Gabriela Biló/Estadão Conteúdo

PGR contra a Lava Jato

Augusto Aras quer ter controle sobre as operações anticorrupção. Procuradores reagem e denunciam um movimento do procurador-geral para engessá-los
03.07.20

Em 2013, o então subprocurador da República Augusto Aras relatava a amigos o temor de se tornar alvo de um atentado orquestrado por uma organização liderada por um policial militar que praticava crimes de estelionato e extorsão com ramificações dentro do Judiciário da Bahia, sua terra natal. Desconsiderado o fato óbvio de que estava agindo em causa própria, uma vez que o motivo da desavença era a atuação do seu escritório de advocacia, Aras acionou a instituição que hoje chefia para tentar investir contra o bando que lhe metia medo. Ainda naquele ano, o procurador encaminhou um ofício para a também subprocuradora Lindôra Araújo pedindo uma investigação sobre os fatos. Sua colega abriu a apuração de imediato e, logo em seguida, declarou-se suspeita para conduzir o caso porque havia recebido várias ligações de um dos investigados. Seis anos depois, em novembro de 2019, com Aras já na cadeira de procurador-geral da República, escolhido fora da lista tríplice pelo presidente Jair Bolsonaro, o antigo pedido deu origem a uma operação, a Faroeste, cujo alvo era um esquema de venda de sentenças no Tribunal de Justiça da Bahia. No dia da deflagração, Lindôra Araújo voltou atrás na manifestação de suspeição e retomou o controle da investigação.

O caso ilustra bem a antiga relação entre Aras e Lindôra e ajuda a entender por que, agora, ela tem sido a fiel escudeira do chefe do Ministério Público Federal. No último dia 24, investida do poder de braço-direito do procurador-geral, Lindôra foi até a sede da Lava Jato em Curitiba para tentar copiar todos os bancos de dados amealhados pela força-tarefa ao longo de seis anos de investigação. A tentativa de acesso aos arquivos, muitos deles sigilosos e obtidos mediante autorização da Justiça, seguida da negativa da equipe coordenada por Deltan Dallagnol, foi o estopim de uma turbulenta crise interna no Ministério Público Federal, que resultou no pedido de demissão dos três procuradores do grupo de trabalho da Lava Jato na PGR e em uma intensa troca de acusações. Na visão de muitos procuradores, a ação configura uma tentativa de Aras de manietar a operação que desarticulou o maior esquema de corrupção da história do Brasil. A tensão aumentou após a descoberta de que, em maio, a equipe de Aras já havia solicitado cópia integral dos bancos de dados não só a Curitiba, mas também às equipes da Lava Jato em São Paulo e no Rio de Janeiro. Ou seja: o procurador-geral queria acesso a tudo da operação. A situação uniu as forças-tarefas paranaense, paulista e fluminense, e também a da Operação Greenfield, no Distrito Federal. Elas divulgaram uma nota com um recado para a cúpula do MPF sobre a perda de confiança em Lindôra Araújo, que deveria ser a interlocutora dos grupos com a PGR e não uma adversária.

A crise trouxe para a cena um projeto antigo do Ministério Público Federal que Augusto Aras resolveu encampar: a criação de um departamento ligado ao gabinete do procurador-geral para centralizar as investigações de combate à corrupção em todo o país. O plano, surgido em 2013, estava dormitando nos escaninhos da Procuradoria, mas sob Aras ganhou a ribalta e passou a ser objeto de esforços múltiplos para tirá-lo do papel. O tal órgão ganhou até um pomposo nome: Unidade Nacional de Combate à Corrupção e Crime Organizado, ou simplesmente Unac. Até recentemente, a ideia era bem vista pela categoria. Mas seu ressurgimento pelas mãos de Aras, somado ao repentino do procurador-geral em ter acesso a tudo o que a Lava Jato reuniu até hoje, acendeu um sinal amarelo. A Unac passou a ser vista com desconfiança. Seria um caminho para Aras ter controle sobre os casos criminais de maior relevância.

