Flickr Brett WeinsteinVandalismo em Washington: violência pode fazer população deixar de se identificar com manifestantes

A rua ruge lá

Nos Estados Unidos, os protestos contra a violência policial tomam as grandes cidades e ganham contornos eleitorais a cinco meses da votação que definirá quem vai ocupar a Casa Branca a partir de 2021
05.06.20

Durante 8 minutos e 46 segundos, o joelho do policial branco Derek Chauvin comprimiu a nuca de George Floyd, homem negro de 46 anos, em Minneapolis. Após implorar que o soltasse, dizendo que não conseguia respirar, Floyd parou de se mover e de falar, deitado de bruços no asfalto e com as mãos algemadas. A autópsia contratada pela família concluiu que a morte do segurança, naquele dia 25 de maio, ocorreu por asfixia. A pressão nas costas e no pescoço dificultou a chegada de sangue ao cérebro. A cena foi parar nas redes sociais e detonou protestos em mais de 430 cidades em todos os 50 estados americanos. Mais da metade dos governadores pediu socorro à Guarda Nacional para amparar as forças policiais locais. Dezenas de cidades, entre elas Nova York e a capital Washington, instituíram toque de recolher, algo que não se via desde 1968, quando o assassinato do líder negro Martin Luther King Jr. provocou manifestações em todo o país.

Protestos contra as forças policiais após a viralização de vídeos nas redes sociais têm ocorrido de tempos em tempos nos Estados Unidos. A revolta, quase sempre, é nutrida pelas imagens chocantes de vídeos com flagrantes e por pencas de estatísticas. Apesar de serem apenas 13% da população americana, os negros representam 25% dos mortos em atritos com a polícia. Também são as vítimas mais frequentes de crimes em geral quando comparados a outros grupos. A taxa de homicídios de negros, por exemplo, é oito vezes maior que a de brancos e de latinos, somados. O dado triste é fruto da criminalidade maior em bairros de população negra. A ação policial nesses locais, portanto, costuma ser mais frequente.

Desta vez, dois fatores contribuem para deixar as manifestações ainda mais inflamáveis. O primeiro é que os Estados Unidos ainda enfrentam a pandemia do coronavírus. Trata-se do país com mais mortes pela Covid-19 no mundo: 106 mil. Aglomerações nas ruas podem facilmente iniciar uma segunda onda da doença. O segundo fator é que as eleições gerais no país estão marcadas para novembro. Como era de se esperar, os protestos rapidamente se tornaram também atos contra o presidente republicano Donald Trump.

Flickr Lorie ShaullFlickr Lorie ShaullBarreira com policiais: eles foram atacados com tijolos e fogos de artifício
Os efeitos políticos das manifestações sobre as urnas, daqui a cinco meses, poderão ser consideráveis. Em princípio, esses atos nas ruas tendem a fortalecer os democratas nas eleições. Um levantamento histórico da Universidade Stanford mostrou que protestos ligados ao ideário da esquerda aumentam em 2% a fatia de votos dos candidatos democratas e diminuem em 6% a parcela dos republicanos. O inverso acontece na mesma medida: manifestações de direita favorecem republicanos e prejudicam democratas. “Em geral, os protestos fornecem informações aos eleitores e chamam a atenção para alguns temas”, diz a socióloga Sarah Soule, que participou da pesquisa em Stanford. “Os candidatos, por sua vez, podem medir a intensidade da opinião entre os potenciais eleitores e se sintonizar com eles.”

