Adriano Machado/Crusoé

Combatentes mambembes

O governo dá novos passos rumo ao completo descrédito no combate à Covid-19, ao tentar mudar o método de contagem das vítimas da doença
12.06.20

“Conhece teu inimigo e conhece-te a ti mesmo; se tiveres cem combates a travar, cem vezes serás vitorioso.” O preceito do tratado militar “A arte da guerra”, escrito há 2,5 mil anos pelo chinês Sun Tzu, é uma analogia frequentemente evocada por epidemiologistas. Para vencer uma pandemia, os especialistas precisam, antes de tudo, conhecer o adversário. Além de desvendar os mecanismos biológicos do inimigo, é necessário ter dados. Uma abundância deles. Conhecer a fundo a letalidade e a transmissibilidade de uma doença, além do perfil das vítimas, é fundamental para superá-la. Manter os cidadãos bem informados para prevenir a disseminação de um vírus é outro mandamento das ciências médicas. Determinado a minimizar a gravidade do coronavírus para acelerar a retomada econômica, o ex-capitão Jair Bolsonaro ignorou os princípios básicos de Sun Tzu.

Em uma jogada combinada com o ministro interino da Saúde, general Eduardo Pazuello, o chefe do Planalto decidiu esconder da população dados estratégicos para o combate ao coronavírus, como o número real de mortos e infectados. As informações cruciais para administrar a crise já estavam contaminadas pela imprecisão, uma vez que epidemiologistas estimavam que mortes por Covid-19 seriam pelo menos o dobro do anunciado oficialmente. Mas, em vez de combater o verdadeiro inimigo, um vírus letal e ainda pouco conhecido, militares acomodados no front da pior emergência sanitária do país em décadas aceitaram a missão de ocultar suas vítimas.

Além de gerar uma nova crise política, a decisão teve efeitos nefastos sobre a credibilidade da investigação epidemiológica produzida pelo governo, que constatou depois que a estratégia não funcionaria – os dados continuariam disponíveis nas secretarias estaduais, e quem quisesse chegar aos números gerais do país só precisaria fazer uma simples conta de somar. Apesar de recuos do Planalto, a atitude deixou como consequência incontornável o descrédito dos dados públicos produzidos pelo estado.

Por trás da guinada metodológica na publicação de balanços, esteve a determinação do presidente Jair Bolsonaro para que o número de mortes por Covid-19 ficasse abaixo de mil por dia. A ordem foi dada a Pazuello, que repassou então a tarefa à equipe. Sem poderes sobrenaturais para interferir no curso da epidemia, restou ao Planalto conter a escalada de mortes com a distorção dos dados.

Van Campos /Fotoarena/FolhapressVan Campos /Fotoarena/FolhapressMaquiagem inócua: o mundo estarrecido com o avanço da pandemia no Brasil
A tática de minorar a crise maquiando os números – algo equivalente a forçar o fim da epidemia por decreto – começou a ser colocada em prática há duas semanas, quando o Ministério da Saúde, de maneira deliberada, passou a atrasar a divulgação diária das estatísticas. A pasta deu sucessivas justificativas para a publicação de dados após as 22 horas, mas coube ao presidente Jair Bolsonaro escancarar a estratégia. “Acabou matéria no Jornal Nacional”, afirmou na última sexta-feira, 5. No mesmo dia, foi explicitada a segunda parte do plano: para se encaixar no limite desejado pelo presidente, de menos de mil mortes diárias, a solução foi separar óbitos ocorridos nas últimas 24 horas das que haviam ocorrido antes, mas só haviam sido contabilizadas naquele mesmo dia.