O plano passou a ser atacado até por procuradores que são críticos da autonomia alcançada pela Lava Jato. “O foro do procurador-geral da República é o Supremo. O que justifica ele querer tudo? É um cheque em branco. A possibilidade de que isso seja usado de forma abusiva é enorme”, disse a Crusoé um subprocurador que pediu para não ser identificado. Em ofício encaminhado à Greenfield, o vice-procurador-geral, Humberto Jacques, que ao lado de Lindôra forma o primeiro time de Aras, afirmou que o modelo das atuais forças-tarefas está esgotado e que elas são “desagregadoras” e “incompatíveis” com a natureza do trabalho da Procuradoria. No mesmo ofício, Jaques comunicou a redução da força-tarefa a apenas um procurador com dedicação exclusiva. Ou seja: além da ofensiva para obter documentos e do esforço para centralizar na PGR as investigações, descobriu-se que há também um movimento para diminuir o tamanho das atuais equipes de investigação.

Gil Ferreira/CNJGil Ferreira/CNJA subprocuradora-geral Lindôra Araújo foi a Curitiba buscar os arquivos
O compartilhamento de informações entre as Procuradorias nos estados e a PGR são comuns e, em especial, na Lava Jato, resultou nas operações e denúncias contra políticos graúdos até então nunca alcançados pela Justiça. Mas em todas as ocasiões os pedidos foram feitos via Judiciário, com a especificação do caso. Aras, no entendimento de procuradores ouvidos por Crusoé, foi genérico e não indicou os procedimentos aos quais pretende ter acesso. Pelo contrário, queria tudo. No caso de Curitiba, a grita foi maior porque ele enviou Lindôra, sua escudeira, para tentar “quase a fórceps”, como definiu um procurador, capturar os dados.

Nos bastidores, fontes da Procuradoria apontam o pedido de demissão dos três procuradores da Lava Jato na PGR como apenas mais um capítulo de uma crise que vem se agravando desde o pedido de demissão do ex-juiz Sergio Moro do Ministério da Justiça e Segurança Pública, em abril, e da consequente abertura de investigação sobre a suposta interferência do presidente Jair Bolsonaro na Polícia Federal. A suspeita é a de que Aras estaria atuando para blindar Bolsonaro. Um procurador contou que nos dias seguintes à saída de Moro, na esteira da crise causada pelas acusações do ex-juiz, Lindôra Araújo teria solicitado informações ao grupo sobre uma denúncia envolvendo o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia. Por trás do interesse estaria a desconfiança, por parte do Planalto, de que estaria em curso uma trama coordenada por Maia e por opositores do governo para aproveitar que Bolsonaro estava nas cordas e pavimentar o caminho do impeachment do presidente. O movimento causou estranheza. A relação interna azedou de vez quando procuradores do grupo chefiado por Lindôra externaram que as provas do inquérito aberto por Aras para apurar a denúncia de Moro indicavam a prática de advocacia administrativa por Bolsonaro na troca do comando da PF. Desde o começo da apuração, de acordo com relato desses procuradores, o PGR teria deixado claro que o destino do caso seria o arquivo. A discordância de parte da equipe não soou bem aos ouvidos do procurador-geral. Em paralelo, a retomada da negociação de um acordo delação premiada com o operador financeiro Rodrigo Tacla Durán, que há tempos promete revelar supostos pagamentos a um advogado amigo de Moro para ter facilidades na Lava Jato, foi vista como uma forma de Aras colocar o MPF na briga política entre o ex-juiz e o presidente da República. Os procuradores da Lava Jato na PGR foram contrários à proposta de delação pelo fato de Tacla Durán não apresentar provas consistentes nem fatos novos. O operador é réu em quatro processos no Brasil e fugiu para a Espanha em 2016, quando Moro expediu uma ordem de prisão contra ele.

