Adriano Machado/CrusoéBolsonaro achou que iria conseguir controlar "politicamente" todas as investigações que o envolvem. Ocorreu o inverso

Um presidente cercado

O avanço das investigações em curso no Supremo Tribunal Federal e no Ministério Público do Rio deixam Jair Bolsonaro exposto em várias frentes e tende a elevar o já salgado preço da parcela do Congresso que o apoia
19.06.20

O presidente Jair Bolsonaro alcançou, nas últimas horas, o perigoso estágio experimentado por antecessores incapazes, por circunstâncias diversas, de se segurar na cadeira presidencial até o fim do mandato: aquele em que, em razão da multiplicidade de frentes que concorrem para fragilizá-lo politicamente, a situação nunca é tão ruim que não possa sempre piorar. E ela se deteriorou  nesta quinta-feira, 18. O dia mal tinha raiado quando um integrante do “sistema de informações particular” do presidente foi avisado por um colega de São Paulo de que a Polícia Civil, atendendo a um mandado expedido pela Justiça do Rio de Janeiro, estava a caminho da rua das Figueiras, em Atibaia, para capturar Fabrício Queiroz, o parceiro mais notório e ao mesmo tempo mais encalacrado da família Bolsonaro. Logo na sequência, o toque do celular soou no Palácio da Alvorada. Foi quando Bolsonaro tomou conhecimento da operação que estava em curso. O presidente reagiu em silêncio, de acordo com um interlocutor, que fez o relato a Crusoé sob reserva. Um silêncio mais do que eloquente, neste caso.

O presidente encontra-se cercado como nunca. Os demais flancos que o expõem no STF,  como o “inquérito do fim do mundo”, o que apura a realização e o financiamento de atos antidemocráticos e o aberto a partir das denúncias do ex-ministro Sergio Moro de interferência na PF, somam-se agora à estrepitosa prisão de Queiroz – potencialmente devastadora para Bolsonaro, pois pode tragá-lo para o epicentro de mais uma crise. O fato de a prisão ter ocorrido num escritório de propriedade de Frederick Wassef, advogado formal de Flávio Bolsonaro, mas que se exibe como vedete nos corredores do poder em Brasília como causídico do próprio Jair Bolsonaro, embute uma série de questões cujas respostas podem enredar ainda mais o presidente no escândalo: até que ponto o clã Bolsonaro se envolveu no esconde-esconde de Queiroz para mantê-lo em controlado silêncio?

Como Wassef se transformou no principal elo entre o presidente da República e Queiroz, o Palácio do Planalto já se ocupa de tentar dissociá-lo de Bolsonaro, embora o advogado seja considerado copa e cozinha do presidente. Será ainda mais complicado adotar a mesma estratégia em relação a Queiroz. Embora tenha ganhado os holofotes como ex-assessor do antigo gabinete de Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio, Queiroz é homem de confiança do presidente. Bolsonaro é amigo de Queiroz desde o início dos anos 80, quando serviram juntos ao Exército – mais precisamente, na Brigada de Infantaria Paraquedista no Rio de Janeiro. Enquanto Bolsonaro seguiu a carreira política, virou vereador, deputado federal e, mais adiante, candidato ao Planalto, Queiroz foi para a Polícia Militar, onde chegou a suboficial. Depois de se tornar uma espécie de faz-tudo de Bolsonaro, até companheiro de pescaria, Queiroz foi indicado para o gabinete do filho 01 do presidente, onde foi acusado de comandar o esquema de “rachid”, como é conhecida a devolução de parte dos salários dos funcionários. A suspeita é que o dinheiro arrecadado financiou práticas nada republicanas do clã.

Em junho do ano passado, quando a investigação do esquema avançava sobre 01, o presidente disse que Queiroz tinha que “se explicar”, mas reconheceu sua relação pretérita com o alvo das apurações. “Fabrício Queiroz é um ex-subtenente da Polícia Militar que eu conheço desde 1984. Foi um soldado da Brigada Paraquedista, meu soldado”, comentou. Já Flávio Bolsonaro tem adotado uma postura dúbia desde a erupção da crise: ora defende fervorosamente o ex-assessor, ora tenta se desvincular completamente de seus atos. Em maio, após a operação contra o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, o senador disse que Queiroz era “um cara correto, trabalhador, dando o sangue por aquilo em que ele acredita”. Em dezembro de 2018, quando surgiram as primeiras denúncias sobre as movimentações bancárias suspeitas de deputados estaduais e servidores da Alerj, o senador também o elogiou. “Fabrício Queiroz trabalhou comigo por mais de dez anos e sempre foi da minha confiança. Nunca soube de algo que desabonasse sua conduta”, afirmou. Em outra ocasião, entretanto, Flávio tentou escapar da responsabilidade sobre as transações de Queiroz, que somaram 7 milhões de reais em três anos. “Não sei o que as pessoas do meu gabinete fazem da porta para fora”, declarou.

