Supremo Tribunal FederalAlexandre de Moraes durante sessão no Supremo antes da pandemia: equipe escolhida a dedo

A ‘polícia’ de Alexandre

Para tocar o "inquérito do fim do mundo", o ministro do Supremo Tribunal Federal montou um time para chamar de seu
12.06.20

Como costumam fazer os examinadores das bancas acadêmicas, o ministro Edson Fachin elencou uma série de críticas ao trabalho de Alexandre de Moraes, mas aprovou, com ressalvas, a tese da constitucionalidade do inquérito conduzido pelo colega, que investiga supostas ameaças, ofensas e notícias falsas contra os membros do Supremo Tribunal Federal. Na função de relator, Fachin deu início na última quarta-feira, 10, ao julgamento do pedido de suspensão da investigação, que só será retomado na próxima semana. Foram mais de duas horas de leitura de um voto no qual o ministro externou suas insatisfações com o andamento do processo e deixou claro que é preciso impor limites ao inquérito do fim do mundo, o mesmo que censurou Crusoé e O Antagonista em abril de 2019 — um erro reconhecido pelo próprio STF — e que agora desperta a ira do presidente Jair Bolsonaro por avançar sobre a sua “milícia digital”.

Em um voto balizador para os demais integrantes da corte, Fachin impôs quatro condições para a continuidade do inquérito, instaurado há 455 dias pelo presidente Dias Toffoli: 1) que seja acompanhado pelo Ministério Público; 2) que os investigados tenham acesso aos autos; 3) que seja limitado a ameaças que exponham “risco efetivo à independência” do Judiciário; e 4) que a liberdade de expressão e de imprensa sejam protegidas. Em recados diretos a Moraes, o relator ressaltou a incompetência do Supremo em conduzir processos de pessoas sem prerrogativa de foro junto à corte. Defendeu que “aquele que julga não deve investigar” e afirmou que “a total transparência dos atos do poder público é a regra, sendo o sigilo a exceção”. Em diferentes trechos, o ministro destacou ainda que, embora amparada por lei, a investigação feita pelo STF é “atípica” e exige um “elevado grau de justificação”.

O que talvez nem Fachin nem seus pares saibam é que os fatos atípicos no inquérito vão muito além daqueles que o ministro enumerou em seu voto. Teórico e professor de Direito Constitucional, Alexandre de Moraes decidiu ignorar o artigo 144 da Carta Magna, que define a Polícia Federal como órgão competente para investigar crimes na esfera federal, e montar seu próprio aparato de inteligência e investigação. Sob a tutela absoluta do ministro, a apuração que já resultou em pelo menos 74 procedimentos distintos é comandada pelo juiz instrutor Airton Vieira e pelo perito criminal aposentado Celso Perioli, ambos lotados no gabinete de Moraes. Até os laudos técnicos que embasaram a decisão de busca e apreensão e quebra de sigilo de militantes e empresários bolsonaristas foram encomendados a dois agentes do Instituto de Criminalística de São Paulo, e não ao corpo de peritos da PF, considerado o melhor do país.

Reprodução/TV JustiçaReprodução/TV JustiçaFachin na sessão virtual: inquérito deve prosseguir, mas “aquele que julga não deve investigar”
Cedido desde 2018 ao gabinete de Moraes, Airton Vieira é juiz do Tribunal de Justiça de São Paulo e tem fama de linha dura. Promotores ouvidos por Crusoé relataram que, com ele, as medidas mais invasivas contra os investigados estavam sempre garantidas, sem maiores rodeios. Vieira é defensor declarado da pena de morte para crimes hediondos e protagonizou algumas decisões polêmicas, como a absolvição de um fazendeiro acusado de estuprar uma adolescente de 13 anos, com o argumento de que garotas podem “parecer ter mais idade”. O trabalho do magistrado como braço operacional de Moraes no inquérito tem sido chancelado sem muitas ressalvas pelo ministro. Ao deflagrar as buscas e apreensões contra os aliados de Bolsonaro no fim de maio, por exemplo, ele seguiu à risca a recomendação de Vieira, desprezando por completo um parecer do procurador-geral da República, Augusto Aras, que era contra a ação por considerar que as supostas mensagens ameaçadoras aos ministros do STF eram livre manifestação crítica à corte.

