Adriano Machado/Crusoé

Missão: sobreviver

Ante o conselho de um velho amigo para renunciar, Bolsonaro respondeu que quer cumprir até o fim uma “missão de Deus”. Para se equilibrar no poder, porém, ele depende de ações bem terrenas: ceder ainda mais ao Centrão, conter os radicais à sua volta e evitar a debandada de militares
26.06.20

No domingo, 21, ao desembarcar no Rio de Janeiro para acompanhar o velório de um militar que havia morrido durante um treinamento de paraquedistas, Jair Bolsonaro foi recebido por um amigo dileto, daqueles de primeira hora e um dos raros aliados dotados de intimidade suficiente para falar verdades inconvenientes ao mandatário do país. Na conversa, no 26° Batalhão de Infantaria Paraquedista, o presidente da República se mostrava abatido. Do fiel escudeiro, Bolsonaro ouviu pela primeira vez aquela recomendação que poucos no entorno de qualquer presidente ousam apresentar e que, em geral, só surgem em situações-limite: a de renúncia à cadeira presidencial. “Por que você não larga isso tudo?”, disse o interlocutor, segundo o relato feito a Crusoé, referindo-se ao turbilhão surgido três dias antes com a prisão de Fabrício Queiroz, amigo de três décadas do presidente. Embora não tenha demonstrado irritação com o conselho, Bolsonaro afastou a ideia. “Essa missão é coisa de Deus”, respondeu.

Os recentes movimentos de Jair Bolsonaro, de fato, mostram que ele não parece disposto a jogar a toalha. A prisão de Queiroz na casa de Frederick Wassef, aquele que diz ser advogado do presidente e é habitué dos palácios do Planalto e da Alvorada, fez Bolsonaro “baixar a bola”, para usar uma expressão já utilizada pelo vice Hamilton Mourão para se referir ao STF. Aconselhado por auxiliares a submergir, o presidente tem cumprido a orientação à risca. Nos últimos dias, evitou emitir declarações polêmicas e procurou atuar mais nos bastidores do que à luz do sol, a fim de preservar o governo e o próprio mandato. Quando se pronunciou, foi sempre num tom apaziguador. Na noite desta quinta-feira, até fez durante uma live algo que não havia feito até aqui: uma homenagem às vítimas da pandemia de coronavírus. Assessores sustentam que esse pode até ser um figurino que não orna com o velho Bolsonaro de guerra, mas é o traje mais apropriado ao momento.

Longe dos holofotes, a estratégia de sobrevivência consiste na tentativa de construção de novas pontes com o Supremo, onde tramitam inquéritos capazes de enrolar Bolsonaro e os filhos, no trabalho para evitar que os últimos lances da crônica político-policial reduzam o apoio da caserna ao governo e, ainda, na ampliação do toma lá dá cá junto ao Centrão e na organização de um itinerário de viagens para inaugurar obras pelo país. A ideia é sair da agenda negativa que o engolfa.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéJorge Oliveira esteve na comitiva “pela paz” na casa de Alexandre de Moraes
A nova aproximação com a Suprema Corte começou a ser costurada no dia seguinte à prisão de Queiroz. A tarefa coube aos ministros André Mendonça, da Justiça, Jorge de Oliveira, da Secretaria-Geral, e José Levi do Amaral, da Advocacia-Geral da União. Depois de o presidente acertar a demissão do ministro da Educação, Abraham Weintraub, uma cobrança antiga do Supremo, o trio participou de uma conversa na casa do ministro Alexandre de Moraes em São Paulo. Embora não tenha nada a ver com o caso do rachid no gabinete do filho 01, Flávio Bolsonaro, o ministro concentra inquéritos centrais para os interesses do presidente, como o das supostas ameaças a ministros da corte e o dos atos antidemocráticos. As duas investigações se entrelaçam e têm potencial para atingir o coração do bolsonarismo – e é por isso que Bolsonaro trabalha para conter possíveis novos danos nessa seara.

