FelipeMoura Brasil

Burke contra os fantasmas bolsonaristas

03.07.20

O estadista e pensador irlandês Edmund Burke – “fundador do verdadeiro conservadorismo”, como definiu o autor conservador americano Russell Kirk – zelava pela contenção dos gastos públicos e pelo corte de privilégios, inclusive nos gabinetes.

No posto altamente lucrativo de tesoureiro das Forças Armadas no governo britânico, o privilégio de emprestar com juros, em proveito próprio, as quantias que o gabinete tivesse temporariamente à disposição dera a seus antecessores uma renda anual de cerca de 23 mil libras. O inglês Richard Rigby, que ocupou o cargo por 14 anos e teve ganhos acima da média, acumulou meio milhão de libras. A primeira nomeação de Burke como tesoureiro veio em 1782, logo após a gestão de Rigby.

“Com uma fidelidade aos próprios princípios surpreendente para o século XVIII, Burke de imediato reduziu os benefícios do próprio posto – apesar de precisar de dinheiro – ao abolir o privilégio de emprestar quantias e ao estipular o próprio salário em meras quatro mil libras” anuais, escreveu Kirk, seu biógrafo intelectual.

Já a autoproclamada “conservadora” família Bolsonaro curte, além do foro, um gabinete privilegiado. A rigor, vários. Não necessariamente para trabalhar dentro deles.

Aos 19 anos, em dezembro de 2000, Flávio Bolsonaro ganhou e “ocupou” um cargo em Brasília, no gabinete do então partido do pai, o PPB, enquanto fazia faculdade e estágio no Rio de Janeiro. Em 2001, esse cargo – antes ocupado pela segunda mulher de Jair Bolsonaro, Ana Cristina Siqueira Valle – rendeu ao filho 01 do atual presidente da República o equivalente a 4.712 reais por mês, ou 13,5 mil reais mensais em valores corrigidos. No total, ele ficou 18 meses registrado na função de assistente técnico, encerrada em junho de 2002.

Aos 18 anos, foi a vez de Eduardo Bolsonaro ser nomeado para o mesmo cargo que Flávio havia ocupado seis meses antes, mas a nomeação acabou anulada após três semanas, quando Jair trocou o PPB pelo PTB de seu até hoje aliado Roberto Jefferson. Nada que impedisse a boquinha a distância, claro. Dois meses depois, em fevereiro de 2003, Eduardo ganhou e “ocupou” um cargo em Brasília, na liderança do PTB, enquanto fazia faculdade no Rio. O salário era de 3.904 reais por mês, ou quase 9.780 reais mensais em valores corrigidos. Eduardo ficou 16 meses registrado na função de assistente técnico, encerrada em julho de 2004 (apenas seis meses depois da criação do Orkut, a primeira rede social a fazer sucesso no Brasil. A internet ainda engatinhava, mas a família Bolsonaro já era PhD em suposto home office.)

As informações da Câmara dos Deputados acima resumidas, confirmadas por registros oficiais, constam em duas matérias obrigatórias da BBC, de janeiro e outubro de 2019, quando Flávio e Eduardo já haviam sido eleitos senador e deputado federal, respectivamente. A Câmara informou à reportagem que os cargos de gabinete que ocuparam “têm por finalidade a prestação de serviços de assessoramento aos órgãos da Casa, em Brasília. Desse modo, não possuem a prerrogativa de exercerem suas atividades em outra cidade além da capital federal”.

Enquanto as apresentações do ex-ministro relâmpago Carlos Decotelli e dos ainda ministros Ricardo Salles e Damares Alves incluíam os títulos jamais conquistados, respectivamente, de doutor na Argentina e pós-doutor na Alemanha, de mestre em direito público nos Estados Unidos, e de mestre em educação e em direito constitucional e direito da família, os currículos disponíveis de Flávio e Eduardo omitiam os cargos como assistentes (remotos) em gabinetes dos partidos de Jair Bolsonaro.

Diante dessa tradição na família, não é de surpreender que haja atualmente investigações sobre funcionários fantasmas bolsonaristas – sem contar o caso do assessor de Eduardo, seu xará Eduardo Guimarães, que usava conta anônima de Instagram para atacar rivais do chefe, como revelou a CPMI das Fake News.

O filho 02, Carlos Bolsonaro, que perdeu o foro especial de vereador em razão de decisão do STF, é investigado por empregar uma dupla sem registros de presença na Câmara Municipal do Rio: Márcio da Silva Gerbatim e Claudionor Gerbatim de Lima, ambos ligados ao agora preso Fabrício Queiroz, ex-assessor do investigado Flávio. Márcio é ex-marido da mulher de Queiroz e pai de sua enteada; Claudionor é sobrinho da mulher de Queiroz. O nome de Márcio, após dois anos, passou do gabinete de Carlos na Câmara carioca para o de Flávio na Alerj. O de Claudionor fez o inverso.

