscura fundação tem sede no Reino Unido. Ao governo britânico, seu presidente, que se identifica como Patrick Meyer, declara desde 2011 que a empresa teria ativos de 10 milhões de libras.

Um dos documentos submetidos ao governo detalha o mecanismo a ser adotado para a remessa do dinheiro ao Brasil. Uma vez expedida a “carta de garantia”, a ser depositada no Banco Central, o banco do operador financeiro dos tais “fundos de herança” seria comunicado e, então, liberaria a fortuna. O intermediário das propostas é um brasileiro de nome Alexandre Pereira. Foi ele quem enviou as cartas para o Planalto, apresentando-se como representante dos investidores estrangeiros. À diferença de muitas correspondências que aportam diariamente no Planalto, as de Pereira mereceram atenção. Após enviar as cartas, ele escreveu novamente pedindo pressa na análise da oferta, sob pena de os fundos serem direcionados para o México.

Do meio trilhão de dólares que o Brasil receberia, uma parcela teria que voltar para uma das fundações envolvidas e outra caberia ao intermediário. Por mensagem, Pereira disse o seguinte a Crusoé: “É uma grande oportunidade que o Brasil está recebendo! Estou buscando captação para um novo tempo para o Brasil”. “Não tem taxas, nem pagamentos, é sem dívidas; como um fundo perdido. Não tem custos!”, prosseguiu.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéAcionada pelo Planalto, a equipe de Guedes teve que levar o assunto a sério
A primeira carta chegou ao Planalto no dia 3 de junho e foi logo encaminhada pelo gabinete pessoal do presidente da República para o ministério de Paulo Guedes. Entre idas e vindas, o papelório circulou entre o Planalto e a Economia por um mês inteiro. A equipe econômica, depois de análises feitas por diferentes funcionários, teve que preparar uma “nota técnica” para concluir o óbvio: não valia a pena embarcar na empreitada porque nada ali parecia crível.

“A alegação é feita por empresa desconhecida desta secretaria, em linguagem incompatível com a prática de negócios do setor, sem vinculação a instituição financeira de porte ou especificação de fontes críveis de recursos, e sem intermediação ou validação por qualquer entidade com conhecimento e experiência em projetos no Brasil”, diz um dos documentos anexados ao processo, assinado por Breno Zaban, diretor de Controle e Normas da Secretaria de Desenvolvimento da Infraestrutura.

No expediente que pôs fim ao caso, Vitor Lima de Magalhães, especialista da Coordenação-Geral de Financiamentos Externos do Ministério da Economia, talvez por saber que estava a fazer uma análise a partir de documentos enviados pelo Planalto, ainda fez um esforço para não tratar a proposta como coisa de lunáticos ou golpistas: “Tendo em vista as informações disponíveis é importante verificar as propostas oferecidas e indagar se tais propostas oferecem retornos desproporcionais aos riscos envolvidos, mecanismos de compliance e observância das práticas comumente adotadas, conforme advertência emanada por instituições fiscalizadoras”.

No documento, Magalhães cita um alerta do FBI, a polícia federal americana, apontando fraudes digitais em ofertas de grandes somas de dinheiro por meio de cartas de crédito. Na sequência, ele propôs ao ministério que desse a história por encerrada. Alexandre Pereira, o intermediário, não perdeu a esperança: ele diz que ainda espera uma resposta de Jair Bolsonaro.

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