Enquanto os dois casos se desenrolavam, ainda em maio, Aras encaminhou o ofício no dia 13 às forças-tarefas, requisitando cópia de todo o banco de dados no prazo de dez dias. No final do mesmo mês, Lindôra entrou em contato com o grupo coordenado por Deltan Dallagnol para agendar uma visita e acessar as informações. Após ser informada de que Dallagnol não estaria por lá naquela data, a viagem foi cancelada. Lindôra passou a desconfiar de que Deltan estava resistindo à ideia de recebê-la. Ela insistiu, e onze dias depois baixou em Curitiba. A atmosfera pesou. O clima era de interrogatório, segundo relatos obtidos por Crusoé. E não foi só pelo assunto de fundo. A subprocuradora teria reclamado até da obrigatoriedade de usar máscara e da necessidade de fazer cadastro na portaria do prédio. Ao longo da conversa, ela fez uma série de questionamentos. Um deles, sobre a negociação com Tacla Durán, que está sob sigilo, foi visto como uma tentativa de descobrir se os procuradores de Curitiba estavam recebendo informações vazadas de Brasília. Outra pergunta foi sobre supostos 1.450 casos que estariam parados na força-tarefa. Nesse momento ela teria citado o nome da corregedora nacional do Ministério Público Federal, Elizeta Paiva, dando a entender que a visita era um ato que poderia resultar na apuração de possíveis irregularidades nos trabalhos da força-tarefa. Já no fim da reunião, Lindôra informou que voltaria no dia seguinte, com uma equipe, para copiar os bancos de dados da Lava Jato. A confusão estava armada.

TSETSEHumberto Jacques, em nome da PGR: forças-tarefas são “desagregadoras”
Na quinta-feira, 25, quando retornou ao quartel-general da Lava Jato em Curitiba, ela logo foi informada pelos procuradores que eles haviam entrado em contato com a corregedora, que negou qualquer apuração em andamento. Lindôra alegou quebra de confiança e foi embora. Ficou no prédio da força-tarefa apenas um secretário da PGR que faria uma inspeção em equipamentos de informática. Ao final, ele disse não ter encontrado um “gravador de voz”. A procuradora-chefe do Paraná, Paula Thá, então, acionou a área responsável e achou o equipamento, que havia sido comprado para gravar ligações recebidos nos telefones dos procuradores e funcionários da força-tarefa. O motivo, afirmam os procuradores, eram as ameaças sofridas por eles no auge da operação, em 2015. Desconfiados de que poderiam ser alvo de uma busca e apreensão a pedido de Lindôra, os investigadores prepararam um ofício explicando a compra do aparelho e para qual fim era utilizado. Há tempos, opositores da Lava Jato alimentam a suspeita de que os procuradores de Curitiba tenham utilizado um aparato de interceptação telefônica clandestina no curso das investigações, o que é negado pela força-tarefa. Lindôra, a mando de Aras, estaria empenhada em descobrir se a história é verdadeira. A contenda ainda vai dar muito o que falar. Elizeta Paiva, a corregedora citada por Lindôra na primeira reunião com os procuradores, resolveu abrir uma sindicância para apurar as razões da visita. O procedimento também vai averiguar a existência dos supostos grampos.