O problema é que o Supremo não parece disposto a arrefecer os trabalhos que alcançam os parlamentares mais fiéis ao presidente e empresários acusados de financiar a máquina de destruição de reputações a serviço do bolsonarismo. Uma ala do tribunal também não gostou da iniciativa do núcleo jurídico do Planalto de procurar Alexandre de Moraes. Acha que, se a ideia era desfraldar uma bandeira branca institucional, quem deveria ter sido visitado era o ainda presidente Dias Toffoli, que em breve transferirá a cadeira a Luiz Fux. Ao agirem dessa maneira, os ministros do Executivo atuaram mais como advogados de defesa de Bolsonaro do que propriamente como emissários do governo, entendem os togados contrariados do Supremo.

Mesmo sabendo da insatisfação de parte dos magistrados da corte, Bolsonaro não se fez de rogado e seguiu ao longo da semana emitindo acenos. Numa cerimônia ao lado de Toffoli, falou em “paz e tranquilidade” e defendeu a harmonia entre os poderes, num novo esforço em favor do distensionamento. “Somente dessa forma, com paz e tranquilidade, e sabendo da nossa responsabilidade, que nós podemos colocar o Brasil naquele local que todo mundo sabe que ele chegará. Obrigado a todos pelo entendimento, pela cooperação e pela harmonia”, discursou.

Antonio Cruz/Agência BrasilAntonio Cruz/Agência BrasilO ministro-general Ramos foi escalado para serenar os ânimos dos quartéis
Em outra frente, o governo escalou o ministro da Secretaria de Governo, general Luiz Ramos, para tentar serenar os ânimos nos quartéis. A caserna já se mostrava incomodada com o movimento, inflado pela presença presidencial, que defendia intervenção militar. Também temia por ranhuras à própria imagem, que desde o fim da ditadura vem sendo reconstruída com muito esforço. A gota d’água foi o ressurgimento, com força, da trama em torno do notório Queiroz. Generais da ativa afirmam que a prisão do amigo do presidente e ex-assessor de Flávio Bolsonaro acentuou o desconforto com a renitente associação do governo ao Exército. Ramos tenta fazer as vezes de bombeiro, mas em troca teve de anunciar finalmente sua transferência para a reserva – ele é o único ministro general palaciano ainda na ativa. Apesar de não haver impedimento legal, o Exército considerou que o melhor mesmo era Ramos aposentar a farda, já que ele exerce atividade de natureza política. O ministro diz que irá para a reserva em 1º de julho.

Outra cobrança dos militares é para que o presidente arrume um jeito de se livrar de Frederick Wassef. A turma verde-oliva teme a prisão de Wassef, caso sejam identificados indícios de crime na sua relação com Queiroz. Por isso, pressiona por uma solução. Por ora, porém, o governo se cerca de cuidados para não ferir suscetibilidades do agora ex-defensor do senador Flávio Bolsonaro, que até dias atrás se apresentava também como advogado do próprio presidente. No Palácio do Planalto, Wassef é tido como um “homem-bomba”. O temor é de uma reação contundente do causídico parlapatão diante de um rompimento intempestivo.

Na política, a prisão de Queiroz produziu uma inflexão. Embora não tenha alterado a dinâmica de nomeações para partidos do Centrão em cargos do Executivo, o presidente decidiu ampliar a oferta de benesses a siglas menores. Para se proteger de um eventual processo de impeachment, no mesmo dia em que o ex-assessor de Flávio Bolsonaro foi detido, o presidente promoveu um almoço com deputados e anunciou que iria fazer encontros mais frequentes com integrantes do Congresso. Na quarta-feira, 25, Bolsonaro recebeu para um café da manhã integrantes da bancada do PSC – 9 deputados e um senador. Por enquanto, os parlamentares se contentaram apenas com quitutes, suco e café, mas nos próximos dias terão uma reunião com o ministro Ramos para discutir o que interessa: cargos. Na avaliação do deputado Paulo Eduardo Martins, do PSC paranaense, chegou a hora de Bolsonaro “dar carinho a um velho amigo”.

