MarioSabino

O print eterno de uma fake news

05.06.20

A maior vítima de fake news da história é Maria Antonieta, a arquiduquesa austríaca que se casou com Luís XVI, tornou-se rainha da França e terminou guilhotinada no que é hoje a Place de La Concorde, em Paris, num dos episódios mais vergonhosos da Revolução Francesa. Acho difícil que alguém consiga ultrapassá-la como alvo de calúnias e difamações. Panfletistas a retrataram como prostituta e perdulária — “Madame Déficit”. A xenofobia levou a que fosse chamada pelo populacho de “l’autre chienne”, ou “a outra cadela”, em vez de “L’Autrichienne”, ou “A Austríaca”. Consideravam-na uma espiã dos Habsburgo infiltrada no Palácio de Versalhes.

Ao casar-se com o então delfim, como era chamado o herdeiro do trono, ela penou três anos para que o casamento se consumasse — e, no princípio, a culparam por não seduzir o marido desinteressado. Demoraria mais quatro anos para ter o primeiro filho, já como rainha, porque nem ela nem o marido sabiam como fazer o sexo mais prosaico: Luís XVI permanecia parado por dois minutos depois da penetração e retirava o pênis sem ejacular. Foi preciso que o irmão de Maria Antonieta ensinasse ao cunhado o beabá. Até que a aula fosse dada, ela amargou a fama de infértil. Um episódio envolvendo um colar de brilhantes comprado por uma prostituta que se passou por Maria Antonieta a mando de uma condessa depravada, com o dinheiro de um cardeal dissoluto (e otário) que se dizia apaixonado pela rainha, virou escândalo público — e, no julgamento popular cotidiano, a responsável só poderia ser a estrangeira sexualmente insaciável que dava margem a esse tipo de situação. Pintaram-na como uma devassa devoradora de homens e também de mulheres. A inglesa Antonia Fraser, a melhor biógrafa de Maria Antonieta, conta que no panfleto “L’Autrichienne en goguette” (A Austríaca na Farra), publicado na época, ela aparece como protagonista de orgias. Numa delas, o Conde de Artois, irmão de Luís XVI que era apontado injustamente como seu amante, a possuía por trás, dizendo obscenidades sobre “a firmeza e elasticidade” do seu corpo. O representante americano em Paris, Gouverneur Morris, em relatório enviado aos Estados Unidos, sintetizou que a rainha era “odiada, humilhada, mortificada”, ao mesmo tempo que tentava manter a autoridade de um rei cada vez mais deprimido. E pensar que, anos antes, durante um passeio no Jardim das Tulherias, ela e o seu marido, ainda herdeiro do trono, haviam sido saudados por uma multidão afetuosa, que os cercara e festejara por quase uma hora, impedindo-os de seguir na caminhada — agora era o inverso.

Meio século depois de Maria Antonieta ter a cabeça guilhotinada, inventaram que, ao ouvir que o povo faminto não tinha pão, ela dissera que lhe dessem brioches. Esta última fake news perdura até hoje e continua a ser ensinada nas escolas. Na verdade, a frase consta das Confissões, de Jean-Jacques Rousseau, livro escrito quando Maria Antonieta ainda era criança. Rousseau não faz menção a qualquer rainha em particular e, na obra, a frase tem caráter anedótico. Antonia Fraser afirma que ela foi dita pela espanhola Maria Teresa, mulher de Luís XIV, cem anos antes. Mas acabou atribuída à austríaca odiada, humilhada, mortificada, que os revolucionários se encarregaram de assassinar para além da reputação, num ritual de catarse coletiva. Foi desse modo até o fim. Maria Antonieta sofreu achincalhes enquanto era levada da Conciergerie, onde ficou presa, até a praça que foi a sua última visão. Puseram-na sentada numa charrete puxada por dois pangarés. Antonia Fraser conta que, numa sacudida, ela quase caiu no chão. “Ah, não são as tuas almofadas do Trianon”, disse um guarda, rindo. À frente do cortejo, um ator montado num cavalo brandia uma espada, gritando: “Eis aqui a infame Antonieta, ela está fodida, meus amigos”. Ao subir ao patíbulo, ela pisou no pé do seu carrasco. “Não foi por querer”, desculpou-se. Foi a sua penúltima frase. A última foi a resposta ao abade que lhe disse, momentos antes da execução: “Agora, Madame, eis o momento de a senhora se armar de coragem”. Ela respondeu: “De coragem… Não é no momento que os meus males vão acabar que ela vai me faltar”.

