MarioSabino

Em fuga do monstro Brasil

12.06.20

Estou às voltas com um menino de catorze anos que tem como objetivo sair do Brasil. Ele não fala de outra coisa. Quer ir para os Estados Unidos. Especificamente, Nova York. Pesquisa escolas, entra em contato com as respectivas secretarias para verificar se concedem bolsa de estudos — e tenta me convencer de que permanecer num internato sai mais barato do que o habitual intercâmbio em escola pública e estada na casa de uma família que aceita estrangeiros durante um ano. Para ele, um ano é pouco, quer fazer o inteiro ensino médio fora. Idem para a faculdade. O meu filho de catorze anos quer ir embora e não voltar nunca mais.

O mais velho, de 26 anos, sobre o qual já falei aqui, foi embora para a Austrália. Faz curso de pós-graduação em Sydney e  ganha a vida trabalhando de garçom. Trabalhava, quero dizer. Com restaurantes funcionando em horário reduzido e eventos cancelados por causa da Covid-19, ele agora dá expediente numa imobiliária. Faz de tudo, inclusive limpeza. Ganha menos do que um australiano para executar o mesmo serviço, mas entende que o país é deles e não deixa de ser uma sorte ter um emprego. Um dia, se tudo der certo, a Austrália também poderá ser a sua pátria. Ao longo de dois anos, economizou dinheiro para enfrentar o baque da pandemia, mas a mãe e eu ajudamos na medida do possível. Há um mês, mais ou menos, ele me enviou a foto de um pôster que comprou para enquadrar e pendurar na sala do apartamento que aluga. Era a reprodução de uma obra de Jackson Pollock. Com seus gestos quase convulsivos, Pollock borrifava a tinta sobre a tela, não importava o tamanho dela, e depois a cortava, adaptando a superfície à pintura abstrata, numa subversão material que espelhava a organização do seu caos interior transformado em liberdade. De certa maneira, é o que faz o meu filho, ao tentar encontrar um recorte próprio numa sociedade estranha. Todas as visitas que fizemos juntos a museus ganharam um sentido comovente nesse pôster. Em algum momento, fui um bom pai.

O menino de catorze anos não faz por menos do que Nova York. Outro dia, apareceu na minha frente com “camisa social” (a sua definição para camisa de mangas compridas), calça jeans no lugar da bermuda de praxe e o tênis chique. Estava penteado. Era para fazer uma “reunião” comigo sobre as perspectivas dele. Fizemos a “reunião”. Eu lhe disse que a princípio não seria possível pagar uma escola particular em Nova York, e que permanecer num internato não era o mesmo que viajar comigo em férias e ficar num hotel legal numa área bacana da cidade. De qualquer maneira, antes de examinar o assunto mais detidamente, era preciso ter boas notas e melhorar o seu currículo com iniciativas extracurriculares. Sugeri que se inscrevesse numa olimpíada internacional de matemática da qual o seu colégio participará, lembrando que era um privilégio ter aulas e atividades escolares virtuais, ao contrário da filha da moça que trabalha aqui em casa, que pena inutilmente para acessar o aplicativo que a Prefeitura de São Paulo alardeia estar salvando o ano letivo dos alunos da rede municipal de ensino. Ao final, ele achou que tivemos uma “reunião produtiva”. Tentei saber mais de uma vez porque queria tanto sair do Brasil, para além das miragens americanas, uma vez que tem vidinha boa. “Porque este país é uma bosta, você entende? Os caras nem se preocupam em fazer quarentena. Não tem futuro”, foi a resposta mais longa que obtive. Espero que ninguém xingue o garoto porque ele apoia a quarentena.

Quando o mais velho se mudou para a Austrália, o meu caçula afirmou que jamais sairia do Brasil. Ele começou a dizer que iria embora daqui pouco antes do início da pandemia, e a intenção agora virou ideia fixa. Pode ser que, terminado este pesadelo sanitário que ganhou fortes tintas nacionais, o menino volte a pensar que vale a pena ficar no seu próprio país por qualidades que só o Brasil tem. Infelizmente, não consigo imaginar nenhuma para dizer a ele neste momento.

Despedi-me do meu caçula com “camisa social”, calça jeans e tênis chique. De volta às minhas leituras, deparei, então, com a seguinte descrição do Brasil, feita por Paulo Mendes Campos, que também já foi meu tema:

Imaginemos um ser humano monstruoso que tivesse a metade da cabeça tomada por um tumor, mas o cérebro funcionando bem; um pulmão sadio, o outro comido pela tísica; um braço ressequido, o outro vigoroso; uma orelha lesada; a outra perfeita; o estômago em ótimas condições; o intestino carcomido de vermes… Esse monstro é o Brasil: falta-lhe alarmantemente o mínimo de uniformidade social. Profissão entre nós mais incerta que a de sociólogo, só a de estatístico: as generalizações no Brasil nada valem, as médias aritméticas são grotescas, a busca de um padrão social é uma vaidade que não podemos ostentar.

Li a descrição de Paulo Mendes Campos e concluí tristemente que a pandemia deu ainda mais nitidez às feições desse monstro que parece saído de uma pintura de Hieronymus Bosch. Ele nos aprisiona nos seus limites pré-concebidos de tela antiga. Na estreiteza empoeirada, na assimetria desejada, cultivada, eternizada. O Brasil nunca será um Pollock, “porque este país é uma bosta, você entende?”. Entendo, filhote, e sinto muito.

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