Foi nesse encontro com os integrantes do PSC que o presidente expôs aos comensais algo já articulado internamente: ele vai fazer um périplo pelo país para se dedicar à inauguração de obras. O ponta pé inicial já estava marcado para esta sexta-feira, 26, em Penaforte, interior do Ceará, com previsão de um sobrevoo sobre a ferrovia Transnordestina e o corte do laço de um trecho das obras da transposição do rio São Francisco. Na semana que vem, o destino será Palmas, em Tocantins, onde está prevista a entrega de máquinas retroescavadeiras. Há 35 empreendimentos na lista do Ministério da Infraestrutura para serem lançados pessoalmente pelo presidente no segundo semestre.

O namoro com o PSC não significa que o Centrão irá perder espaço. Novas nomeações, inclusive, já estão na ordem do dia. Na avaliação de próceres do bloco marcado pelo fisiologismo, “o presidente está fraco, mas o governismo ainda está resiliente”. Para eles, o seguro contra a destituição do presidente permanece com as prestações em dia. Como tudo fica mais caro à medida que o governo se fragiliza politicamente, o grupo recém-aliado ao governo também apresenta suas exigências: não topa de jeito nenhum aderir à agenda da ala ideológica olavista. O combinado com o Palácio do Planalto é de alinhamento apenas com a pauta do ministro da Economia, Paulo Guedes, baseada em reformas estruturais. “Se ele insistir nessas pautas mais radicais, mais ideológicas, ele não vai ter sucesso por aqui”, diz um deputado de um partido do Centrão.

Foto: Marcos Corrêa/PRFoto: Marcos Corrêa/PREm café com Bolsonaro, o PSC saboreou os quitutes, mas quer mesmo é cargo
Bolsonaro entendeu os recados. Alguns nomes do governo ligados ao filósofo Olavo de Carvalho deixaram de ser intocáveis, como o ministro recém-demitido da Educação, Abraham Weintraub. A nomeação do professor Carlos Alberto Decotelli para o lugar dele foi mais uma derrota para os olavistas – e mais uma concessão para os fardados, especialmente os da reserva. Nos últimos dias, o enfraquecimento de Olavo pôde ser observado, inclusive, nas redes sociais, onde, em geral, ele costumava jogar em casa. Os militantes já ensaiam um processo de descolamento do guru radicado na Virgínia.

Bastante criticado no Twitter pela possibilidade de ter ajudado Abraham Weintraub na “fuga” para os Estados Unidos, o chanceler Ernesto Araújo, outro integrante da ala ideológica do governo, também vem sendo submetido a um processo de fritura. Segundo analistas da AP Exata, consultoria que analisa o comportamento das redes, Araújo não tem sido defendido por perfis ligados a Bolsonaro, no que constituiria o primeiro sinal de que o chanceler estaria sob risco.

Se a situação de Araújo ficar mesmo insustentável, um nome em alta na bolsa de apostas dos grupos de WhatsApp de diplomatas pode voltar à baila: o de Maria Nazareth Farani Azevêdo, representante do Brasil junto à ONU em Genebra. Bolsonaro tem a embaixadora, casada com o demissionário diretor-geral da Organização Mundial do Comércio, Roberto Azevêdo, em mais alta conta. Em razão, sobretudo, da defesa enfática que ela faz do governo durante as sessões do Conselho de Direitos Humanos da ONU, onde protagonizou embates com países como Cuba e Venezuela. Sentar-se à cadeira de Rio Branco, que nunca foi ocupada por uma mulher, é um sonho antigo de Maria Nazareth.

Em um episódio que viralizou na internet em março do ano passado, a diplomata interrompeu um evento em Genebra que corria em paralelo ao Conselho de Direitos Humanos para rebater um dos palestrantes. Era Jean Wyllys, empedernido opositor do bolsonarismo, que desferia ataques ao governo brasileiro. A embaixadora bateu boca com o ex-deputado para defender o presidente. Bolsonaro soube do gesto e ligou a ela para agradecer.

O tripé do plano de sobrevivência de Bolsonaro está dado, com menos radicais, mais Centrão e militares por perto. “O Queiroz virou o grande articulador político do governo”, ironiza um dos novos aliados do Planalto no Congresso, referindo-se às consequências da mais nova crise na paisagem de Brasília. Faz sentido.

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