Pam Rosa

E a rua ruge cá

Aqui no Brasil, as manifestações agora já não são apenas pró-Bolsonaro. Mas os atos “pró-democracia” podem provocar o efeito inverso e até ajudar o governo se descambarem para a violência
05.06.20

As sombras de uma multidão de manifestantes projetadas na cúpula da Câmara dos Deputados viraram símbolo dos protestos de junho de 2013. O movimento, que surgiu a partir de uma revolta contra o reajuste das passagens de ônibus, aglutinou insatisfações variadas e desembocaria bem lá na frente no impeachment de Dilma Rousseff. Mas naquela noite do dia 17, no frio do quase-inverno brasiliense, os jovens que invadiram a marquise do Congresso e saltaram diante dos holofotes não tinham a mais remota ideia das potenciais consequências políticas daquele levante – o maior da história recente do país.

Àquela altura, o desenrolar das manifestações era imprevisível. Mas, ao fim e ao cabo, a voz das ruas contribuiu para derrubar um governo, para a rejeição generalizada da classe política e para a valorização do discurso de combate à corrupção – causas que, cinco anos depois, acabaram tendo como efeito colateral a eleição de Jair Bolsonaro. Hoje, é ele próprio quem se vê premido por manifestações que mal começaram e já sopram sobre Brasília o temor de que uma nova onda esteja a caminho, apesar da pandemia.

Desde o domingo, 31 de maio, atos pacíficos – mas também espetáculos injustificáveis de baderna e vandalismo – se espalharam pelas ruas do Brasil e acuaram o entorno de Bolsonaro. Ciente do potencial desse movimento, a oposição enfrenta hoje um dilema. Depois de criticar a presença do presidente em manifestações pró-governo, estimulando insalubres aglomerações, lideranças que se opõem ao atual ocupante do Planalto encontram dificuldades para endossar a realização de atos públicos em um dos momentos mais críticos da curva de expansão do coronavírus no país. Ao mesmo tempo, enxergam que o rugir das ruas pode ser decisivo para o intento de apear Bolsonaro do cargo. Desde que não enveredem, no entanto, para o quebra-quebra, o que provocaria o efeito contrário ao desejado: o presidente acabaria sendo beneficiado politicamente.

Wallace Martins/Futura Press/FolhapresWallace Martins/Futura Press/FolhapresOs “300” pró-Bolsonaro: as tochas remetem a símbolos da Ku Klux Klan
Potencializada pela crise econômica e pela alta do desemprego, a nova mobilização social tem fundamentos heterogêneos, a exemplo das jornadas de junho de 2013. A percepção inequívoca de que há uma massa disposta a enfrentar a pandemia para sair às ruas e protestar começou com dois movimentos distintos, no último domingo. Inspirados pelas marchas americanas, representantes do movimento negro convocaram atos contra a violência policial e contra a discriminação racial em várias cidades. Um dos maiores, no Rio de Janeiro, transcorreu de forma pacífica, mas acabou com um confronto em frente ao Palácio Guanabara, a sede do governo estadual. Em São Paulo, a bandeira era outra: a “defesa da democracia”. Mas o script foi o mesmo: em um protesto insólito, integrantes de torcidas organizadas de times de futebol marcharam na Avenida Paulista e finalizaram o ato com confrontos.O grupo teve embates com apoiadores de Jair Bolsonaro e com a polícia.

O pior, no entanto, ocorreu em Curitiba no início da madrugada de terça-feira, 2. A manifestação política, convocada para ser contra o racismo, inspirada nos protestos americanos, dentro dos marcos da liberdade constitucional de expressão, foi transformada em quebra-quebra e vandalismo. Começou com gritos contra Bolsonaro e de reverência à vereadora assassinada Marielle Franco e terminou de forma violenta, com a necessária intervenção da polícia. Ou seja, um tiro no pé para quem queria usar os atos para fustigar o presidente. No dia seguinte, imagens da balbúrdia foram usadas por apoiadores do governo nas redes sociais com o intuito de desmascarar os mascarados autoproclamados “democratas”.

