Bolsonaro emula Lula: estratégia, no entanto, é arriscada. Em 2006, o petista contou com economia mundial a favor

Receita lulista

Na crise, o governo repete a estratégia petista durante o mensalão e abre o cofre para tentar conquistar o eleitorado de baixa renda pelo bolso
03.07.20

Em um vídeo publicado nas redes sociais do presidente Jair Bolsonaro, uma senhora humilde, que seria moradora do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, aparece ao lado do marido enfileirando elogios ao chefe do Planalto. Vestindo uma roupa maltrapilha, mas com sorriso no rosto, ela agradece o pagamento do auxílio emergencial e diz ser eleitora de Bolsonaro. “O tanto que ele está fazendo pelo povo, pela humanidade… 600 ‘conto’ por mês é brinquedo, menina?”. Nós aqui em casa é bem agradecido (sic).” Ao lado do esquete, o presidente escreveu: “De tudo, dentro do possível, o governo está fazendo para garantir a mínima dignidade do povo”. A publicação de mazelas sociais sempre foi uma raridade nas redes do presidente da República, que destina prioritariamente o espaço a ataques a adversários e a mensagens destinadas a insuflar a militância. As crises política, econômica e sanitária sem precedentes, entretanto, obrigaram Bolsonaro, um crítico contumaz de programas de transferência de renda, a redirecionar seu foco.

Depois de anunciar com pompa na terça-feira, 30, a prorrogação por dois meses do auxílio emergencial, classificado pelo presidente de “o maior projeto social do mundo”, o governo prepara o Renda Brasil, a fim de reunir e ampliar projetos já existentes. A estratégia de sobrevivência política adotada pelo presidente é conhecida dos brasileiros. Em 2005, acossado pelo escândalo do mensalão, Lula turbinou o Bolsa Família e avançou na conquista dos corações do eleitorado mais pobre, enquanto sua popularidade entre a classe média se deteriorava. A medida, embora não tenha sido isolada, foi determinante para que Lula saísse do furacão causado pela denúncia de Roberto Jefferson e acabasse reeleito em 2006. O receituário lulista agora é seguido à risca pelo governo Bolsonaro.

Como Lula, Bolsonaro flerta com o público de baixa renda por conveniência e cálculo político. Também como o petista, Bolsonaro perdeu sustentação na classe média e entre os mais ricos, responsáveis pelo rugir das panelas nas varandas e janelas em meio à quarentena, e, como consequência do auxílio emergencial de 600 reais, começou a seduzir eleitores da base da pirâmide social. Em 2019, os mais pobres equivaliam a 32% do grupo que considerava o governo ótimo ou bom. Hoje o público de baixa renda passou a constituir 52% de seus apoiadores. Na política, tal como Lula, que atraiu o tão criticado PMDB, hoje MDB, Bolsonaro também abraçou o fisiologismo, marca indelével da velha política contra a qual sempre vociferou. O balcão de negócios conta com um freguês preferencial, o Centrão, mas a caixa registradora de verbas e cargos está pronta para receber quem quiser participar do velho e surrado toma lá dá cá. Aos neoaliados já avisou: as torneiras serão abertas preferencialmente para atender às camadas mais carentes da população. Como a tática rende votos também para integrantes da base de apoio do governo, todos se irmanaram em torno do mesmo objetivo.

DivulgaçãoDivulgaçãoEm solenidade ao lado de Maia e Alcolumbre, Bolsonaro prorroga auxílio
O atual presidente não mudou suas convicções, claro. Move-se pelo pragmatismo e mais um pouco para permanecer no cargo e, quem sabe, ainda beliscar a reeleição. Em 2017, Bolsonaro dizia que, “para ser candidato a presidente, tem de falar que vai ampliar o Bolsa Família”. E emendou: “Então vote em outro candidato”. Da tribuna da Câmara, ele já disse que o programa era moeda de troca “para compra de votos” e o classificou como “um projeto para tirar dinheiro de quem produz e dá-lo a quem se acomoda, para que use seu título de eleitor e mantenha quem está no poder”. Mais recentemente, quando eclodiu a pandemia, todos lembram, o governo queria apenas três parcelas de 200 reais aos menos favorecidos. O valor só foi triplicado depois da pressão do Congresso. Agora, seguindo o roteiro da velha política, o capitão da reserva resolveu apagar o que disse.

Com a extensão do benefício até agosto, o governo ganha tempo para preparar o programa Renda Brasil, sua nova cartada. Antes resistente a aumentar o gasto público, o ministro da Economia, Paulo Guedes, hoje atua com sua equipe na formatação da proposta, que deve ser enviada ao Congresso em cerca de dois meses. Ele classifica a iniciativa como uma “coluna social” e “uma rampa de ascensão”. “Qualquer brasileiro que cair, recebe o Renda Brasil. Mas ele tem o direito de se levantar e de recomeçar a trabalhar a qualquer salário que ele consiga, até chegar de novo à CLT”, explicou. O benefício deve ficar em torno de 300 reais, pouco mais do que os 205 reais previstos hoje como teto do Bolsa Família.