É um relatório de Vieira mantido até hoje em sigilo que enquadra a rede bolsonarista como possível “associação criminosa” com o objetivo de disseminar notícias falsas contra o STF e reputa como “vital” o acesso às mensagens de WhatsApp dos apoiadores de Bolsonaro. O parecer está calcado nos depoimentos de quatro deputados federais que romperam com o presidente, como Joice Hasselmann e Alexandre Frota, e em laudos periciais elaborados pelo número dois da “polícia” de Moraes. Trata-se do perito Celso Perioli, que se tornou amigo do ministro durante os 15 anos em que ele comandou a Polícia Técnico-Científica de São Paulo, nos sucessivos governos tucanos. Respeitado internacionalmente — já foi instrutor do CSI, o departamento de perícias dos Estados Unidos –, Perioli galgou cargos políticos por indicação de Moraes após se aposentar em 2014. O mais expressivo deles foi o de secretário nacional de Segurança Pública, entre 2016 e 2017, no período em que o hoje ministro do Supremo foi ministro da Justiça de Michel Temer.

A ida do perito aposentado para o gabinete de Moraes no Supremo ocorreu no mês seguinte à abertura do inquérito no STF. Para auxiliá-lo nas demandas crescentes do chefe, Perioli recrutou dois peritos de sua confiança no Instituto de Criminalística de São Paulo, onde ele também costuma despachar como assessor do Supremo. Integrantes do núcleo de informática da polícia científica, Mara Pires e Rafael Souza Ferraz haviam acabado de desenvolver um aplicativo capaz de recuperar mensagens criptografadas de WhatsApp quando foram requisitados para atuar no inquérito secreto de Moraes, no fim de 2019. Batizada como “Extrator”, a ferramenta já foi compartilhada com peritos da Polícia Federal e com policiais de outros estados. É o trio quem assina os três laudos técnicos feitos entre fevereiro e abril deste ano e anexados ao Apenso 70, o único volume da investigação que foi liberado por Moraes aos investigados. Crusoé teve acesso ao material – são dois cartapácios com cerca de 400 páginas — que embasou a operação deflagrada contra os militantes bolsonaristas.

Trecho da decisão de Alexandre que menciona laudo produzido pelos peritos paulistas
No primeiro relatório, intitulado “Laudo de Análise de Ataques pela Rede Social Twitter ao STF e Seus Membros”, a equipe de investigadores a serviço de Moraes listou onze perfis “influenciadores” como os principais disseminadores dos “ataques” aos magistrados, em uma ação orquestrada com o objetivo de fazer com que hashtags como “#STFVergonhaNacional” atingissem os chamados “trending topics”, a lista de assuntos mais falados da rede social – era uma forma de fazer com que a mensagem atingisse um número maior de pessoas fora da “bolha” bolsonarista. Segundo o relatório, os ataques começaram a partir do dia 7 de novembro de 2019, quando o Supremo derrubou as prisões após condenação em segunda instância, medida que permitiu a soltura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Os dois outros relatórios, concluídos no dia 28 de abril, são mais simples e reproduzem uma extensa sequência de postagens feitas pelas deputadas bolsonaristas Carla Zambelli e Bia Kicis. No caso de Zambelli, os peritos copiaram e colaram 63 postagens feitas entre o fim de 2019 e abril deste ano. Dessas, apenas 15 faziam menção ao STF ou a seus ministros. “Alô Gilmar Mendes. Não se atreva mexer com a Lava Jato” é um dos exemplos pinçados. Os outros 48 posts faziam a defesa de Bolsonaro ou ataques a inimigos do presidente, como o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, chamado de “traidor nacional”, e o governador paulista João Doria, tachado de “ditador” por causa das medidas de isolamento social impostas em São Paulo na fase inicial da pandemia.

Neste momento, é a equipe de confiança de Moraes que está examinando o material dos aparelhos celulares e computadores apreendidos na ação contra os bolsonaristas. A opção do ministro por não deixar a Polícia Federal conduzir a investigação é vista sob duas óticas por policiais e por alguns colegas dele no Supremo, que fora dos holofotes fazem críticas pesadas à condução da apuração. Por um lado, como resultado da desconfiança dele na PF – deixar a investigação e a análise das provas a cargo de agentes e delegados federais poderia abrir o flanco para interferências políticas. Por outro, como sinal da vontade de Moraes de conduzir o caso do jeito que lhe convém.