Reprodução/SBT e redes sociaisReprodução/SBT e redes sociaisA mulher de Queiroz, Márcia, está foragida: se ela for presa, ele pode delatar
A relação entre as duas famílias não se resume à parceria profissional e pessoal com o ex-policial militar. Familiares de Fabrício Queiroz também trabalharam tanto para Flávio, na Assembleia Legislativa do Rio, como para Jair Bolsonaro, na Câmara dos Deputados. A personal trainer Nathalia, por exemplo, filha de Queiroz, passou oficialmente pelos gabinetes dos dois políticos. Márcia Aguiar, mulher do PM da reserva e alvo da Operação Anjo, também foi empregada de Flávio na Alerj, bem como como seu ex-marido, sua enteada e sua filha.

Hoje, o maior temor no governo é que Queiroz proponha um acordo de delação premiada. O “pacto“ que os une quase que fraternalmente pode ser quebrado, sobretudo se a mulher de Queiroz, contra quem há um mandado de prisão – ela estava foragida até o fechamento desta edição –, vier se juntar a ele na cadeia. Quando estourou o escândalo do rachid, em 2018, Queiroz costumava repetir a quem quisesse ouvir: “Podem me prender, mas não podem prender minha mulher nem milha filha”. O recado era claro: o ex-assessor poderia aguentar a prisão em silêncio obsequioso. O mesmo não aconteceria se a sua família fosse para a linha de tiro.

Segundo assessores, Bolsonaro passou a quinta-feira, 18, irascível. Regurgitando todos os palavrões possíveis. O léxico era o de sempre: o de vítima e consequente ataque aos que supostamente conspirariam contra ele. Poucas horas após a prisão do faz-tudo da família, o senador Flávio Bolsonaro deu a primeira pista sobre como seria a reação do grupo político. Pelas redes sociais, o parlamentar e ex-chefe de Queiroz atribuiu a Operação Anjo a uma suposta sabotagem perpetrada por adversários do governo. “Mais uma peça foi movimentada no tabuleiro para atacar Bolsonaro. Em 16 anos como deputado no Rio, nunca houve uma vírgula contra mim. Bastou o presidente Bolsonaro se eleger para mudar tudo. O jogo é bruto”, afirmou Flávio.

Irritado, Bolsonaro contrariou um hábito conhecido por todos: de manhã, deixou o Palácio da Alvorada sem falar com apoiadores. Para uma reunião de emergência no Palácio do Planalto, convocou o ministro da Justiça, André Mendonça, o ministro Jorge Oliveira, da Secretaria-Geral da Presidência e subchefe de Assuntos Jurídicos, e assessores do gabinete. Na conversa, reconheceu que há uma espada dependurada sobre sua cabeça. Uma das grandes preocupações manifestadas pelo presidente era que, enquanto as demais frentes contra ele poderiam até ser administradas politicamente, por meio de seus emissários, a operação encabeçada pelo Ministério Público do Rio e executada pela Polícia de São Paulo seria, em sua visão, quase impossível de controlar.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéBolsonaro falou apenas genericamente sobre a prisão da aliada Sara Winter
O problema é que os outros fios que podem fritá-lo estão mais do que desencapados. Durante a semana, Bolsonaro sofreu uma série de reveses. Na segunda-feira, 15, Sara Winter, líder do grupo “300 do Brasil”, que se pretende guarda pretoriana do governo apesar de seus integrantes não passarem de três dezenas, foi presa no âmbito do inquérito que apura a realização e o financiamento dos atos antidemocráticos. Bolsonaro refugiou-se no silêncio, entendendo ali que poderia estar estendendo uma bandeira branca ao STF, a despeito de a ordem de prisão da militante bolsonarista ter partido do ministro Alexandre de Moraes, a pedido da Procuradoria-Geral da República.

A cabeça de Sara seria entregue sem qualquer pronunciamento de Bolsonaro não fosse a deflagração de uma operação no dia seguinte, que se aproximou ainda mais de deputados e empresários responsáveis pela ponte entre os manifestantes e o núcleo de poder do presidente. “Uma linha de apuração é que os investigados teriam agido articuladamente com agentes públicos que detêm prerrogativa de foro no STF para financiar e promover atos que se enquadram em práticas tipificadas como crime pela Lei de Segurança Nacional”, afirmou a PGR, que determinou a ação. Por solicitação dos procuradores, 10 deputados e um senador bolsonaristas tiveram o sigilo bancário quebrado. Além de integrarem a tropa de choque do presidente, alguns dos alvos fazem a articulação das relações políticas dessa turma com Bolsonaro. Os inquéritos também chegaram aos articuladores da Aliança pelo Brasil. Entre os alvos, o empresário Luís Felipe Belmonte, um dos principais financiadores da legenda em gestação. Contrastando com o comportamento do início da semana, Bolsonaro estrilou: “Está chegando a hora de tudo ser colocado no seu devido lugar”, ameaçou. Outra derrota para o governo na arena do STF foi a validação do “inquérito do fim do mundo”, que apura as ameaças a ministros da corte por 10 votos a 1 – a exemplo da investigação sobre os atos antidemocráticos, ele pode desaguar na ação que analisa a cassação da chapa Bolsonaro-Mourão no Tribunal Superior Eleitoral.