O governo estuda a fusão do auxílio com outros projetos e até a extinção de programas pouco eficientes. Um deles é o salário-família, que paga 48 reais por filho de famílias com renda de até 1,4 mil reais. O seguro-defeso e o abono também podem ser absorvidos na repaginação do Bolsa Família. Ao mudar o nome do programa de maior sucesso dos governos petistas, Jair Bolsonaro tenta criar uma marca própria, enquanto atua para sepultar a vitrine dos arquirrivais, como fez o PT com o governo do tucano Fernando Henrique Cardoso. Outra iniciativa de cunho social em gestação é o programa Verde e Amarelo, que vai beneficiar cerca de 38 milhões de trabalhadores informais, invisíveis até a crise do coronavírus, como gosta de frisar o governo. A ideia é criar mecanismos de contratação com menos encargos.

Adriano Machado/CRUSOEAdriano Machado/CRUSOEGuedes não queria nem ouvir falar em benefício permanente. Agora, tece loas
No Congresso, a criação de uma renda básica permanente encontra eco do Centrão ao PSDB. O deputado federal João Campos, do PSB de Pernambuco, colhe assinaturas para criar a Frente Parlamentar da Renda Básica Universal, enquanto pipocam na casa diferentes projetos de lei que preveem o pagamento de um benefício fixo a um número maior de cidadãos do que o compreendido hoje pelo Bolsa Família. No Senado, José Serra, do PSDB, Randolfe Rodrigues, da Rede, e Eduardo Braga, do MDB, protocolaram diversas propostas com a mesma ideia: a de criar um benefício perene. Embora o plano do Renda Brasil de Guedes e Bolsonaro preveja o pagamento de não mais que 300 reais, no Congresso é forte o movimento para que os 600 reais do benefício emergencial sejam mantidos no pós-crise.

O desafio é buscar meios de financiar um benefício mais amplo por tempo indeterminado. O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, apoia a criação de uma renda mínima contínua, mas diz que é preciso fazer um amplo debate para buscar formas de bancá-la. O problema é que esse debate coloca o dedo em feridas antigas, como a necessidade de revisão de incentivos fiscais. Este ano, o governo vai abrir mão de mais de 330 bilhões de reais em arrecadação, para beneficiar setores econômicos. Na corrida eleitoral, Bolsonaro comprometeu-se a reduzir a farra de isenções, mas, contrariando mais uma promessa de campanha, ampliou a conta, criando mais incentivos ao empresariado. Se o governo e o Congresso conseguirem mexer nesse vespeiro, a revisão de benefícios tributários poderia ajudar a financiar a nova política de transferência de renda permanente. “Defendemos que seja um passo na direção de uma renda básica. É possível aperfeiçoar o que existe, fazendo com que programas de transferência abranjam mais pessoas”, argumenta Leandro Teodoro Ferreira, que preside a Rede Brasileira de Renda Básica, uma organização que reúne acadêmicos e profissionais de políticas sociais.

A reedição da cartilha de Lula, no entanto, embute riscos para Bolsonaro. A estratégia funcionou para o petista, mas o atual presidente não conta, por exemplo, com a economia a seu favor. Lá atrás, as exportações estavam a todo vapor, o real estava valorizado e a economia mundial embicava para cima. Os bons auspícios internacionais contribuíram para que o país crescesse 2,3% em 2005 e 4,2% em 2006, completando um mandato inteiro de expansão. Agora, a crise econômica gerada pela Covid-19, com previsão de queda do PIB de cerca de 9% este ano, não será aliada do governo. Bolsonaro governa sob a pior recessão do século.

Na política, o Centrão é um agrupamento de partidos mais volúvel do que o PMDB que Lula incorporou em 2006 a sua base de apoio. E a oposição como um todo não tentou o impeachment porque temia “povo na rua” e por achar que derrotaria um Lula cambaleante nas eleições. Hoje, só o PT e setores do PSDB planejam deixar Bolsonaro “sangrar” para que chegue anêmico em 2022. As demais forças estão à espreita, aguardando apenas o melhor momento para colocar o tema na rua e na agenda do Congresso. No que tange à crônica política-policial, Lula, depois do escândalo do mensalão, já tinha passado pelo seu momento mais crítico, o que ainda não ocorreu com Jair Bolsonaro. Que o digam as investigações em curso no Supremo Tribunal Federal e no Ministério Público do Rio.

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