Adailson Calheiros/Agência AlagoasAdailson Calheiros/Agência AlagoasO perito aposentado Celso Perioli: um dos escolhidos por Alexandre para trabalhar na investigação
Essa segunda impressão surgiu logo que o inquérito foi instaurado, em março de 2019, quando o ministro designou o delegado Alberto Ferreira Neto, da Delegacia Fazendária da Polícia Federal de São Paulo e que fez a segurança do ex-governador Geraldo Alckmin nas eleições de 2018, e outro da Polícia Civil paulista, ambos de sua confiança, para cumprir as diligências designadas por ele. Essa não é a praxe. O juiz não escolhe o delegado, quem escolhe é a direção da polícia, de acordo com o tipo de crime a ser apurado. A própria inclusão da Polícia Civil no caso já causou estranheza, uma vez que a Constituição define a PF como a polícia judiciária da União, responsável por conduzir as investigações na esfera federal.

No inquérito conduzido por Moraes, a PF é apenas uma cumpridora de mandados. Os agentes saem às ruas sem nem sequer terem acesso às decisões judiciais do ministro. Ao longo de toda a investigação, o conteúdo integral do inquérito nunca foi para a polícia, apenas para a PGR. Por esse motivo, os policiais e peritos federais não produzem os laudos periciais nem os relatórios de análise das quebras de sigilo e dos demais materiais apreendidos. Na PF, as diligências ordenadas pelo ministro foram, em um primeiro momento, conduzidas apenas pelo delegado Alberto Ferreira Neto, da superintendência de São Paulo. Como no caso da censura a Crusoé, Moraes solicitava e o delegado cumpria.

A situação mudou um pouco em novembro do ano passado, devido ao aumento da demanda de pedidos que começaram a chegar, muitos deles para serem executados em outros estados. Foi nesse período que o STF revogou a prisão após condenação em segunda instância e os ataques à corte nas redes sociais aumentaram. Desde então, a direção da PF solicitou que Alexandre passasse a encaminhar os pedidos para a Diretoria de Investigação e Combate ao Crime Organizado, a Dicor, chefiada por Igor Romário de Paula, experiente delegado e primeiro chefe da Lava Jato de Curitiba. Ainda assim, a PF continuou como mera cumpridora de ordens, agora concentradas na sede da corporação em Brasília.

Reprodução/redes sociaisReprodução/redes sociaisHang com Bolsonaro: investigação aponta suspeitas de financiamento ilegal de campanha
Quando a operação contra a rede bolsonarista foi deflagrada, no dia 27 de maio, os policiais que bateram à porta de cada um dos apoiadores do presidente tinham apenas o mandado de busca e apreensão em mãos. Não sabiam exatamente o motivo pelo qual cumpriam a diligência. O material apreendido – celulares, computadores e documentos – foi organizado e enviado diretamente ao gabinete do ministro, aos cuidados da estrutura comandada pelo juiz Airton Vieira e pelo perito aposentado Celso Perioli. Em casos normais, tudo ficaria na própria PF para que agentes e peritos produzissem relatórios de análises e laudos. Até mesmo nos depoimentos ordenados por Alexandre, como os das deputadas Carla Zambelli e Bia Kicis, os delegados federais solicitaram ao gabinete orientações sobre quais temas abordar porque desconheciam completamente os detalhes do inquérito.

As ações comandadas até agora pela “polícia de Alexandre” sugerem que o inquérito sobre as supostas ameaças ao STF é muito mais do que uma “peça informativa” necessária para identificar os supostos autores e remeter o processo para a corte competente para julgar o caso, como escreveu o ministro Edson Fachin em seu voto, na última quarta. Ao pontuar como “inadmissíveis” as campanhas em defesa da ditadura, do fechamento do Congresso e do Supremo, o relator reflete o desejo da corte de fazer cessarem as manifestações antidemocráticas, mas como ele próprio apregoa em seu voto, a dose do remédio não pode se tornar um veneno: “O antídoto à intolerância é a legalidade democrática”.

Com reportagem de Fabio Serapião e Luiz Vassallo

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