E a rua ruge cá
As sombras de uma multidão de manifestantes projetadas na cúpula da Câmara dos Deputados viraram símbolo dos protestos de junho de 2013. O movimento, que surgiu a partir de uma revolta contra o reajuste das passagens de ônibus, aglutinou insatisfações variadas e desembocaria bem lá na frente no impeachment de Dilma Rousseff. Mas naquela noite do dia 17, no frio do quase-inverno brasiliense, os jovens que invadiram a marquise do Congresso e saltaram diante dos holofotes não tinham a mais remota ideia das potenciais consequências políticas daquele levante – o maior da história recente do país.
Àquela altura, o desenrolar das manifestações era imprevisível. Mas, ao fim e ao cabo, a voz das ruas contribuiu para derrubar um governo, para a rejeição generalizada da classe política e para a valorização do discurso de combate à corrupção – causas que, cinco anos depois, acabaram tendo como efeito colateral a eleição de Jair Bolsonaro. Hoje, é ele próprio quem se vê premido por manifestações que mal começaram e já sopram sobre Brasília o temor de que uma nova onda esteja a caminho, apesar da pandemia.
Desde o domingo, 31 de maio, atos pacíficos – mas também espetáculos injustificáveis de baderna e vandalismo – se espalharam pelas ruas do Brasil e acuaram o entorno de Bolsonaro. Ciente do potencial desse movimento, a oposição enfrenta hoje um dilema. Depois de criticar a presença do presidente em manifestações pró-governo, estimulando insalubres aglomerações, lideranças que se opõem ao atual ocupante do Planalto encontram dificuldades para endossar a realização de atos públicos em um dos momentos mais críticos da curva de expansão do coronavírus no país. Ao mesmo tempo, enxergam que o rugir das ruas pode ser decisivo para o intento de apear Bolsonaro do cargo. Desde que não enveredem, no entanto, para o quebra-quebra, o que provocaria o efeito contrário ao desejado: o presidente acabaria sendo beneficiado politicamente.
O pior, no entanto, ocorreu em Curitiba no início da madrugada de terça-feira, 2. A manifestação política, convocada para ser contra o racismo, inspirada nos protestos americanos, dentro dos marcos da liberdade constitucional de expressão, foi transformada em quebra-quebra e vandalismo. Começou com gritos contra Bolsonaro e de reverência à vereadora assassinada Marielle Franco e terminou de forma violenta, com a necessária intervenção da polícia. Ou seja, um tiro no pé para quem queria usar os atos para fustigar o presidente. No dia seguinte, imagens da balbúrdia foram usadas por apoiadores do governo nas redes sociais com o intuito de desmascarar os mascarados autoproclamados “democratas”.
A bola foi levantada para o governo cortar. Logo, o presidente Jair Bolsonaro, seus filhos e aliados, como o vice Hamilton Mourão, se apressaram em tachar os movimentos de “marginais” e “terroristas”. Na avaliação do governo, a radicalização dos atos vai afastar definitivamente qualquer possibilidade de engajamento da classe média e servir de vacina para futuras manifestações antidemocráticas por parte dos bolsonaristas, como as que já acuaram profissionais de medicina e jornalistas.
Como há lideranças esparsas e grupos diversos que ainda podem se unir às marchas, a dimensão delas é incerta até mesmo para quem está envolvido na organização. Um desses movimentos de reação é o Somos 70%, que ganhou eco entre personalidades e usuários das redes sociais. Organizador da iniciativa, o economista Eduardo Moreira se surpreendeu com o aumento de apoio nos últimos dias. Moreira, porém, é um dos que são contra levar para as ruas a mobilização conquistada até agora. “Se não estivéssemos em um momento de pandemia, tenho certeza de que teríamos uma manifestação imensa e pacífica, porque o engajamento é impressionante. Mas não estimulamos isso porque o Brasil virou o epicentro do coronavírus”, diz.
O Somos 70% tem articulação com outro movimento que reúne atualmente mais de 700 profissionais do direito, o Basta!, que virou hashtag de destaque nas redes sociais. “O Brasil, suas instituições, seu povo não podem continuar a ser agredidos por alguém que exerce o nobre mandato que lhe foi conferido para arruinar com os alicerces de nosso sistema democrático”, diz um trecho do manifesto do grupo.
Ainda não está claro se, a exemplo do que ocorreu em junho de 2013, os protestos atrairão gente sem identificação partidária ou ideológica. E não são apenas o medo da violência e da Covid-19 que assustam. O MBL, que esteve na linha de frente das últimas grandes manifestações no país, sustenta que não se sente confortável em participar de movimentos que podem ter objetivos mais amplos do que simplesmente se opor ao presidente, cujos líderes carimbam de fascistas todos os que não concordam com eles. De fato, tudo o que o país menos precisa é viver no looping eterno de trocar autoritários por outros, só mudando as cores das camisas.
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