A consequência política do tsunami que engolfa o Planalto é ficar cada vez mais refém do Centrão, ao qual o presidente já escancarou as portas do governo. Só que, agora, a um preço ainda mais caro. Com o acirramento do cerco sobre o governo, a rendição à velha política, até então discreta e envergonhada, terá que ser ainda mais explícita para conseguir sustentar as estruturas de uma gestão enfraquecida e instável. Foi a necessidade de tentar aparar as arestas com o establishment político – e com o próprio STF – que Bolsonaro entregou a cabeça do ministro da Educação, Abraham Weintraub, e nomeou Fábio Faria, um bem articulado deputado do Centrão, para o Ministério das Comunicações. Não é certo que a estratégia irá dar os frutos esperados.

Representante legítimo do Centrão, o genro do apresentador Silvio Santos é amigo de Rodrigo Maia e personifica a antítese do bolsonarismo. Boa-praça, diplomático, bem relacionado nos três Poderes e munido de jogo de cintura, Faria aproveitou a cerimônia de sua posse para tentar distender o ambiente. Em uma concorrida cerimônia de posse, tendo como palco do Palácio do Planalto, o deputado alçado ao cargo de ministro fez acenos até então inimagináveis, como elogios à imprensa e ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia, a quem chamou de “amigo”. Evitou confrontos com um rebaixado Fábio Wajngarten, ex-chefe da Secom que virou secretário-executivo, e prometeu um trabalho cooperativo. Encheu a bola de Gilberto Kassab, presidente do PSD, e de donos de emissoras de televisão presentes na cerimônia. “Se é tempo de levantarmos a guarda contra o coronavírus, é hora também de um armistício patriótico e de deixarmos a arena eleitoral para 2022”, disse. “É preciso, sobretudo, respeito e que deixemos as nossas diferenças político-ideológicas de lado. É hora de pacificar o país”, concluiu.  As palavras e o tom conciliador do discurso tiveram ares de ineditismo no Palácio do Planalto.

Jean Hernane/ DivulgaçãoJean Hernane/ DivulgaçãoFábio Faria assume ministério das Comunicações e afaga imprensa
O trabalho de Faria, entretanto, não será apenas o de professar o congraçamento de forças e correntes para ajudar salvar o governo. À frente da pasta, o parlamentar vai comandar o debate sobre temas espinhosos, como a chegada da tecnologia 5G ao Brasil, sua compatibilização com os interesses das tevês e todas as questões diplomáticas envolvidas. Acelerar a privatização de grandes empresas públicas sob a responsabilidade da pasta, como a Empresa Brasil de Comunicação, a Telebrás e os Correios, será outra missão do ex-deputado federal. Um dos calcanhares de aquiles do governo, entretanto, é a relação com a imprensa. Jair Bolsonaro acumula um histórico de agressões verbais contra jornalistas e veículos de comunicação – retórica sempre seguida à risca por Wajngarten e aplaudida de pé pela militância bolsonarista. Na posse, Faria desfraldou a bandeira branca. Afirmou que os jornais “ajudam a aprofundar as reflexões da sociedade” e prometeu defender a liberdade de expressão. Há pouco tempo, qualquer iniciativa semelhante despertaria automaticamente o fogo amigo proveniente do gabinete do ódio – leia-se, do filho 02, Carlos Bolsonaro.

A solução mais pragmática, movida pelo instinto de sobrevivência, porém, tem gerado novos infortúnios ao Planalto. Com o avanço de inquéritos do Supremo sobre seus aliados, Bolsonaro tem sido cada vez mais instado por apoiadores ideológicos a se posicionar – ele foi alvo até dos xingamentos de Olavo de Carvalho, guru dos radicais, que o chamou de “covarde”. Para minimizar o estrago, o presidente preparou uma saída minimamente honrosa para o ministro da Educação, como a nomeação para uma diretoria do Banco Mundial, confirmada na quinta-feira. O anúncio teatral da demissão deu ao ato a conotação de sacrifício. Com os olhos marejados, Bolsonaro abraçou Weintraub e disse que era “um momento difícil”. “Todos os meus compromissos de campanha continuam de pé e busco implementá-los da melhor maneira possível. A confiança você não compra, você adquire”, disse. Satisfeito com a solução encontrada no Ministério da Saúde, em que a interinidade de Eduardo Pazuello tem jeito de escolha definitiva, o presidente deve recorrer ao mesmo expediente na Educação. A saída para o imbróglio na pasta deve passar pela promoção temporária do secretário-executivo, Antônio Paulo Vogel, ou de algum secretário das áreas temáticas. Os mais cotados são a chefe da área de Educação Básica, Ilona Becskeházy, e o secretário de Alfabetização, Carlos Nadalim, um olavista conservador, assim como Weintraub, mas que resiste à indicação. Para a ala ideológica, porém, a saída do ministro “expoente da guerra cultural contra a esquerda” sempre será lida com um downgrade, mesmo que um discípulo de Olavo de Carvalho venha a substituí-lo. Cercado em várias frentes na pior semana do governo desde a posse, Bolsonaro arrisca perder até os 30% que, apesar de tudo, ainda lhe prestam reverência.

Com reportagem de André Spigariol

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO