MarioSabino

Viva a revolução (do banheiro)

26.06.20

Escrevi no Twitter: “A aprovação do novo marco legal do saneamento básico é a notícia mais importante para o dia a dia dos brasileiros desde a privatização da telefonia”.

Não fui hiperbólico. Acredito que a grande revolução a ser feita no país é sanitária. A pandemia de Covid-19, aliás, deixou essa necessidade ainda mais ululante — recomendar higiene constante, para não contrair Covid-19, a quem não tem água tratada em casa e mora em cima de esgoto a céu aberto beira o sadismo.

Em 2016, escrevi o seguinte artigo (está publicado no livro Cartas de um Antagonista):

A grande revolução a ser feita no Brasil é a Revolução do Banheiro.  Se os seus sentidos estão anestesiados, basta ir ao site do Instituto Trata Brasil, para verificar que o saneamento básico no país é uma catástrofe de proporções indianas:

 — Mais de 35 milhões de brasileiros não têm acesso a água tratada;

 — Mais de 100 milhões de brasileiros não têm as suas casas ligadas a redes de esgoto; 

— Apenas 40% dos esgotos nacionais são tratados (no Norte, esse número cai para 14%; no Nordeste, para 29%).

 Quanto tempo demoraria para universalizar o saneamento básico no Brasil: de vinte a trinta anos. Dinheiro? Quinhentos bilhões de reais. Parece muito, mas para conquistar 19 medalhas na Olimpíada do Cocô gastamos três bilhões. Se começássemos a fazer a coisa certa já — e não começamos –, quase todas as pessoas da minha geração terão morrido antes que o cocô desapareça dos rios e praias urbanos. Para não falar do lixo industrial que aumenta exponencialmente a toxicidade do nosso excrementão fluvial e marítimo. 

A Olimpíada do Cocô revelou ao mundo essa porcaria e, no entanto, é impressionante como continuamos a fingir que não é conosco. Quando velejadores se jogaram na Baía de Guanabara, para comemorar a conquista de medalha, apresentadores de TV entraram em êxtase, como se a imprudência dos atletas anulasse as análises de laboratório. O mesmo ocorreu com remadores na Lagoa Rodrigo de Freitas. A negação do cocô não é exclusividade carioca. É nacional. No Rio, contudo, é maravilhosa.

Em Paris, um dos lugares mais visitados pelas crianças são os Égouts. Você desce alguns degraus ao lado do Sena, perto da Torre Eiffel, e chega a um museu subterrâneo que mostra a evolução do saneamento básico na cidade. O cheirinho de Brasil iá iá faz parte da decoração. No século XIX, quando eram bem menos extensos e mais fedorentos, os esgotos de Paris compuseram o cenário de Os Miseráveis. Miseravelmente, as metrópoles brasileiras não contam nem mesmo com esgotos da época de Victor Hugo para ambientar um romance. 

Precisamos fazer a Revolução do Banheiro para salvar os nossos rios, o nosso mar, a nossa gente e, quem sabe, produzir um Victor Hugo com um século e meio de atraso.

De quatro anos para cá, a conta subiu 200 bilhões de reais. O governo não teria mesmo como gastar 700 bilhões de reais com água e esgoto. Mas a iniciativa privada tem. O novo marco legal do saneamento básico permite que sejam feitas licitações para construir tubulações, estações de tratamento e levar adiante processos de despoluição. Outra vantagem: vão sumir ou diminuir bastante de tamanho as estatais que, criadas para sanear o país, não passam de grandes armários cheios de cabides de empregos para apaniguados. 

A esquerda, obviamente, votou contra o novo marco legal do saneamento. Afinal de contas, privatizar (ou dar qualquer passo nessa direção) atrasa a concretização daquela utopia nascida no século XIX cuja verdade a realidade insiste em desmentir. A esquerda vê o estado como “o órgão que permite uma classe dirigente manter seu domínio sobre as outras classes”, para usar a fórmula do pensador francês Raymond Aron, o melhor crítico do marxismo. Trata-se, portanto, de tomar o estado, não de diminuí-lo, por quem quer ser classe dirigente para todo o sempre. 

Um parêntese: se você quiser entender o marxismo, esqueça os cursinhos dados por bolsonaristas. Aron foi um dos homens mais brilhantes do seu tempo. Em 1962, ele publicou O Marxismo de Marx, no qual disseca cirurgicamente o pensamento do alemão. Aron descreveu da seguinte forma o objeto do seu estudo: “Uma doutrina que apresenta uma qualidade não única, mas raramente alcançada neste grau: poder ser fielmente explicada em cinco minutos, cinco horas, cinco anos ou em meio século. Ela se presta, de fato à simplificação do resumo em meia hora, e isso permite eventualmente àquele que nada conhece da história do marxismo ouvir com ironia quem dedicou a vida a estudá-lo, porque já sabe de antemão o que é preciso saber. Permite também, àqueles que gostam de pesquisa, que dediquem sua vida à tentativa de saber o que Marx quis dizer e cheguem a uma confissão de semi-ignorância. Creio não haver doutrina tão grandiosa no equívoco, tão equivocada na grandeza. Foi por isso que a ela dediquei tantas horas”. Aron pensa com clareza e sem paixões clubísticas, o que torna a sua crítica ainda mais precisa. Fecha parêntese.

Voltando aos excrementos: o novo marco legal do saneamento prevê a universalização de água e esgoto tratados até 2033. Não sei se é uma data viável. Se o prazo for cumprido, terei 71 anos quando a revolução do banheiro for terminada. Quando foi feita a revolução do telefone, eu tinha 36 anos. Comprei a minha primeira linha telefônica aos 18 anos, pelo equivalente a 4 mil dólares. Não tinha dinheiro para um carro, mas dava para adquirir um telefone com a poupança que meu pai havia feito para mim. A segunda linha me custou mil dólares, graças a um “plano de expansão” da Telesp, a estatal paulista. Nas mãos do estado, a telefonia não recebia investimento suficiente e você tinha de ficar de olho no anúncio da companha estatal de que haveria extensões do sistema no seu bairro. Acontecia raramente.

Hoje, quase 100% dos lares brasileiros têm telefone celular. E o número de aparelhos fixos vêm caindo consistentemente. Eram 36 milhões em março do ano passado; em abril deste ano, baixaram para 32,4 milhões. O que era patrimônio quando comprei minhas linhas virou quase um estorvo, ninguém usa, as operadoras enfiam-lhe goela abaixo. A esquerda afirma que os brasileiros passaram a ter telefone graças à tecnologia, não à privatização. Como argumento adicional, dizem que temos a tarifa mais cara do mundo e a privatização proporcionou uma enorme roubalheira. É a “privataria”, ironizam. Bem, fui vítima da Telesp e prefiro, sinceramente, ser vítima da iniciativa privada. Pelo menos, você pode mudar de carrasco. Quanto à gatunagem, a esquerda, convenhamos, deveria fazer mea-culpa. Se não inteira, boa parte da responsabilidade é dela.

Acho difícil mudar a tecnologia que faz de um banheiro um banheiro até 2033. Esse ponto não surgirá nas contestações. Vai haver roubalheira nas licitações e execuções dos projetos de saneamento? Vai. É preciso ficar de olho? Sim. Vão dizer que é culpa do novo marco legal? Vão. A conta de água será mais salgada? É provável. Mas garanto que, se tudo der certo, o país será bem mais limpo do que hoje e não morrerão tantas crianças de diarreia. Espero ser avô para contar a meu neto como telefone era patrimônio quando eu estava no meio do caminho da nossa vida e como o Brasil ainda era nauseabundo até pouco tempo atrás.

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