MarioSabino

As liberdades viraram fake news

03.07.20

Quando Lula tentou criar um conselho federal de jornalismo, em 2004, a imprensa gritou contra a tentativa de amordaçá-la e conseguiu fazer com que o presidente petista desistisse do atentado à liberdade de expressão e informação. Nesta semana, ocorreu algo muito pior no Senado, mas a maioria dos jornalistas está em silêncio até o momento. Acredita que a lei das fake news teria sido feita apenas para impedir bolsonaristas de emporcalhar as redes sociais. É um engano monumental. As milícias digitais a serviço do atual governo servem de pretexto para políticos oportunistas calarem cidadãos descontentes e a imprensa que os fiscaliza e critica.

Na quarta-feira, escrevi sobre essa vergonha em O Antagonista:

O projeto de lei das fake news, aprovado inexplicavelmente a toque de caixa ontem pelo Senado, sem passar por comissões e discussão na sociedade, é uma excrescência pensável apenas num regime autoritário.

O direito de manifestar-se na internet e redondezas foi limitado. Querem impor às redes sociais um guichê de cartório no qual o cidadão é obrigado a mostrar praticamente tudo sobre a sua vida, antes de poder opinar. A consequência disso é que, para além de constranger o indivíduo, as plataformas acumularão uma quantidade ainda maior de dados pessoais que poderão ser acessados por ordem judicial, mas não há garantia de que eles não sejam repassados, mediante pressão política, para as mãos de gente não muito afeita à democracia.

A excrescência, como sói acontecer no Brasil, também é vaga na concessão de direito de resposta pelas redes sociais. Ele se dará nos casos de “ofensa à honra, à reputação, ao conceito, ao nome, à marca ou à imagem de pessoa física ou jurídica”. Ou seja Facebook, Twitter, Google e o que mais for terão “poder de moderação” muito maior. Na prática, para não sofrerem qualquer tipo de ação, as empresas é que definirão se uma notícia é ou não notícia, se uma opinião é ou não válida. O nome disso é censura prévia.

Divulgar memes pelo WhatsApp para grupos de amigos e familiares? Será quase crime de lesa-majestade.

Não poderia faltar, é claro, a criação de um “conselho”: o Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet. É uma abominação a ser aparelhada por oportunistas e ideólogos que imporão entraves à liberdade de manifestação, opinião e informação de quem discordar deles. Um soviete, para ser mais claro.

O Senado aprovou uma excrescência, repita-se, a pretexto de combater a disseminação de fake news. O Marco Civil da Internet está sendo jogado no lixo e, no seu lugar, querem baixar uma lei da mordaça no Brasil, sob patrocínio de impávidos colossos como Davi Alcolumbre. Fake news se combate com educação e polícia, jamais com censura. Para matar um mosquito — a rede bolsonarista de difamação e calúnia  –, estão usando um canhão que suprime liberdades fundamentais. A Câmara precisa fulminar esse atentado perpetrado pelos senadores.

Ouvido pelo repórter Diego Amorim, de O Antagonista, Claudio Lamachia, presidente da OAB quando a entidade ainda não havia sido sequestrada por petistas, disse que “o texto aprovado às pressas, sob pretexto de combater as fake news, vai, sim, implicar a adoção de medidas que aviltam a liberdade de expressão”. Ele afirmou ainda que “o suposto antídoto vai trazer mais dano que a própria doença, matando um dos pilares de nossa democracia: a liberdade de manifestação”. Lamachia se mostrou preocupado com a criação do tal Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet: “O projeto aprovado pelo Senado abre espaço para restrições indevidas à liberdade de expressão e ainda ressuscita a ideia antidemocrática de um conselho censor que dirá o que pode e o que não pode ser dito, algo inimaginável em uma democracia plena.” Ele completou: “Fake news se combate com informação de credibilidade, fortalecimento do jornalismo profissional e aplicação das leis. Hoje é a liberdade de expressão, amanhã será a liberdade de imprensa a ser questionada.”

Se você continua a achar que isso não o afeta diretamente, vou me deter sobre um ponto específico: a lei aprovada pelo Senado prevê que, se determinada mensagem for encaminhada por mais de cinco usuários para mais de mil pessoas, no intervalo de até 15 dias, em grupos e listas de transmissão, o WhatsApp, ou qualquer outro aplicativo semelhante, deverá conservar por três meses dados de quem fez os disparos, a data e o horário dos envios. O objetivo é fornecer tais informações à Justiça, caso as mensagens tenham conteúdo considerado ofensivo ou ilícito. Na votação, o Podemos quis retirar esse absurdo, mas ele foi mantido — 40 senadores votaram a favor; 32 votaram contra. Um senador da minoria, Randolfe Rodrigues, da Rede, resumiu: “Esse artigo é incompatível com a privacidade e confidencialidade. Não vai resolver o problema dos disparos de mensagem. Nos disparos em massa na campanha de 2018, que ajudaram a campanha de Jair Bolsonaro, foram usadas bases de dados vendidas ou vazadas.” O mesmo ocorreu com disparos da oposição, frise-se.

O WhatsApp se manifestou sobre o ponto que lhe diz respeito, em nota a O Antagonista:

“Estamos decepcionados com a decisão do Senado. As notícias falsas são um grande problema social que existe há séculos em toda forma de comunicação. Estamos combatendo a desinformação por meio de mudanças significativas para reduzir mensagens em massa e virais, que geraram uma redução de 70% nas mensagens altamente encaminhadas no WhatsApp. Forçar as empresas a adicionar um carimbo permanente a todas as mensagens privadas enviadas pelas pessoas marcaria o fim das conversas particulares – tudo o que você disser ou encaminhar seria rastreado e poderia ser usado contra você. Esperamos que a Câmara dos Deputados defenda o direito de longa data à privacidade para os brasileiros e reconheça que enfraquecer a privacidade de todos e colocar pessoas inocentes em risco não é a solução.”

Sim, você leu certo: “tudo o que você disser ou encaminhar seria rastreado e poderia ser usado contra você.” 

Estamos vivendo tempos hediondos. O combate às fake news já serviu para censurar notícia verdadeira, como ocorreu com o ato escandaloso do STF contra a Crusoé, no âmbito do inquérito do fim do mundo que foi constitucionalizado pelos ministros. Dá espaço para que “agências de checagem” tentem exterminar publicações que não professam o seu credo ideológico, ao estimular o boicote de anunciantes e sinalizar ao Google e ao Facebook que o seu noticiário deve ser retirado das buscas nas plataformas, por falsidades que não existem. Agora, o mau combate enseja a espertalhões com mandato violentar os direitos dos cidadãos, sejam eles jornalistas ou não. O que mais virá?

Se a estrovenga do Senado for aprovada na Câmara, será mais honesto reescrever a Constituição. As liberdades ali consagradas terão virado fake news.

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