A bola foi levantada para o governo cortar. Logo, o presidente Jair Bolsonaro, seus filhos e aliados, como o vice Hamilton Mourão, se apressaram em tachar os movimentos de “marginais” e “terroristas”. Na avaliação do governo, a radicalização dos atos vai afastar definitivamente qualquer possibilidade de engajamento da classe média e servir de vacina para futuras manifestações antidemocráticas por parte dos bolsonaristas, como as que já acuaram profissionais de medicina e jornalistas.

Geraldo Bubniak/AGBFolhapressGeraldo Bubniak/AGBFolhapressProtesto em Curitiba teve vandalismo e quebra-quebra
No Planalto, é consenso que a associação dos novos protestos ao vandalismo favorece politicamente o presidente. Fora de lá há quem enxergue (e até tema) que a confusão pode até dar a ele argumentos para sair do discurso e colocar soldados nas ruas. Qualquer que seja o lance seguinte, hoje o governo teme que a onda de manifestações em defesa da democracia e em oposição à retórica de Bolsonaro ganhe volume com a articulação de organizações da sociedade civil em prol de atos pacíficos. O pior dos mundos para o presidente seria, em meio às múltiplas crises já enfrentadas por ele, o “Fora, Bolsonaro” – sem o emprego da violência – varrer as ruas.

Como há lideranças esparsas e grupos diversos que ainda podem se unir às marchas, a dimensão delas é incerta até mesmo para quem está envolvido na organização. Um desses movimentos de reação é o Somos 70%, que ganhou eco entre personalidades e usuários das redes sociais. Organizador da iniciativa, o economista Eduardo Moreira se surpreendeu com o aumento de apoio nos últimos dias. Moreira, porém, é um dos que são contra levar para as ruas a mobilização conquistada até agora. “Se não estivéssemos em um momento de pandemia, tenho certeza de que teríamos uma manifestação imensa e pacífica, porque o engajamento é impressionante. Mas não estimulamos isso porque o Brasil virou o epicentro do coronavírus”, diz.

O Somos 70% tem articulação com outro movimento que reúne atualmente mais de 700 profissionais do direito, o Basta!, que virou hashtag de destaque nas redes sociais. “O Brasil, suas instituições, seu povo não podem continuar a ser agredidos por alguém que exerce o nobre mandato que lhe foi conferido para arruinar com os alicerces de nosso sistema democrático”, diz um trecho do manifesto do grupo.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéAo menos em público, o presidente agora desestimula os protestos a seu favor
Comparecer ou não aos protestos virou a escolha de Sofia entre a oposição a Bolsonaro nos últimos dias, sobretudo entre representantes de partidos de esquerda. No PSOL e no PT grande parte dos filiados defende os atos de rua. Setores das duas legendas preparam protestos para este fim de semana em várias cidades do país. Já os nomes mais influentes do campo conservador, por ora, assistem a tudo de longe. É o caso da deputada estadual Janaina Paschoal, do PSL de São Paulo, e de líderes do MBL e do Partido Novo. “Não vou dar força para o que eu não sei o que é”, declarou Janaína, uma das autoras do pedido que levou ao impeachment de Dilma.

Ainda não está claro se, a exemplo do que ocorreu em junho de 2013, os protestos atrairão gente sem identificação partidária ou ideológica. E não são apenas o medo da violência e da Covid-19 que assustam. O MBL, que esteve na linha de frente das últimas grandes manifestações no país, sustenta que não se sente confortável em participar de movimentos que podem ter objetivos mais amplos do que simplesmente se opor ao presidente, cujos líderes carimbam de fascistas todos os que não concordam com eles. De fato, tudo o que o país menos precisa é viver no looping eterno de trocar autoritários por outros, só mudando as cores das camisas.

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