O filme sobre Maria Antonieta, dirigido por Sofia Coppola e baseado no livro de Antonia Fraser, tem abordagem pop, como se a rainha fosse uma it girl. Interpretada por Kirsten Dunst, ela é apresentada como uma adolescente mimada, afeita ao luxo, mas nem por isso desprovida de espírito caritativo — a qualidade da qual era preciso cancelar a memória com a mentira dos brioches. Eu assisti ao filme em 2006, num cinema dos Champs-Elysées, mais entusiasmado com Kirsten Dunst do que com Maria Antonieta. Li o livro de Antonia Fraser anos depois, já no meu exílio profissional, também na capital francesa. Saiu Kirsten Dunst, entrou a rainha. Leitura finda, fui visitar a Conciergerie, onde havia a reconstituição da cela de onde ela saiu diretamente para a guilhotina. Uma boneca sentada de costas para o visitante fazia as vezes da condenada. Não sei se a reconstituição permanece lá. A tristeza da cena congelada acentuou a ironia histórica de terem derrubado e guilhotinado o monarca absolutista da França que ajudara a financiar a guerra de independência dos Estados Unidos — e, assim, possibilitar o surgimento da República mais poderosa que jamais existiu. Daí também a penúria dos franceses na época da revolução. Penúria que acendeu o ressentimento contra a rainha estrangeira e, portanto, espoliadora.

Maria Antonieta voltou a me interessar nesta semana. Pesquisadores financiados pelos Arquivos Nacionais da França utilizaram um scanner ultramoderno para ler as frases rasuradas de quinze das sessenta cartas trocadas entre Maria Antonieta e o Conde Hans Axel von Fersen, diplomata sueco, pertencentes à instituição. Elas datam do final de 1791 e  início de 1792. Axel von Fersen foi quem organizou a fuga frustrada da família real, aprisionada no Palácio das Tulherias, em direção ao território onde havia tropas que ainda demonstravam lealdade à monarquia. Rainha, rei e filhos viram-se interceptados na cidade de Varennes. Axel von Fersen foi o único grande amor da mulher acusada de devassidão. Mas teria sido esse amor platônico ou carnal? Com o scanner, os pesquisadores tentaram encontrar uma pista sobre a natureza do romance e extrair resposta a outra pergunta: quem havia rasurado a correspondência? 

Por meio da análise dos componentes das tintas empregadas nas rasuras, eles concluíram que foi o próprio Axel von Fersen quem riscou as frases que poderiam ser comprometedoras para Maria Antonieta. Um cavalheiro em todos os sentidos. Os trechos rasurados não têm, porém, nenhum traço de erotismo. Uma das frases de Axel von Fersen reveladas pelo scanner foi: “Vê-la, amá-la, consolá-la é tudo o que desejo”. Ao que ela dava respostas como: “Chorei pensando que você queria passar todo o inverno em Bruxelas”. No caso, Maria Antonieta mostrava-se preocupada com o destino do amado depois da tentativa de fuga que organizara. Ele poderia estar ao alcance da vingança dos revolucionários. O trecho com mais pimenta?  “Para a felicidade de todos os três, tome cuidado com o que escreve sobretudo quando há negócios…”, escreveu Axel von Fersen, referindo-se a Luís XVI, o terceiro vértice do triângulo amoroso. Dado interessante, pesquisadores descobriram que das sete cartas (mais preciso seria chamá-las bilhetes) de Maria Antonieta, duas foram redigidas por ela. As demais são transcrições feitas pelo sueco dos textos originais escritos em código pela rainha prisioneira.

A minha conclusão é tão banal quanto as frases de amor que vieram à luz graças ao scanner: Maria Antonieta foi principalmente uma mulher que teve a infelicidade de se casar com o homem errado, no lugar errado, no momento errado. Tornou-se por isso a maior vítima de fake news da história, e não serão livros, filmes e artigos a apagar as calúnias e difamações que continuam a arrastá-la para a guilhotina na Place de La Concorde. Foi odiada, humilhada, mortificada pelas redes sociais do século XVIII. De fato, o print é eterno.

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