Outro pretexto delirante: governadores e prefeitos estariam a inflar estatísticas reunidas no banco de informações federal. À noite, o portal do Ministério da Saúde com as estatísticas saiu temporariamente do ar. Pior: sumiram as vias de acesso à base de dados detalhados. A trapalhada ficou exposta no domingo, 7, quando a pasta divulgou números conflitantes. Em um balanço inicial, o Ministério da Saúde informou 1.382 novas mortes por Covid-19. Pouco depois, anunciou uma correção de supostas “duplicações” e o número caiu para 525 óbitos nas 24 horas anteriores. A escandalosa estratégia de sumir com 857 cadáveres, no entanto, não deu certo. No noticiário internacional, ganharam mais luz as cifras que colocavam o Brasil como o segundo país com maior número de infectados e o terceiro em óbitos. O bilionário empresário Carlos Wizard, cujo nome estava encaminhado para a Secretaria de Ciência e Tecnologia do Ministério da Saúde e havia anunciado a “recontagem dos mortos” por considerá-la “fantasiosa”, saiu de cena mais depressa do que entrou, refugando o posto depois que pipocaram nas redes sociais propostas de boicote às suas empresas.

A maquiagem ostensiva gerou reações no Congresso, no Tribunal de Contas da União e na Justiça. Os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre, prometeram providências. A Comissão Mista formada para acompanhar as medidas de combate à Covid-19, por exemplo, decidiu que só vai trabalhar a partir de agora com dados estatísticos fornecidos pelos estados. “Ao alterar os números, o Ministério da Saúde tapa o sol com a peneira. É urgente resgatar a credibilidade das estatísticas. Um ministério que tortura números cria um mundo paralelo para não enfrentar a realidade dos fatos”, argumentou o presidente da Câmara. O ministro Gilmar Mendes, do STF, chegou a afirmar, numa rede social, que a “manipulação de dados é manobra de regimes totalitários” e que “o truque não vai isentar a responsabilidade pelo eventual genocídio”. A partir de uma ação ajuizada pela Rede, pelo PSOL e pelo PCdoB, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo, determinou a retomada da publicação dos dados completos do coronavírus – e tudo voltou a ser como era antes.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéPara Gilmar Mendes, “manipular dados é manobra de regimes totalitários”
A mudança na forma de apresentar as informações públicas só foi possível graças ao apoio do ministro Eduardo Pazuello. Com a extensa militarização de cargos da cúpula do Ministério da Saúde, coronéis, tenentes, majores e capitães, fiéis à hierarquia das Forças Armadas, executam as propostas do Planalto sem contestações. A qualificada equipe técnica da pasta, concursada e com décadas de experiência, acabou escanteada. Resta-lhes assistir aos desmandos de maneira impassível. “Desde a Constituição de 1988, saúde e democracia são temas centrais do SUS. A militarização do Ministério da Saúde agora se manifesta com essas práticas antidemocráticas e com falta de transparência”, lamentou João Paulo Dias de Souza, integrante do comitê da Organização Mundial da Saúde sobre a Covid-19.

O afinco com que um governo atua para minimizar a pandemia e ocultar os números reais não era visto no Brasil havia pelo menos cinco décadas. Os precedentes são infelizes. No início dos anos 1970, período mais violento da ditadura, os militares reagiram a uma ameaçadora epidemia de meningite com censura. Proibiram os jornais de veicularem notícias sobre o surto da doença e vetaram ações de vigilância sanitária que protegessem a população.

Pesquisador do Observatório História e Saúde da Fundação Oswaldo Cruz, o historiador Carlos Fidelis da Ponte vê semelhanças entre a estratégia adotada agora e o controle da informação da ditadura. “Em 1971, apareceram focos de meningite em Santo Amaro, na zona sul de São Paulo, e, de lá, ela se espalhou pelo país e virou uma grande epidemia. Naquela época, o país estava no auge da fase ufanista. Eram tempos do ‘Brasil, ame-o ou deixe-o’ e os militares não queriam ver a imagem da nação fragilizada e associada a uma doença que surgiu no seio da miséria”, lembra o pesquisador. A reação teve um roteiro semelhante nos dois casos, começando pela fase da negação, seguida por atitudes que minimizam o problema e pela busca de culpados, até chegar às promessas de cura e de soluções mágicas para a doença e, finalmente, às tentativas de manipulação dos dados. A ditadura, como agora, ergueu uma cortina de fumaça em torno da meningite. A carência de informações precisas, também como agora, agravou o surto, favoreceu o descuido e levou o país ao pior dos mundos: o das milhares de mortes, muitas delas evitáveis.

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