Protegido pelo TJ do Rio com um foro privilegiado retroativo até o STF avaliar os pedidos do MP e da Rede para a Corte devolver o caso à primeira instância, Flávio também empregou Luiza Souza Paes, que depositou 155,6 mil reais em espécie na conta de Fabrício Queiroz e só foi localizada nas cercanias da Alerj três vezes em quase três anos. O pai de Luiza, que era amigo de Queiroz, pediu que ela reunisse extratos bancários para “combinar com o operador financeiro uma versão falsa de que se trataria dos pagamentos de uma suposta dívida”, de acordo com o relato do MP baseado em mensagens apreendidas. Curiosamente, esta é a mesma alegação de Jair Bolsonaro sobre os 24 mil reais depositados por Queiroz na conta da atual primeira-dama, Michelle.

Flávio, cujas filhas tiveram mensalidades escolares pagas em dinheiro por Queiroz, também empregou Raimunda Veras Magalhães, que, segundo o MP, não compareceu à Assembleia Legislativa do Estado enquanto exercia função pública. Ela é mãe de Adriano da Nóbrega, o Capitão Adriano, miliciano morto na Bahia em fevereiro que havia sido homenageado por Flávio na Alerj e Carlos na Câmara Municipal e que havia transferido mais de 400 mil reais para contas de Queiroz. Essas transferências incluem os depósitos feitos em espécie por Raimunda e pela ex-esposa de Adriano, Danielle Mendonça da Costa, então igualmente lotada no gabinete do 01.

Flávio e Jair Bolsonaro ainda empregaram na Alerj e na Câmara dos Deputados, nesta ordem, a filha de Queiroz, Nathalia, personal trainer que atendia celebridades enquanto “ocupava” o cargo em Brasília e que devolveu 80% do salário da Câmara ao pai, de acordo com relatório da Receita Federal. Flávio e Jair exoneraram Queiroz e Nathalia na mesma ocasião, durante a campanha eleitoral – logo após um delegado da Polícia Federal ter vazado a informação de que pai e filha seriam atingidos pelos desdobramentos da Operação Furna da Onça, segundo o ex-aliado Paulo Marinho. Os três assessores de Flávio que teriam se encontrado com o delegado são alvos de pedidos, feitos pelo MPF do Rio à Justiça, de quebra de sigilo telefônico e de e-mails.

“Melhor não pagar de ‘gostosão’ com os investigadores do MPF porque você e eu sabemos o que você fez no verão de 2018”, escreveu Marinho a Flávio, em bate-boca nas redes sociais. “Você sabe que as informações que essa quebra de sigilo revelará sobre a localização dos seus assessores durante o 2º turno das eleições vão mostrar com clareza a veracidade do que você me relatou quando veio chorando à minha casa pedir ajuda.”

Já Queiroz, em áudio enviado a um interlocutor não identificado, chegou a falar abertamente de indicações políticas para cargos no Congresso e de uma “fila” no gabinete do atual senador: “Tem mais de 500 cargos lá, cara, na Câmara e no Senado. Pode indicar para qualquer comissão ou, alguma coisa, sem vincular a eles em nada. Vinte continho aí para gente caía bem.” A suspeita é que ele se referia a vinte mil reais que poderia obter com o desvio de parte do salário dos seus indicados, mas, considerando as centenas de cargos e um período mais longo de repasses, não seria espantoso se fossem 20 milhões, sem vincular aos Bolsonaro em nada, claro. “É só chegar: ‘Meu irmão, nomeia fulano para trabalhar contigo aí’. Salariozinho bom, para a gente que é pai de família, puta que pariu”, disse Queiroz, tratado recentemente por Flávio como “um cara correto, trabalhador, dando sangue por aquilo em que acredita”.

As crenças e atitudes de Edmund Burke eram completamente diferentes, quando não o exato oposto do bolsonarismo. Em 1780, ele propusera pela primeira vez um projeto de lei para reformar a lista civil da Coroa visando a abolir os cargos obsoletos ou inúteis, diminuir o poder político do rei exercido pela dotação de pensões ou pelos fundos do serviço secreto e assegurar o controle do Parlamento sobre o que, na ocasião, chamou de serviço civil. “Se não puder reformar com equidade, absolutamente não reformarei”, declarou, avesso ao corporativismo. O governo britânico tinha um déficit anual de 14 milhões de libras e, como conta Kirk, “Burke estava disposto a eliminar as sinecuras pelas quais o rei recompensava os membros obedientes do Parlamento”.

Jair Bolsonaro, padrinho dos gabinetes privilegiados com cargos obsoletos ou inúteis, emudeceu depois da prisão de Queiroz e turbinou a recompensa preventiva, ou seja, a compra de apoio dos parlamentares do Centrão contra eventual processo de impeachment, oferecendo-lhes justamente as sinecuras do Estado inchado brasileiro.

Por essas e muitas outras (que venho apontando nesta coluna), ou se é Burke, ou se é Bolsonaro. Ou se é conservador, ou se é bolsonarista.

 

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