Os protestos dos últimos dias, contudo, foram muito além das manifestações de rotina. Na ilha de Manhattan, as vitrines das lojas da Quinta Avenida foram estilhaçadas. Saqueadores invadiram os estabelecimentos para roubar de tudo: tênis, computadores e celulares, entre outras mercadorias. Um grupo saiu de uma concessionária Rolls Royce com uma SUV avaliada em 330 mil dólares. Mais de 700 pessoas haviam sido detidas na cidade até a quinta-feira, 4. No país, o número passava de 9 mil. Delegacias foram incendiadas, assim como carros estacionados nas ruas, inclusive viaturas. Confrontos entre mascarados e policiais passaram a ser frequentes. Em alguns lugares, as forças de segurança foram atacadas com pedras, tijolos e fogos de artifício. Em outros, policiais chegaram a ser alvejados por tiros. Em Las Vegas, um policial foi baleado quando dispersava um grupo de manifestantes em frente a um cassino. Um homem carregando armas de fogo disparou contra vários agentes que protegiam um prédio público. Em Saint Louis, um bando que estava em uma manifestação atirou contra policiais. Dois foram atingidos na perna, um no braço e outro no pé. Um policial negro aposentado que correu até uma joalheria que estava sendo saqueada foi morto. Nas cidades de Nova York e Buffalo, oficiais foram atropelados.

Quando os protestos se tornam violentos, o efeito político se inverte: o apoio da população cai e a rejeição aumenta. “Apesar de os protestos serem majoritariamente pacíficos, a atenção das pessoas tende a se focar nos indivíduos mais violentos. Isso leva o público a deixar de se identificar com os manifestantes”, diz o sociólogo Brent Simpson, que estudou os efeitos dos protestos violentos na Universidade do Sul da Califórnia. “Nossa pesquisa mostra que isso pode levar a um apoio maior aos grupos ou atores que se opõem aos protestos, o que no caso atual incluiria o presidente Donald Trump.”

Casa BrancaDonald Trump: como Nixon, ele se coloca como defensor da lei e da ordem
Com as cenas de baderna se multiplicando na imprensa e nas redes sociais, Trump se apresentou como o defensor da lei e da ordem. No domingo, 31, ele disse que pediria a inclusão dos “antifas”, definição de grupos radicais antifascistas que passou a ser alargada com a escalada dos protestos nos Estados Unidos e em outros países, como terroristas. O gesto do presidente americano foi rapidamente imitado pelos bolsonaristas no Brasil. Trump falou até em usar as Forças Armadas se necessário. A declaração foi repudiada pelo secretário de Defesa, Mark Esper.

A comparação da postura atual de Trump com a do republicano Richard Nixon, em 1968, é inevitável. Após o assassinato de Martin Luther King Jr., protestos violentos se espalharam pelos Estados Unidos. O presidente Lyndon Johnson, democrata, estava enfraquecido por não conseguir conter o caos no país e pela resistência popular à Guerra do Vietnã. Com uma campanha centrada no restabelecimento da lei e da ordem, Nixon venceu o pleito presidencial daquele ano. “Desta vez, há uma grande chance de os americanos mais conservadores começarem a reagir aos protestos”, diz Elliott Brennan, que pesquisa políticas de esquerda e mobilização juvenil no Centro de Estudos Americanos da Universidade de Sydney, na Austrália. “Muitas das lojas que estão sendo saqueadas e destruídas já tinham sido severamente atingidas pela quarentena. É bem provável que um sentimento de raiva profunda apareça e que o desespero econômico gere um repúdio aos protestos.”

Do lado democrata, as manifestações deram fôlego para a campanha de Joe Biden, que deve ser sacramentado como o candidato do partido em agosto. Após passar semanas enclausurado em sua casa, fazendo reuniões virtuais por causa da pandemia, o ex-vice de Obama começou a circular e a proferir discursos duros contra Trump. Ele tem se colocado como um mediador capaz de conversar com os manifestantes e de entendê-los. “Não permitiremos que um presidente cale nossa voz”, disse. Para vencer Trump no Colégio Eleitoral, Joe Biden terá que conquistar a classe média branca em estados como Pensilvânia, Ohio, Wisconsin e Michigan. “Muitos eleitores brancos estão assustados com esses protestos, e Trump tem explorado muito bem tal medo”, diz o cientista político americano Michael Munger, da Universidade Duke. “Com a economia em uma situação calamitosa, é bem provável que o caos atual aumente, o que tornaria ainda mais forte o apelo pela ordem.”

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