Um mês antes de Lindôra Araújo requisitar os dados sigilosos da Lava Jato, outra investida da aliada de Aras já havia causado desconforto na força-tarefa do Rio de Janeiro. Em abril, ela procurou o grupo para sugerir o desbloqueio de uma conta na Suíça da família do empresário Jacob Barata Filho. Conhecido como o “Rei dos Ônibus”, ele foi preso duas vezes em 2017, acusado de financiar o esquema de corrupção comandado pelo ex-governador Sérgio Cabral com dinheiro da federação das empresas de transporte, a Fetranspor. Nas duas ocasiões, o empresário foi solto por decisão de Gilmar Mendes. O ministro do STF foi padrinho de casamento da filha de Barata. A defesa da família sustenta que a conta no exterior está em nome do pai do “Rei dos Ônibus”, que não é réu nos processos. O argumento convenceu Lindôra, que se animou a pedir aos procuradores para propor a liberação do dinheiro bloqueado. O grupo estranhou a ação da emissária de Aras e argumentou que aquela não era uma boa ideia porque, embora a bolada estivesse mesmo em nome do pai do investigado, faltava a comprovação da origem do dinheiro e havia fortes indícios de que Barata pai também praticara crimes quando esteve no comando do grupo. Ou seja, o enriquecimento de toda a família teria se dado à custa de corrupção. Quando a determinação de compartilhamento irrestrito dos dados chegou em maio, a força-tarefa do Rio não titubeou em responder que só passaria as informações sigilosas sobre casos específicos e mediante autorização judicial.

Giuliano Gomes/Estadão ConteúdoDeltan Dallagnol: procuradores reagiram à ordem de Brasília
Procedimento semelhante foi adotado pela força-tarefa de São Paulo, que, à diferença da do Rio, já havia se queixado de falta de estrutura durante uma visita a Aras no início de março. Com mais de 100 procedimentos investigativos abertos, muitos deles remetidos por outras praças ou que desceram do STF e do STJ, o grupo conta com apenas oito procuradores, sendo quatro com atuação exclusiva, e um único funcionário de apoio. Após quatro meses do pleito apresentado, nenhum apoio foi dado. Os procuradores contestam, inclusive, a legalidade do pedido feito pelo PGR, que abarca dados como quebras de sigilo bancário e telefônico, relatórios do Coaf e acordos de delação premiada. Até advogados que já criticaram algumas ações da Lava Jato ou defendem réus denunciados na operação questionam a investida de Aras. “Dados protegidos por sigilo judicial só podem ser compartilhados com anuência do Poder Judiciário”, afirma o advogado criminalista Luís Henrique Machado, que tem Renan Calheiros entre seus clientes processados no STF.

Os efeitos políticos da ação de Augusto Aras dentro da instituição foram previamente calculados. O procurador-geral compra briga com alguns expoentes do combate à corrupção, enquanto sinaliza com a distribuição de benesses para a classe. Em um balanço divulgado internamente em abril sobre a sua gestão no comando do MPF, que começou em setembro de 2019, o procurador-geral destacou como “uma das mais significativas conquistas” do seu mandato uma vitória no Tribunal de Contas da União que permitiu um aporte adicional de 246 milhões de reais ao orçamento da instituição – montante que havia sido retido por causa da aprovação da PEC do Teto dos Gastos, em 2016. Parte da verba já foi usada para pagar licenças-prêmio de procuradores que estavam vencidas. Com o caixa robustecido, Aras já retomou a discussão sobre pagamento de auxílio-moradia e gratificações, duas conhecidas demandas corporativas. O procurador-geral tenta afagar uma parcela da categoria abrindo os cofres e atendendo interesses corporativos.

Há quem veja nas manobras do procurador-geral uma campanha deliberada por uma vaga no Supremo ainda no governo Bolsonaro. Além de faturar pontos com o Planalto investindo contra a operação que projetou Sergio Moro, agora desafeto do presidente, a ofensiva contra a Lava Jato agrada a uma parcela significativa do Congresso, além de uma ala da própria corte. Jogando do lado de tanta gente poderosa, a maior dúvida no momento, especialmente entre os alvos do cerco, é sobre quem poderia frear eventuais abusos no projeto centralizador de Augusto Aras. “Uma coisa é o sentimento popular, outra coisa é o poder. O poder detesta a Lava Jato e sempre quis derrubá-la. Agora, o maior inimigo dela parece estar no comando da própria instituição”, diz um influente procurador. A guerra está só começando.

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