A utopia da Frente Ampla
Eterno presidenciável, Ciro Gomes já disse ter “nojo” e “pavor” do discurso “simpatiquinho, mas mentiroso” de Marina Silva. A estrela mais proeminente da Rede, por sua vez, reclamou não faz muito tempo do “excesso de malignidade” de FHC, ex-presidente que é alvo de toda a sorte de impropérios lançados por Ciro desde a década de 90. À parte as divergências, o trio convidado a participar do debate organizado pela Globonews e conduzido pela jornalista Miriam Leitão no domingo, 7, queria aparecer bem na foto. À primeira vista, tudo funcionou como esperado. O discurso de união e em favor da criação de uma Frente Ampla “pela democracia” foi bem recebido nas redes sociais, a ponto de Jair Bolsonaro e Lula, os versos e reversos da mesma moeda, acusarem o golpe. Os bolsonaristas atacaram a iniciativa sem dó, enquanto no Palácio do Planalto auxiliares do presidente entabularam estratégias para reforçar a polarização com o PT. Lula preferiu escalar seus prepostos Fernando Haddad e Gleisi Hoffmann para desenterrar sua candidatura à Presidência em 2022, mesmo sabendo que, salvo uma manobra jurídica, ele, na condição inescapável de ex-presidiário condenado e ficha suja, não pode ser candidato.
De fato, em meio ao maniqueísmo que contaminou a vida nacional, ver políticos de proa, outrora adversários figadais, sentados à mesma mesa – ou unidos numa mesma videoconferência – para conversar civilizadamente sobre caminhos e saídas para o Brasil é algo interessante. É como se no ambiente quase hermético da quarentena viesse da fresta da janela uma lufada. Mas ainda são muitos e complexos os aspectos a serem considerados. Um deles é como dar o segundo passo sem tropeçar nas próprias pernas. São incontáveis os obstáculos que se apresentam logo na largada. Personagens envolvidos na negociação dizem que o grupo não sobrevive ao primeiro “teste de estresse”. “Isso é um saco de gatos. Imagine quando o Ciro, ex-aliado de Lula, que já atacou FHC e Marina impiedosamente, na primeira discussão subir a voz? Não sobra um meu irmão”, diz um integrante da Rede. “É a materialização do ‘Imagine’ de John Lennon. Só que em tom de piada, claro. Os cirominions são piores que os bolsominions”, acrescenta o partidário de Marina.
A relação entre os que agora tecem loas a uma acalentada unidade é marcada pelo ressentimento. Para os marineiros, as feridas abertas nas duas últimas eleições presidenciais ainda estão longe de serem cicatrizadas. Marina é um pote até aqui de mágoas. Lembra que, em 2014, nem o PSDB, de FHC, nem o PDT, de Ciro, saíram em sua defesa quando ela foi destroçada psicologicamente pela propaganda do PT. Nos filmetes, obra e graça do marqueteiro João Santana, o PT dizia que Marina, se eleita, tiraria a comida do prato do trabalhador para enfastiar os banqueiros. Abatida, a candidata que rumava para um segundo turno na esteira da morte de Eduardo Campos, num trágico acidente aéreo, desmilinguiu nos debates e nas urnas. Em 2018, recordam integrantes de sua campanha, só a candidata ensaiou uma união, enquanto Ciro viajou para a Europa e FHC se limitou a dizer que não votaria em Bolsonaro. “São questões do passado que não foram bem resolvidas. É como tentar remediar a ferida com um merthiolate inócuo e que ainda arde”, dizem aliados.
No livro “Ponto-final: a guerra de Bolsonaro contra a democracia”, o professor Marcos Nobre, do Departamento de Filosofia da Unicamp, diz que “um impeachment é uma coisa que precisa ser construída, não que você decreta pela vontade ou pela raiva”. Para Nobre, a trilha até o impedimento de um presidente requer uma negociação dura, conduzida por uma frente realmente ampla, em torno das quais, a partir de aspirações da sociedade, serão erguidas balizas para o próximo governo. Nos moldes do que foi o impeachment do ex-presidente Fernando Collor, em 1992. “Não pode ser um ato voluntarista de um pedaço da sociedade.” O que fazer, no entanto, se nem os idealizadores da Frente Ampla sabem dizer quem estará com quem e em torno de quê? Não há hoje e nem no horizonte uma liderança capaz de galvanizar todas forças que a compõem. Não há um nome que os una.
Esse não é um problema trivial. Por exemplo, qualquer movimento que se pretenda “amplo” contra Bolsonaro jamais pode, ao vislumbrar o pós-Bolsonaro, desconsiderar a direita não bolsonarista. Afinal, parcela expressiva da sociedade votou no atual presidente em nome de uma agenda liberal na economia, mais conservadora nos costumes e apoiada na bandeira contra a corrupção. Embora recentemente o ex-ministro da Justiça Sergio Moro tenha feito acenos a movimentos pró-democracia, signatários de manifestos como “Estamos Juntos”, “Somos 70%” e “Basta!” reconhecem as dificuldades em incorporar o ex-juiz. Em contrapartida, grupos que ganharam musculatura à frente do impeachment de Dilma, como MBL, Vem pra Rua e congêneres consideram a turma “esquerdista demais” para se envolver com ela. A deputada estadual Janaina Paschoal, do PSL de São Paulo, defende abertamente a queda de Bolsonaro. Mas é uma das que se recusam a subscrever qualquer manifesto encabeçado por Ciro, Marina e FHC. “Intriga-me ver tantos juristas, que questionaram a legitimidade do processo do mensalão, da Lava Jato e do impeachment, agora assinarem manifestos, sem fazer referência ao inquérito sigiloso no STF”, afirmou a parlamentar.
Em outros períodos da história, frentes amplas acabaram morrendo na praia. Entre 1966 e 1968, os antípodas JK, Jango e Carlos Lacerda abriram mão de atestados ideológicos para se unirem em favor da restauração do poder civil, do pluripartidarismo, da Constituinte e das eleições diretas. A Frente Ampla, no entanto, acabou tragada pelo tsunami autoritário do AI-5, que perseguiu os próceres do movimento. Já a Aliança pelas Diretas, apesar de ter levado milhões para a rua no início dos anos 1980 e contribuído para criar o zeitgeist da redemocratização, só tirou a caserna do poder pelo voto indireto.
Para que a história não se repita, há quem diga que a receita para colocar de pé uma concertação contra Bolsonaro é personificar menos e democratizar mais. “Ninguém que abandonou Bolsonaro virou Ciro, Lula ou Haddad, muito pelo contrário”, afirma Renan Santos, do MBL. “Hoje, as pesquisas mais deletérias para Bolsonaro mostram que Mandetta (Luiz Henrique Mandetta, ex-ministro da Saúde) e Sergio Moro são muito mais aprovados que qualquer nome de esquerda pela população. Então, devagar com o andor. É hora de colocar a bola no chão e agregar”, emenda. Como embrião de um movimento “em favor da democracia” ou algo que o valha, uma coalizão verdadeiramente ampla pode até dar certo. Mas todos, da esquerda à direita, parecem concordar que não é tão simples fazer o inverso do que pregava o escritor americano Ernest Hemingway, para quem, numa guerra, é mais importante quem está do seu lado do que a causa por que se luta.
Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.